ARTIGOS ARTIGOS

Ano 40 • N. 149 - Janeiro/Junho - 2017 • ISSN 1676-2630 Publicação semestral de formação para catequistas e agentes de pastoral

Pós-Graduação lato sensu em Catequese Bacharelado em Teologia

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Aceita-se permuta - Exchange is solicited São Paulo, ano 39, n. 148, jul./dez. 2016.

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ARTIGOS ARTIGOS

CENTRO UNIVERSITÁRIO SALESIANO DE SÃO PAULO UNISAL

REVISTA DE CATEQUESE Chanceler Edson Donizetti Castilho Reitor Ronaldo Zacharias Pró-Reitora de Ensino, Pesquisa e Pós graduação Romane Fortes dos Santos Bernardo Pró-Reitor de Extensão, Ação Comunitária e Pastoral Antonio Boeing Pró-Reitor Administrativo Nilson Leis Coordenador do Curso de Pós-Graduação lato sensu em Catequese Humberto Robson de Carvalho Coordenador do Bacharelado em Teologia Luís Fabiano dos Santos Barbosa Editor Antonio Wardison C. Silva Editor Adjunto Luiz Alves de Lima

Revista de Catequese / Publicação do Centro Universitário Salesiano de São Paulo – Unidade São Paulo – Campus Pio XI e Instituto Teológico Pio XI. – ano 1, nº 0, (1977) - . — São Paulo: UNISAL, 1977 – v. ; 23 cm Semestral ISBN 1676-2630 I Catequese. II Educação Religiosa. III Evangelização. IV Educação à fé. V Pastoral. VI Ensino Religioso Escolar. CDU 268 CDD 268 Ficha catalográfica elaborada pela Bibliotecária Miriam Ambrosio Silva – CRB 5750/8

COMISSÃO EDITORIAL Antonio Wardison C. Silva Francisco Inácio Vieira Júnior Luiz Alves de Lima Luís Fabiano dos Santos Barbosa UNISAL - São Paulo REVISÃO EDITORIAL Luís Fabiano dos Santos Barbosa CONSELHO EDITORIAL Alexandre Awi Mello UNISAL - São Paulo Anderson Alencar Menezes Universidade Federal de Alagoas Cézar Teixeira Instituto de Teologia - SE

Redação, Administração e Permuta Unidade São Paulo - Campus Pio XI Rua Pio XI, 1.100 - Alto da Lapa 05060-001 - São Paulo - Brasil Fone: 0xx11 - 3649-0200 Contato: [email protected] Edição: [email protected]

Elza Helena de Abreu UNISAL - São Paulo Enrique Garcia Ahumada Universidad Catolica Silva Enriques - Santiago do Chile Fernando Altemeyer Júnior PUC/SP Israel José Nery Universidad La Salle - Santiago do Chile

Impressão e Acabamento: AN GRÁFICA LTDA Rua Alamoique, 73 - Freg. do Ó 02807-100 São Paulo - SP Fone: 11 3975-9262 e-mail: [email protected]

Luiz Eduardo Pinheiro Baronto Universidade São Judas - São Paulo Margaret A. Guider Boston College - School of Theology and Ministry - EUA Maurício Tadeu Miranda UNISAL - São Paulo Ney de Souza PUC/SP Ronaldo Zacharias UNISAL - São Paulo Rosana Manzini UNISAL - São Paulo

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Wolfgana Gruen São Paulo, ano 39,Santo n. 148,Tomás jul./dez.de2016. Instituto Aquino - Belo Horizonte

REDAÇÃO Íris Gardino TRADUÇÃO Margaret A. Guider CAPA Departamento de Comunicação e Marketing UNISAL DIAGRAMAÇÃO E EDITORAÇÃO ELETRÔNICA Renata Lima – AN Gráfica

Índice

ARTIGOS ARTIGOS

EDITORIAL Antonio Wardison C. Silva....................................................................................................................

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ARTIGOS

A inspiração catecumenal na educação da fé: catequese a serviço da iniciação à vida cristã Ariél Philippi Machado e Marlene Bertoldi.......................................................................................

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Linhas de formação para os futuros ministros de catequese segundo o Ritual de Iniciação Cristã de Adultos (RICA) Elilzo Marques de Oliveira e João dos Santos Barbosa Neto............................................................ 16 O RICA: fonte de inspiração para o itinerário catequético infantil Thiago Aparecido Faccini Paro........................................................................................................... 25 Propor a fé aos casais, um caminho de iniciação cristã João da Silva Mendonça Filho........................................................................................................ 33 A importância da narração na transmissão da fé nos novos contextos familiares José Maria Siciliani Barraza........................................................................................................... 43 Fontes da espiritualidade cristã Eliton Fernando Felczak................................................................................................................. 52 Salmo 133: A vida da comunidade - Promessa e bênção eterna Clarisse Ferreira da Silva e Christiane Tavares Ferreira da Silva.................................................... 69 A mistagogia da palavra: uma leitura catequética de João 1,1-18 Gilberto Siqueira Alves................................................................................................................... 78 Misericórdia, direito e justiça Rogério Augusto das Neves........................................................................................................... 89 Liberdade humana: possibilidade ou vocação Antonio de Lisboa Lustosa Lopes................................................................................................... 97 As relações entre cristãos e judeus sob o pontificado de Inocêncio III: Uma voz pela tolerância religiosa? Cesar Almeida Siqueira e José Rodolfo Galvão dos Santos........................................................... 106 VIVÊNCIAS Novo documento da CNBB sobre a iniciação à vida cristã Luiz Alves de Lima..........................................................................................................................115

São Paulo, ano 40, 39, n. 149, 148, jan./jun. jul./dez. 2017. 2016.

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ARTIGOS ARTIGOS Caros leitores. Apresentamos a primeira edição de 2017 da Revista de Catequese, publicada semestralmente pelos Cursos de Bacharelado em Teologia e de Pós-Graduação Lato Sensu em Catequese do Centro Universitário Salesiano de São Paulo - UNISAL. Com a missão de apresentar temáticas de singular importância para a Igreja, particularmente sobre a sua ação pastoral – endereçadas à formação do catequista – este número traz questões na esfera da teologia sacramental, pastoral, espiritual, sistemática e bíblica. A reflexão sobre a iniciação à vida cristã, nos últimos anos, tornou-se capital para a Igreja. Na América Latina, tal reflexão vem consolidando-se e direcionando a prática catequética nas dioceses e paróquias. Nesse horizonte, a Revista traz abordagens sobre a inspiração catecumenal na educação da fé, para se pensar a catequese a serviço da iniciação à vida cristã; diretrizes para a formação de catequistas, de acordo com o Ritual de Iniciação Cristã de Adultos (RICA); o RICA como fonte de inspiração para o itinerário catequético infantil; itinerário de formação para os casais, como um caminho de iniciação cristã. Em outra perspectiva, apresenta a importância da narração na transmissão da fé nos novos contextos familiares, com base na historicidade e trajetória social da família e em uma experiência in loco. Apresenta, também, uma abordagem sobre as fontes da espiritualidade cristã, à luz do pensamento de Anselm Grün. Discute, ainda, a teologia do Salmo 133, sua caracterização e conteúdo próprios e, na mesma medida, de João 1,1-8, na perspectiva de uma leitura catequética. Ademais, apresenta uma reflexão sobre a misericórdia, o direito e a justiça; a liberdade humana, sua condição e sentido; as relações entre cristãos e judeus sob o pontificado de Inocêncio III. Por fim, traz os antecedentes e a crônica da 55ª Assembleia Geral (AG) da CNBB, o documento sobre a Iniciação à Vida Cristã. Esperamos que esta edição possa despertar profundas reflexões sobre a vida pastoral da Igreja; com isso, contribuir para a formação de catequistas, fortalecendo, ainda mais, o seu compromisso com o projeto salvador de Deus. Boa leitura! Antonio Wardison C. Silva Editor

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São Paulo, ano 39, 40, n. 148, 149, jul./dez. jan./jun. 2016. 2017.

ARTIGOS ARTIGOS A INSPIRAÇÃO CATECUMENAL NA EDUCAÇÃO DA FÉ: CATEQUESE A SERVIÇO DA INICIAÇÃO À VIDA CRISTÃ CATECHUMENAL INSPIRATION IN FAITH FORMATION: CATECHESIS AT THE SERVICE OF CHRISTIAN INITIATION Ariél Philippi Machado* Marlene Bertoldi**

RESUMO: A restauração do catecumenato cristão exige, nos dias atuais, uma compreensão ampliada dos conteúdos da fé. O presente artigo sugere uma reflexão inicial acerca dos conteúdos da fé cristã, sua relação com a doutrina e os aspectos essenciais para a educação da fé no processo formativo da iniciação cristã. Para isso, são contempladas as quatro partes do Catecismo da Igreja Católica, como elementos estruturais da catequese a serviço da iniciação à vida cristã. Esses elementos querem contribuir para o entendimento de que o Tempo do Catecumenato, derivado do Querigma, é o tempo essencial de fazer conhecer as razões de nossa fé e de nossa esperança (1Pd 3,15). Palavras-chave: Educação da fé. Catequese. Iniciação à Vida Cristã. ABSTRACT: The restoration of the Christian catechumenate today requires an expanded understanding of the contents of the faith. The present article provides an initial reflection on the contents of the Christian faith, its relation to doctrine and the essential aspects of faith formation in the educative process of the Christian initiation. To this end, the four parts of the Catechism of the Catholic Church are reflected upon as structural elements of catechesis in the service of initiation into Christian life. Each of these elements contributes to an understanding of the fact that the time set aside for the Catechumenate, as derived from the Kerygma, is a time that is essential to the process of coming to know and understanderstand the reasons for our faith and our hope (1Pd 3,15). Keywords: Faith Formation. Catechesis. Christian Initiation.

INTRODUÇÃO “E o menino crescia, tornava-se robusto, enchia-se de sabedoria; e a graça de Deus estava com ele” (Lc 2,40). O movimento de restauração do catecumenato em nossos dias deu-se a partir do Concílio Ecumênico Vaticano II (1962-1965), mais especificamente após a revisão do Ritual da Iniciação Cristã * Licenciado em Matemática pela Unisul, Bacharel em Filosofia pela FSL-Brusque e Bacharel em Teologia pela FACASC. Procurador Institucional da FACASC e Professor no Curso de Extensão em Teologia Bíblico-Catequética. ** Especialista em Catequética pela PUC-PR, Bacharel em Teologia e Catequética pela Urbaniana (ROMA); Professora de Teologia Catequética na FACASC; Coordenadora da Animação Bíblico-Catequética da Arquidiocese de Florianópolis e da CNBB Regional Sul 4. Sãoano Paulo, ano149, 39,p.n.5-15, 148, jan./jun. jul./dez. 2017. 2016. São Paulo, 40, n.

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ARTIGOS ARTIGOS de Adultos (RICA). Ali estão descritos os Tempos e Etapas do itinerário formativo que os candidatos à vida cristã precisam percorrer, na intenção de uma preparação capaz de construir a identidade cristã, a partir do primeiro anúncio, o Querigma. Por se tratar de um livro litúrgico, o RICA precisa ser conhecido e manuseado, pois apresenta celebrações que servem como sinais de passagem de um caminho progressivo da fé cristã pessoal dentro de uma comunidade eclesial. Nesse contexto, o RICA não é somente um mapa, mas uma escola. De fato, por iniciação cristã se entende a transformação radical do cristão, cumprida pela participação no Mistério Pascal de Cristo por meio dos três sacramentos de Iniciação: o Batismo, a Confirmação e a Eucaristia, e a sua adesão de fé, que o agregam à Igreja.1

O anúncio de Jesus Cristo caracteriza-se pelo testemunho e proclamação vivencial, gerando corações convertidos à mensagem evangélica, encarnada na pessoa de Jesus de Nazaré. O fato da encarnação revela que Deus está “inserido na vida e na história humana, respeitando nossas capacidades e modo de ser”.2 No anúncio de Jesus Cristo, o Pai mostra sua face de encontro, acolhida, misericórdia e salvação. Para o exercício de uma catequese coerente e fundamentada na Palavra de Deus, é preciso conhecer os elementos fundamentais do conteúdo do querigma, que pode ser concatenado a partir do que segue: a) Deus Pai criador b) Encarnação e vida de Jesus Cristo, filho de Deus c) Morte e ressurreição de Jesus Cristo, filho de Deus b’) Espírito Santo, amor entre o Pai e o Filho a’) Comunidade de fé: lugar do Ressuscitado, caminho para o Pai No interior destas reflexões, estão as diversas oportunidades do encontro de Deus com a humanidade, feito no amor, na ternura e na misericórdia. No discurso de Pedro, na casa de Cornélio, está presente o núcleo da fé cristã: “E nós somos testemunhas de tudo o que Jesus fez na terra dos judeus e em Jerusalém. Eles mataram Jesus, suspendendo-o numa cruz. Deus, porém, o ressuscitou no terceiro dia” (At 10,39-40). Cornélio, conhecido como pagão, é acolhido entre os seguidores de Jesus de Nazaré, crucificado e ressuscitado. Por isso pode-se afirmar: o querigma é resultado de um encontro em que interagem a fé e a vida, o humano e o divino, de tal modo que a fé é despertada no coração humano quando a vida é valorizada em todas as suas dimensões. O teólogo André Fossion explica que a partilha da fé é antes uma experiência pessoal com o totalmente Outro:

SILVA, Jerônimo Pereira. O RICA - um caminho de iniciação antes e depois do batismo. Revista de Lliturgia 42 (2015a) 249, p. 12-17. 2 CONFERÊNCIA NACIONAL DOS BISPOS DO BRASIL. Diretório Nacional de Catequese. 2. ed. São Paulo: Paulinas, 2006, n. 20. 1

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39, n. 149, 148, p. jul./dez. 2016. 2017. São Paulo, ano 40, 5-15, jan./jun.

ARTIGOS ARTIGOS Nesse sentido, propor a fé a alguém é, em primeiro lugar e antes de tudo, a manifestação da estima que se tem por ele em virtude do próprio amor de Deus que ele pessoalmente traz em si, quer ele saiba ou não, quer ele reconheça ou não”.3

Antes de se propor a fé, há uma exigência feita para cada fiel: a profissão da fé. Ou seja, a fé não é uma fonte de conquista, mas uma atitude inerente ao modo de ser de cada pessoa. Suas ações são reflexo da atitude íntima de crença. A partir do testemunho pessoal, a fé adquire a capacidade de projetar-se para o convívio comunitário. O anúncio de Jesus Cristo adquire significado quando é vivido na experiência comunitária. Por isso o uso adequado dos sinais, símbolos e gestos e a participação efetiva nas liturgias e rituais ajudam no processo de educação da fé. O Diretório Geral para a Catequese afirma que A educação permanente à fé se dirige não apenas a cada cristão, para acompanhá-lo no seu caminho rumo à santidade, mas também à comunidade cristã enquanto tal, para que amadureça tanto na sua vida interior de amor a Deus e aos irmãos quanto na sua abertura ao mundo como comunidade missionária.4

Em vista disso, o Querigma é sempre atual conforme renova e anima a comunidade de fé a crescer em conteúdo e na sua celebração. A catequese é costurada pelo fio condutor (Querigma), percorrendo um caminho de adesão pessoal, alimentada por meio da experiência de oração de cada fiel e pelas celebrações litúrgicas da comunidade de fé. Ao redor da profissão da mesma fé, estão unidos os fieis. Por isso podemos dizer: eu creio, nós cremos. Como apresenta o Diretório Nacional de Catequese “o perfil do catequista é um ideal a ser conquistado, olhando para Jesus, modelo de Mestre, de servidor e de catequista”.5 Por se tratar de um ideal, exige uma fé esclarecida, convicta, capaz de encantar as pessoas no seguimento de Jesus.

1 A Catequese a serviço da Iniciação à Vida Cristã “Feliz aquele que transfere o que sabe e aprende o que ensina” (Cora Coralina). O movimento catequético recebeu do Concílio Vaticano II a confirmação da necessidade de serem restauradas as iniciativas da Igreja Primitiva. A Constituição Dogmática Sacrossanctum Concilium sobre a Liturgia, aponta: Restaure-se o catecumenato dos adultos dividido em diversas etapas, introduzindose o uso de acordo com o parecer do Ordinário do local. Desta maneira, o tempo do catecumenato, estabelecido para a conveniente instrução, poderá ser santificado com os sagrados ritos a serem celebrados em tempos sucessivos (SC 64). FOSSION, André. O Deus desejável: proposição da fé e iniciação. Trad. Paulo Sérgio Carrara e Solange Maria do Carmo. São Paulo: Loyola, 2015, p. 36. 4 CONGREGAÇÃO PARA O CLERO. Diretório Geral para a Catequese. 5. ed. São Paulo: Paulinas, 2009, n. 70. 5 CONFERÊNCIA NACIONAL DOS BISPOS DO BRASIL. Diretório Nacional de Catequese, n. 262. 3

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ARTIGOS ARTIGOS Na sequência, os padres conciliares indicam os primeiros destinatários da reforma catequética em vistas de uma iniciação cristã efetiva e afetiva: “revejam-se ambos os ritos do Batismo de adultos, tanto os mais simples como o solene, tendo em conta a restauração do catecumenato” (SC, n. 66). O Concílio Vaticano II configura-se como uma verdadeira catequese sobre a pessoa humana assumida pelo mistério divino na encarnação do Verbo. Esse é o ponto de partida para a catequese de nossos dias como respostas às dificuldades e crises presentes nos processos de transmissão da fé e a educação para ela. No Documento de Aparecida comentam-se as novidades das mudanças presentes em nossos dias: A novidade dessas mudanças, diferentemente do ocorrido em outras épocas, é que elas têm alcance global que, com diferenças e matizes, afetam o mundo inteiro. Habitualmente são caracterizadas como o fenômeno da globalização. [...] como se costuma dizer, a história se acelerou e as próprias mudanças se tornam vertiginosas, visto que se comunica com grande velocidade a todos os cantos do planeta.6

Nesse contexto de mudanças e dúvidas, surge forte o apelo do apóstolo Pedro para os membros das comunidades cristãs desafiados na perseguição de seu tempo: santificai a Cristo, o Senhor, em vossos corações, estando sempre prontos a dar razão da vossa esperança a todo aquele que vo-la pede” (1Pd 3,15). Como dar razões da fé em Cristo num contexto mundial de tamanha contradição e pluralidade religiosa? O papel da catequese em nossos dias consiste em ir além da esfera sacramental e conteudista, por vezes impedindo a aproximação com o mistério. Apresentar as razões de uma fé convicta e testemunhal é o instrumento de trabalho do catequista no exercício da catequese, no ato de transmitir e educar para a fé. 1.1 Catequese e Doutrina A fonte da Catequese é a Palavra de Deus (CT 27). Sobre isso não há dúvidas, porque o Anúncio de Jesus Cristo (Querigma) é um conteúdo vivido, narrado e registrado no cânon bíblico. Inspirada na Palavra de Deus, a Igreja transmite o conhecimento da fé por meio da Catequese, na celebração litúrgica e com os argumentos da doutrina. Doutrina: “um conjunto coerente de ideias destinadas a ser transmitidas pelo ensino [...]. A doutrina não desce às aplicações práticas, mas permanece no plano dos grandes princípios”.7 Os princípios do cristão e da vida cristã estão contidos no Credo, os quais precisam ser conhecidos e proclamados. A tarefa da catequese nos dias atuais é despertar a fé, como uma decorrência do Querigma. O anúncio de Jesus Cristo será fruto de uma catequese empenhada em suscitar a chama da fé presente em cada pessoa humana, sendo capaz de integrar nesta tarefa as múltiplas realidades que compõem a vida do homem e da mulher do século 21. O conteúdo a ser ensinado é o relato bíblico do Mistério Pascal de Jesus Cristo. Dele, decorrem CONFERÊNCIA GERAL DO EPISCOPADO LATINO-AMERICANO E DO CARIBE V. Documento de Aparecida: texto conclusivo. Brasília: CNBB; São Paulo: Paulus; São Paulo: Paulinas, 2007, n. 34. 7 ÁVILA, Fernando Bastos. Pequena Enciclopédia de doutrina social da Igreja. São Paulo: Loyola, 1991, p. 162. 6

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ARTIGOS ARTIGOS conteúdos desenvolvidos pela Tradição e pelo Magistério da Igreja.8 Esses conteúdos estão compilados no Catecismo da Igreja Católica, distribuídos em quatro partes: Credo, Sacramentos, Moral - a vida em Cristo e Oração. 1.2 O Catecismo da Igreja Católica O Catecismo da Igreja Católica foi publicado pelo papa São João Paulo II, em 1992, por meio da Constituição Apostólica Fidei depositum para guardar o depósito da fé. Na Constituição, o papa explica: Um catecismo deve apresentar, com fidelidade e de modo orgânico, o ensinamento da Sagrada Escritura, da Tradição viva na Igreja e do Magistério autêntico, bem como a herança espiritual dos Padres, dos Santos e das Santas da Igreja, para permitir conhecer melhor o mistério cristão e reavivar a fé do povo de Deus.9

O Catecismo da Igreja Católica não é o único livro que contém as verdades da fé a serem conhecidas e transmitidas. Outras tantas obras da Igreja servem para o exercício da catequese. Aqui, desejamos apresentar de maneira sucinta os principais conteúdos da fé presentes no Catecismo. Na sequência, o papa São João Paulo II explica brevemente a articulação das quatro partes do catecismo: O Catecismo da Igreja Católica por um lado retoma a “antiga” ordem, a tradicional, já seguida pelo Catecismo de são Pio V, articulando o conteúdo em quatro partes: o Credo; a sagrada Liturgia, com os sacramentos em primeiro plano; o agir cristão, exposto a partir dos mandamentos; e, por fim, a oração cristã. Mas, ao mesmo tempo, o conteúdo é com frequência expresso de modo “novo”, para responder às interrogações de nossa época.10

A inspiração do Catecismo da Igreja Católica é motivadora dos conteúdos expostos em seguida, para articular o Tempo do Querigma por meio do Rito de Admissão com o Tempo do Catecumenato. 1.2.1 O Credo: a fé professada O Credo é profissão de fé. Identifica o fiel à sua tradição e comunidade religiosas. Nele estão os conteúdos do Querigma, por isso é tão necessário ser conhecido para ser bem celebrado. O teólogo André Fossion explica que: O Credo, com efeito [...], longe de bloquear a comunicação no dogmatismo, fala do mistério da comunicação. Fala de um Deus que é, em si mesmo, uma unidade amante de comunicação (a Trindade), que se comunica (história da salvação) e faz viver em comunicação (a vida humana e seu desenvolvimento o possível na fé). Assim, a partir do Credo, é o conjunto do mistério cristão que pode ser compreendido como mistério da comunicação em Deus, de Deus e segundo (no Espírito de) Deus.11 Conservar a Tradição e a Escritura por meio da vivência e do testemunho da fé é tarefa dos astores e fieis. A interpretação autêntica da Tradição ou da Escritura, porém, está confiada ao Magistério da Igreja. O Magistério está, assim, a serviço da Palavra de Deus: da Tradição e da Escritura tira o que propõe para ser crido como divinamente revelado. CONFERÊNCIA NACIONAL DOS BISPOS DO BRASIL. Catequese Renovada. São Paulo: Paulus; Paulinas, 1983, n. 62. 9 CATECISMO da Igreja Católica. São Paulo: Loyola, 2000. 10 Constituição Apostólica Fidei depositum 3. 11 FOSSION, André. O Deus desejável, p. 128. 8

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ARTIGOS ARTIGOS Nesses termos, podemos perceber a estrutura rica e densa que compõe o Credo cristão, deixando evidente que seus artigos tratam da origem, manutenção e destino da vida gerada em Deus criador, redentor e santificador. A fé anunciada no Querigma, guardada e professada na comunidade que crê, vai aos poucos sendo educada pela catequese. Por isso que “a profissão de fé está entre os momentos essenciais de resposta à Palavra de Deus proclamada na celebração eucarística”.12 A educação da fé passa pelo conhecimento dos princípios e verdades da religião cristã, mas estará sempre intimamente ligada a sua fonte primordial, o relato bíblico, vivido e narrado por um povo ao qual Deus se revelou. Na sua tríplice formulação (batismal, apostólica, Niceno-Constantinopolitana), o credo tem por fim assumir o encargo de glorificar a identidade de Deus uno e trino e, ao mesmo tempo, proclamá-la e afirmá-la pessoalmente, confessando os conteúdos essenciais da fé recebida por meio da Palavra que foi proclamada.13

A formulação batismal é feita por meio de perguntas e respostas por ocasião da Vigília Pascal, na liturgia batismal, e nas renovações das promessas do Batismo. A formulação apostólica, também conhecida como Símbolo dos Apóstolos, é a fórmula do Credo mais comum nas celebrações eucarísticas no Brasil. E a formulação Niceno-Constantinopolitana - definida nos Concílios de Niceia (325 d.C.) e Constantinopla (381 d.C.) - é menos comum em nossas liturgias, porém é a mais completa em termos de artigos da fé. Todas elas carregam a profissão de fé cristã. A fé, como atitude individual de abertura à graça de Deus, é uma realidade possível de ser conhecida e argumentada. Mais que isso, fala-se hoje de fé inteligente. Veja: Um dos maiores desafios da catequese de hoje é o da inteligência da fé. Uma catequese orgânica e sistemática que convida os cristãos a ser capazes “de dar razões de sua fé” tanto a seus próprios olhos quando no diálogo com os outros [...]. Poder “dar razão da fé” é também se mostrar capaz de expressar novamente de maneira pessoal a fé de todos, simbolizada pelo Credo.14

Vale ressaltar, ainda, que liturgicamente o Credo é conhecido como símbolo, porque é um resumo da fé cristã com base nos relatos da Sagrada Escritura. As verdades da fé escritas nos artigos que compõem o Credo estão intimamente ligadas ao conteúdo do Querigma e ao grande depósito da fé contido na Palavra de Deus. 1.2.2 Os Sacramentos: a fé celebrada A Tradição da Igreja acredita que a fé celebrada é a fé acreditada e a fé acreditada é a fé celebrada. Lex orandi lex credendi: a norma da oração estabelece a norma da fé. No processo de iniciação à vida cristã, e não apenas nele, o serviço de rezar a fé é prestado pela Liturgia. A Palavra LIT – URGIA vem da língua grega: laos = povo e ergon = ação, trabalho, serviço, ofício...Unindo os dois termos que formam a palavra, encontramos a raiz mais profunda

SILVA, Jerônimo Pereira. A forma estética da profissão de fé na liturgia. Revista de liturgia 42 (2015b) 252, p. 22-27. Ibid., p. 26. 14 FOSSION, André. O Deus desejável, p. 143. 12 13

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ARTIGOS ARTIGOS do significado da LITURGIA, ou seja: AÇÃO, trabalho, serviço do povo e realizado em benefício do povo, isto é: um serviço público, como dizemos hoje.15

A liturgia é, desse modo, o espaço onde os fiéis devem sentir-se à vontade para celebrar o que conhecem. Do contrário, a atenção desvia-se para o irrisório de conhecer apenas quem está celebrando comigo e não o que estamos celebrando juntos. A comunidade celebrante dá o sabor da fé que confessamos, da mesma forma que os comensais saboreiam os primeiros frutos da colheita. Pela Liturgia, a comunidade vive e celebra os sinais da fé pelos sacramentos e sacramentais com a função de comunicar e entregar aos candidatos a graça divina. O sacramento é sinal visível da graça invisível, de acordo com são Tomás de Aquino. A função comunicadora desses sinais é a grande oferta da comunidade de fé e seu momento mais forte de catequese. O desafio da iniciação à vida cristã é confirmar a missão da comunidade cristã que exala o doce perfume de Cristo. A missão visa proclamar e fazer experimentar o mistério, não escondê-lo. Mas ao mesmo tempo não podemos banalizar o acesso ao sagrado como se estivéssemos distribuindo algo sem consequências sérias. O querigma (primeiro anúncio, pregação missionária) é para todos; mas os mistérios (sacramentos) são para aqueles que foram iniciados na fé.16

A iniciação será bem-feita quando a comunidade tomar consciência de que existe para favorecer a festa. Ela [a comunidade] é o local por excelência da comemoração, por isso local da celebração. “Para uma compreensão mais clara do caminho de iniciação à vida cristã que tem o catecumenato como modelo, é necessário voltar para o Ritual de Iniciação Cristã de Adultos”.17 A inspiração catecumenal faz da ação catequética um modo de ser igreja alegre, celebrativa e orante. A Tradição considera que as celebrações sejam oferecidas para guardar o modo de ensinar a fé. As celebrações de maior relevância são: - Rito de Admissão; - Rito da Entrega do Credo, da Oração do Senhor e dos Mandamentos; - Rito de Eleição; - Escrutínios e Exorcismos; - Celebração dos Sacramentos. O RICA salienta o seguinte: “as entregas [...] devem ser celebradas quando os catecúmenos derem sinal de maturidade. Em caso contrário não se realizem”.18 A comunidade de fé é a responsável pela transmissão da fé em seus momentos celebrativos, garantindo a harmonia e participação de todos e todas em seus ritos e festas de comunidade.

CONFERÊNCIA NACIONAL DOS BISPOS DO BRASIL. Liturgia em mutirão: subsídios para formação. Brasília: CNBB, 2007, n. 2. 16 Id. Iniciação à Vida Cristã: um processo de inspiração catecumenal. Brasília: CNBB, 2009b, n. 42. 17 CONSELHO EPISCOPAL LATINO-AMERICANO. A alegria de iniciar discípulos missionários na mudança de época. Trad. Tábio Maia dos Santos. Brasília: CNBB, 2015, 44. 18 RITUAL DA INICIAÇÃO CRISTÃ DE ADULTOS. 7. ed. São Paulo: Paulus, 2011, n. 125. 15

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ARTIGOS ARTIGOS 1.2.3 A Moral: a fé vivida O Querigma carrega consigo um modo divino de ser: a quênosis. Ela se manifestou na humildade do Verbo encarnado ao encontrar e assumir a realidade humana frágil e esquecida. Escreveu São Paulo aos Filipenses: “Tende em vós o mesmo sentimento de Cristo Jesus: Ele, estando na forma de Deus, não usou de seu direito de ser tratado como um deus, mas se despojou, tomando a forma de escravo” (Fl 2,5-6). A moral cristã é um modo de vida escolhido como confirmação de um projeto maior. De todo modo, é bom conhecer e entender melhor o que é moral. Para o Pe. Márcio Bolda da Silva, é necessário: Explicitar que a concepção mais elementar de moral, subentendida nas nossas vivências, está escorada na constatação de que existe entre nós um fenômeno comum: a ação, o agir, o comportamento, a conduta, a práxis [...]. Não paramos aí, pois o problema intrincado surge quando o juízo, o julgamento, de fato, se converte em juízo moral. Isso aparece no momento em que começamos a avaliar certo tipo de comportamento ou de ação se é bom ou mau. É nesse momento que a ação já não é mera ação humana...A ela é acrescida a qualidade determinante de ser ação moral.19

O conteúdo da moral cristã tem sua base nas bem-aventuranças, como projeto do reino de Deus, que ganham forma na estrutura dos mandamentos, guardando no centro a vida, dom de Deus. Antonio Pagola, ao comentar o conteúdo das bem-aventuranças, explica que: A moral não consiste em cumprir leis impostas arbitrariamente por Deus. Se Ele quer que demos ouvidos às exigências morais que levamos dentro do coração, é porque seu cumprimento é bom para nós. Deus não proíbe o que é bom para o ser humano nem obriga ao que pode ser prejudicial. Ele só quer o nosso bem.20

A terceira parte do Catecismo apresenta, portanto, os modos de que o ser humano dispõe para alcançar o seu fim último: viver bem, porque é criado à imagem e semelhança de Deus. Viver bem com a ajuda da fé é a resposta que o mundo precisa diante de tantas atitudes que maltratam, condenam e matam a vida de crianças, mulheres, idosos, imigrantes, pessoas esquecidas pela sociedade, que vivem na periferia dos interesses dos poderosos. Um só é o desejo de Deus e a causa pela qual cristãos e cristãs devem gastar a sua vida: a vida plena para todos (Jo 10,10). 1.2.4 A Oração: a fé rezada A última parte do Catecismo da Igreja Católica é uma verdadeira escola de oração. Nela está explicada o modo como a pessoa humana estabelece sua relação com Deus. Como reza o salmista “a minha alma tem sede de Deus, do Deus vivo: quando voltarei a ver a face de Deus?” (Sl 42,3), ou, ainda, “das profundezas eu clamo a ti, Senhor: Ouve o meu grito! Que teus ouvidos estejam atentos ao clamor da minha oração!” (Sl 130,1-2), a oração é instrumento de comunicação com Deus. Para ensinar seus fieis a rezarem com qualidade e devoção, o Catecismo apresenta a Oração do Pai Nosso como modelo de vida orante da Igreja. Na Oração do Senhor, como é conhecida, estão presentes as realidades pelas quais o ser humano deseja, mas entregues na vontade e sabedoria do Pai. SILVA, Márcio Bolda da. Parâmetros de fundamentação moral: ética teológica ou ética filosófica? Petrópolis: Vozes, 2005, p. 14. 20 PAGOLA, José Antonio. O caminho aberto por Jesus: Mateus. Trad. Lúcia Mathilde Endlich Orth. Petrópolis: Vozes, 2013, p. 69. 19

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ARTIGOS ARTIGOS Toda pessoa humana tem suas necessidades, seus pedidos a fazer a alguém. Por sua vez, todos e todas também possuem muito que agradecer, para louvar a Deus pelas graças que recebe a cada dia. Este modelo de oração de louvor encontramos no relato de são Lucas: “Eu te louvo, ó Pai, Senhor do céu e da terra, porque ocultaste essas coisas aos sábios e entendidos, e as revelastes aos pequeninos” (Lc 10,21). Mas, de todos os momentos de oração e intimidade que Jesus teve, ele ensinou a chamar Deus de Pai, com a atitude de confiança, ternura e carinho como tratava as pessoas. Abaixo, a oração do Pai Nosso com uma releitura feita por Rubem Alves: Pai...Mãe...de olhos mansos: sei que estás, invisível, em todas as coisas. Que o teu nome me seja doce, a alegria do meu mundo. Traze-nos as coisas boas em que tens prazer: o jardim, as fontes, as crianças, o pão e o vinho, os gestos ternos, as mãos desarmadas, os corpos abraçados... faça-se a tua vontade assim na terra como nos Sei que desejas dar-me o meu desejo mais fundo, desejo que esqueci...Mas tu não esqueces nunca. céus; Realiza, pois, o teu desejo para que eu possa rir. Que o teu desejo se realize em nosso mundo, da mesma forma como ele pulsa em ti. Concede-nos contentamento nas alegrias de o pão nosso de cada dia dá-nos hoje; hoje: o pão, a água, o sono. Que sejamos livres da ansiedade. e perdoa-nos as nossas dívidas, assim como nós Que nossos olhos sejam tão mansos com os outros como os teus o são conosco. Porque temos perdoado aos nossos devedores; se formos ferozes não poderemos acolher tua bondade. e não nos deixes cair em tentação; mas livra-nos E ajuda-nos para que não sejamos enganados pelos desejos maus e livra-nos daquele que cardo mal. Amém. rega a Morte dentro dos próprios olhos. Amém. Pai nosso que estás nos céus, santificado seja o teu nome, venha o teu Reino,

2 A Catequese e a educação da fé “E quando amanhã o teu filho te perguntar: Que significa isso?” (Ex 13,14) A fé, para ser professada, precisa de conhecimento teórico, de prática concreta de vida e de momentos celebrativos em comunidade. Deus, em Si mesmo, é comunhão plena em três pessoas. Por isso não é concebível alguém afirmar que tem fé sem uma presença comunitária para expressar aquilo em que acredita. São Paulo, 40, n. 149, Sãoano Paulo, ano 39,p.n.5-15, 148, jan./jun. jul./dez. 2017. 2016.

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ARTIGOS ARTIGOS Um processo de iniciação à vida cristã que não leve em conta a dimensão formativa, inteligente e reflexiva da fé está sujeito aos ventos do “trânsito religioso”. O nó da questão recai sobre a identidade da fé. A fé, por estar inserida nas profundas mutações culturais, marcadas por incertezas e complexidade, exige perguntar-se constantemente por usa identidade.21

A fé cristã é resultado da revelação divina que remonta à eleição e formação do povo de Israel. Em vista disso, a Catequese tem seu ponto de partida na Palavra de Deus que, basicamente, conta a história da salvação revelada na história humana, culminando na encarnação, vida, paixão e morte de Jesus de Nazaré. Assim ensina o Diretório Geral para a Catequese: A catequese autêntica é sempre iniciação ordenada e sistemática à revelação que Deus fez de si mesmo ao homem, em Jesus Cristo; revelação esta conservada na memória profunda da Igreja e nas Sagradas Escrituras, e constantemente comunicada, por uma traditio (tradição) viva e ativa, de uma geração para a outra.22

Tendo conhecido as linhas gerais da doutrina cristã: Credo, Liturgia e os Sacramentos, a vida em Cristo (mandamentos) e a Oração, a catequese é responsável por educar a fé da comunidade, de modo orgânico e processual. Aqui está a explicação do Segundo Tempo da inspiração catecumenal, o chamado Tempo do Catecumenato (Catequese), responsável pela explicação do núcleo central da fé que foi anunciado no Querigma (Primeiro Tempo). Articular educação, celebração e vivência da fé não é um exercício tão simples. Por se tratar de uma revelação divina e de uma adesão livre do ser humano, a transmissão da fé é, sobretudo, um exercício de paciência. Não se nasce cristão, tampouco torna-se cristão da noite para o dia, numa experiência de tipo místico/emocional. Um cristão se forja, se modela. Tornar-se cristão é um trabalho artesanal, de paciência, escuta, leitura. É um trabalho de mergulho nas profundezas do grande mistério do encontro e do conhecimento de uma pessoa, Jesus Cristo.23

O Diretório Nacional de Catequese ensina: “o mistério de Cristo anunciado na catequese é o mesmo que é celebrado na liturgia para ser vivido”.24 A catequese educa a fé. Assim, é possível afirmar que, sem uma boa catequese, não é possível celebrar bem. A fé celebrada na comunidade depende do ensinamento prévio dos sinais, gestos, símbolos e fórmulas usados na liturgia para serem praticados na vida e na missão.

Considerações finais Entendendo a doutrina da Igreja Católica é possível também entender que a profissão de fé pessoal implica a confirmação da fé na comunidade: eu creio, nós cremos. Professar os princípios da fé cristã implica compromisso de anúncio da Boa Nova e de testemunho visível da fé. REINERT, João Fernandes. Paróquia e iniciação cristã: a interdependência entre renovação paroquial e mistagogia catecumenal. São Paulo: Paulus, 2015, p. 189. 22 CONGREGAÇÃO PARA O CLERO. Diretório Geral para a Catequese. 5. ed. São Paulo: Paulinas, 2009, n. 66. 23 SILVA, Jerônimo Pereira. O RICA, p. 15. 24 CONFERÊNCIA NACIONAL DOS BISPOS DO BRASIL. Diretório Nacional de Catequese. 2. ed. São Paulo: Paulinas, 2006, n. 119. 21

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ARTIGOS ARTIGOS O testemunho de vida é respaldado na perseverança dos agentes de pastoral, mais concretamente no exercício dos diversos ministérios existentes nas dioceses e paróquias. Quando na iniciação cristã a inteligência da fé e a dimensão da formação são comprometidas, torna-se extremamente difícil a perseverança na fé. [...] A deficiência na formação dos agentes de pastoral compromete a iniciação cristã em particular e a missa da Igreja em geral.25

Nessa perspectiva, a Catequese é específica para o processo de formação dos candidatos à comunidade cristã, iniciados sacramentalmente. Contudo é processo contínuo para todo cristão e cristã batizados, cuja missão tríplice recebida é dirigir o culto e as orações, organizar a comunidade e servir as pessoas para que tenham vida em abundância (Jo 10,10). Resumindo, de tudo o que foi explicitado com relação aos conteúdos da fé, afirma-se que as tarefas principais da catequese são: ajudar a conhecer, celebrar, viver e contemplar o mistério de Cristo.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ÁVILA, Fernando Bastos. Pequena Enciclopédia de doutrina social da igreja. São Paulo: Loyola, 1991. CATECISMO da Igreja Católica. São Paulo: Loyola, 2000. CONFERÊNCIA GERAL DO EPISCOPADO LATINO-AMERICANO E DO CARIBE V. Documento de Aparecida: texto conclusivo. Brasília: CNBB; São Paulo: Paulus; São Paulo: Paulinas, 2007. CONFERÊNCIA NACIONAL DOS BISPOS DO BRASIL. Catequese Renovada. São Paulo: Paulus; São Paulo: Paulinas, 1983. _____. Diretório Nacional de Catequese. 2. ed. São Paulo: Paulinas, 2006. _____. Liturgia em mutirão: subsídios para formação. Brasília: CNBB, 2007. _____. Iniciação à Vida Cristã: um processo de inspiração catecumenal. Brasília: CNBB, 2009. CONGREGAÇÃO PARA O CLERO. Diretório Geral para a Catequese. 5. ed. São Paulo: Paulinas, 2009. CONSELHO EPISCOPAL LATINO-AMERICANO. A alegria de iniciar discípulos missionários na mudança de época. Trad. Tábio Maia dos Santos. Brasília: CNBB, 2015. FOSSION, André. O Deus desejável: proposição da fé e iniciação. Trad. Paulo Sérgio Carrara e Solange Maria do Carmo. São Paulo: Loyola, 2015. REINERT, João Fernandes. Paróquia e iniciação cristã: a interdependência entre renovação paroquial e mistagogia catecumenal. São Paulo: Paulus, 2015. RITUAL DA INICIAÇÃO CRISTÃ DE ADULTOS. 7. ed. São Paulo: Paulus, 2011. SILVA, Jerônimo Pereira. O RICA - um caminho de iniciação antes e depois do batismo. Revista de liturgia 42 (2015a) 249. _____. A forma estética da profissão de fé na liturgia. Revista de liturgia 42 (2015b) 252. SILVA, Márcio Bolda da. Parâmetros de fundamentação moral: ética teológica ou ética filosófica? Petrópolis: Vozes, 2005.

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REINERT, João Fernandes. Paróquia e iniciação cristã, p. 192. São Paulo, Sãoano Paulo, 40, n. ano149, 39,p.n.5-15, 148, jan./jun. jul./dez. 2017. 2016.

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ARTIGOS ARTIGOS LINHAS DE FORMAÇÃO PARA OS FUTUROS MINISTROS DE CATEQUESE SEGUNDO O RITUAL DE INICIAÇÃO CRISTÃ DE ADULTOS (RICA) GUIDELINES FOR THE FORMATION AND TRAINING OF FUTURE CATECHETICAL MINISTERS ACCORDING TO THE RITE OF CHRISTIAN INITIATION FOR ADULTS (RCIA) Elilzo Marques de Oliveira* João dos Santos Barbosa Neto**

RESUMO: Neste artigo busca-se apresentar uma proposta inovadora que englobe os aspectos litúrgicos, pedagógicos e catequéticos na formação dos catequistas. O catequista é a maior expressão do Ministério de Catequese. Este Ministério de Catequese ocupa-se da formação dos catequistas, do acompanhamento dos catequizandos e do plano pastoral de catequese nos âmbitos diocesano e paroquial. Nessa perspectiva salienta-se a formação dos catequistas utilizando as linhas de formação do caminho catecumenal apresentado pelo Ritual de Iniciação Cristã Adulta (RICA), como modelo e paradigma para a formação dos futuros ministros de catequese. O ano litúrgico torna-se o período privilegiado para o amadurecimento das dimensões humana, espiritual e intelectual dos catequistas. Ao final desse itinerário, os candidatos realizarão um escrutínio e poderão ser admitidos no Ministério de Catequese. Palavras-chave: Ministério da Catequese. Teologia Catequética. Teologia Pastoral. ABSTRACT: This article present an innovative proposal for the training of catechists that includes liturgical, pedagogical and catechetical aspects of catechetical ministry. The catechist is the greatest expression of the Ministry of Catechesis. This Ministry of Catechesis deals with the formation of catechists, the accompaniment of those involved in catechetical training and the pastoral plan for catechesis in dioceses and parishes. Viewed from this perspective, emphasis is placed on the formation of catechists using the guidelines of formation for the catechumenal way as presented in the Rite of Christian Initiation for Adults (RCIA), as a model and a paradigm for the formation of future catechetical ministers. The liturgical year serves as a privileged period of time for fostering the development of the human, spiritual and intellectual dimensions of the catechists’ formation. At the end of this fomative journey, candidates will undergo a scrutiny and then may be admitted to the Ministry of Catechesis. Keywords: Ministry of Catechesis. Catechetical Theology. Pastoral Theology.

Introdução A Igreja em sua missão de catequizar dedica grandes esforços à formação integral dos agentes de pastoral encarregados dessa tarefa, que é uma preocupação permanente e viva. Nesse sentido, o Diretório Geral para a Catequese registra que é preciso “organizar adequadamente a formação dos Bacharel em Filosofia (SEDAC/MT), Bacharel em Teologia (SEDAC/MT), Mestre em Teologia (UPS/ITÁLIA). Sacerdote Arquidiocesano de Cuiabá. E-mail: [email protected]. ** Licenciado em Filosofia (UCDB/MS), Bacharel em Teologia (UPS/ITÁLIA), Pós-graduado lato sensu em Counseling (IATES/ PR), Pós-graduado lato sensu em Psicopedagogia (UCDB/Portal Educação), Mestre em Teologia Pastoral (UPS/ITÁLIA) e Doutorando em Teologia Pastoral (UPS/ITÁLIA). Salesiano Sacerdote. E-mail: [email protected]. *

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ARTIGOS ARTIGOS catequistas no que concerne tanto à formação de base quanto à formação permanente”1. O Diretório Nacional de Catequese, tendo consciência da prioridade na formação e preparação integral do catequista, ensina da seguinte forma: O momento histórico em que vivemos, com seus valores e contravalores, desafios e mudanças, exige dos evangelizadores preparo, qualificação e atualização. Nesse contexto, a formação catequética de homens e mulheres é prioridade absoluta. Qualquer atividade pastoral que não conte, para sua realização, com pessoas realmente formadas e preparadas coloca em risco a sua qualidade2.

Os bispos do Brasil, seguindo as indicações do Diretório Geral para a Catequese, afirmam que a Igreja como sujeito global da catequese é também espaço próprio dos serviços e ministérios. É dentro da Igreja e a serviço de sua vida e de sua missão que se situam os serviços e os ministérios3. A própria Conferência dos Bispos do Brasil afirma que “ministério não é poder. Ministério não é honra. Ministério não é prêmio. Ministério não é distintivo de superioridade. Ministério não é título de desigualdade. Ministério é ‘diakonia’, isto é, serviço suscitado e sustentado pelo Deus amor”4. É importante que o reconhecimento por parte da Igreja fosse dispensável se se tratasse de um simples serviço, mas é imprescindível quando se trata de um ministério. A Igreja reconhece que, “no conjunto de ministérios e serviços com os quais ele realiza a sua missão evangelizadora, ocupa lugar destacado o ministério da catequese”5. O serviço da catequese, embora desempenhado por meio de muitos agentes terá sempre o objetivo de educar a fé e acompanhar o seu amadurecimento tanta na realidade da diocese quanto da paróquia. “A catequese tem sido sempre e continuará a ser uma obra pela qual toda a Igreja se deve sentir e mostrar responsável. Os membros da Igreja, é certo, têm responsabilidades distintas, segundo a missão de cada um” (Cf. CT 16)6; a responsabilidade mesmo que diferenciada é comum e, embora comum, é diferenciada. Cada agente é chamado a realizar a própria vocação eclesial (com seu dom e carisma), em sua condição concreta de modo interdependente com os outros membros da Igreja que colaboram com o Ministério da Catequese. O sujeito ativo da ação evangelizadora, no entanto, é em última instância a Igreja particular. A Sacrosanctum Concilium orienta desta forma: “as ações litúrgicas não são ações privadas, mas celebrações da Igreja, que é ‘sacramento de unidade’, isto é, Povo santo reunido e ordenado sob a direção dos Bispos” (SC 26)7. E por sua vez o Diretório Nacional de Catequese confirma e reforça que a catequese é uma atividade de várias pessoas, pois é “através dos seus vários agentes, que atuam em seu nome, que a Igreja anuncia, catequiza, batiza, celebra a Eucaristia” (DNC 242)8. Desse modo, numa Igreja toda ministerial, o catequista é chamado a assumir seu papel de ministro, num Ministério que não é ligado a um sacramento, mas a um serviço de grande relevância, pois faz Congregação para o Clero. Diretório Geral para a Catequese. São Paulo: Paulinas, 2009, n. 233. Cnbb. Diretório Nacional da Catequese. São Paulo: Paulinas, 2006, n. 252. (Documentos da CNBB 84). 3 Cf. Cnbb. Ministério do Catequista. São Paulo: Paulus, 2006, p. 43. (Estudos da CNBB 95). 4 Ibid., p. 44. 5 Ibid., p. 39. 6 Cf. João Paulo II. Exortação Apostólica Catechesi Tradendae, 16 de outubro de 1979, in AAS 71 (1979) 1277-1340. 7 Concílio Ecumênico Vaticano II. Constituição Conciliar sobre a Sagrada Liturgia Sacrosanctum Concilium, 04 de dezembro de 1963, in AAS 56 (1964) 97-133. 8 Cnbb. Diretório Nacional de Catequese. São Paulo: Paulinas, 2006. (Documentos da CNBB 84). 1 2

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ARTIGOS ARTIGOS parte da essência da missão evangelizadora na tradição da Igreja. O Ministério da Catequese é responsável por tudo o que diz respeito à catequese: a formação dos catequistas, o acompanhamento dos catequizandos, as metodologias dos encontros, os materiais didáticos e pedagógicos e, por fim, do plano pastoral de catequese nos âmbitos diocesano e paroquial. A eficácia da catequese depende da seriedade do trabalho orgânico de todos os agentes: A totalidade da catequese só se dá na totalidade dos sujeitos, dos agentes, dos âmbitos, das modalidades e dos meios que formam o rosto completo da mensagem e da realidade eclesial que catequistas e catequizandos dialeticamente compartilham: ‘se faltasse alguma dessas formas de presença, a catequese perderia parte de sua riqueza e significação’ (DGC 219) na Igreja9.

1 Tornar-se ministro de Catequese conforme o RICA A opção por essa proposta de formação parte da liturgia como fonte e experiência espiritual que conduz a pessoa à opção fundamental por Cristo: “Para mim, de fato, o viver é Cristo” (Fp 1, 21). Aproveita-se da riqueza e profundidade do ano litúrgico como itinerário formativo dos candidatos a catequista do Ministério da Catequese a viverem do que a “liturgia faz viver: o perdão invocado, a Palavra de Deus escutada, a ação de graças elevada, a Eucaristia recebida como comunhão. Se vivem da liturgia, os fiéis viverão de Cristo e para Cristo”10. A harmonia entre o processo formativo e a ação litúrgica fornece a possibilidade de atingir a interioridade das dimensões do ser humano, num processo que plasma as vontades e decisões da pessoa aquelas de Jesus Cristo. Nessa linha, assim diz o texto ‘Educare alla vita buona del Vangelo’: A liturgia é escola permanente de formação ao redor do Senhor ressuscitado, local educativo e revelador no qual a fé adquire forma e é transmitida. Na celebração litúrgica o cristão aprende a degustar como é bom o Senhor, passando do nutrimento do leito ao alimento sólido (cf. Hb 5, 12-14), ‘até atingir a medida da plenitude de Cristo’ (Ef 4, 13). Entre as numerosas ações desenvolvidas pela paróquia, nenhuma é tanto vital ou formativa para a comunidade quanto a celebração dominical do Senhor e da Eucaristia11.

O teólogo e liturgista Damásio Medeiros explica esse texto da seguinte forma: “esta citação nos ajuda a entrever a tarefa da pastoral litúrgica, traduzida em termos praticáveis, colhida como lugar de revelação e educação, manifestando desse modo o verdadeiro objetivo da educação cristã”12. Além disso, ele sintetiza e esclarece a riqueza da liturgia para a formação: Na liturgia, pela sua própria natureza, há uma eficácia pedagógica, porque introduz os fiéis ao conhecimento do mistério celebrado. Por isso, na tradição antiga da Igreja, sem descuidar da inteligência sistemática dos conteúdos da fé, o caminho formativo do cristão assumia sempre um caráter experimental, em que era determinante o encontro vivo e persuasivo com Cristo, anunciado por uma testemunha autêntica. Nesse sentido, Cnbb. Ministério do Catequista. São Paulo: Paulus, 2006, p. 47. (Estudos da CNBB 95). Boselli, Goffredo. O sentido espiritual da liturgia, Brasília: CNBB, 2014, p. 09. 11 Conferenza Episcopale Italiana. Educare alla vita buona del Vangelo. Orientamenti pastorali dell’episcopato italiano per il decennio 2010-2020, 4 ottobre 2010, n. 39. 12 Medeiros, Damásio. La nuova evangelizzazione nella prospettiva della pastorale liturgica. Salesianum 75 (2013) 1, p. 76. 9

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ARTIGOS ARTIGOS quem introduz nos mistérios é, sobretudo, uma testemunha, um discípulo missionário do Senhor Jesus.13

A inspiração desse itinerário provém da Arquidiocese de Cuiabá, pioneira na regulamentação, formação e divulgação do Ministério da Catequese no Brasil. Em seu Sínodo Arquidiocesano foi definida a necessidade de um tirocínio no período inicial de formação dos futuros Ministros de Catequese: “para se receber a investidura no Ministério do Catequista é necessário o tirocínio prático de três anos”14. Aqui se insere a sugestão deste artigo: este tirocínio, feito na comunidade, terá no catecumenato sua principal inspiração e na liturgia do Ritual de Iniciação Cristã de Adultos (RICA) sua concretização com uma proposta formativa de três anos. Os tempos e as celebrações do itinerário catecumenal para a Iniciação Cristã serão adaptados para a formação do leigo visando ao Ministério da Catequese. Essa perspectiva é de caráter pedagógicocatecumenal. O RICA prevê uma formação estreitamente “unida à história da salvação; restaura-se a antiga tradição de ensinar, a partir do próprio mistério. A história da salvação, apresentada ao candidato, faz perceber que a sua história pessoal e a da salvação da humanidade estão em estreita relação”15. Soma-se a isso a possibilidade de articular internamente ao processo formativo os três momentos do ministério da fé (o proclamar, o celebrar e o viver), da iniciação cristã à mistagogia16. Para favorecer a interação entre liturgia e catequese, o “RICA segue o critério da progressividade, a fim de iniciar um adulto na fé”17. O padre Alves de Lima, seguindo o RICA, afirma esquematicamente que o processo catecumenal é organizado em quatro tempos (períodos ou fases) e em três grandes celebrações ou etapas, das quais participam membros da comunidade, parentes e amigos: “O pré-catecumenato (1.º tempo): rito de admissão ao catecumenato (1.ª etapa). O catecumenato (2.º tempo): celebração da eleição ou inscrição do nome (2.ª etapa). A purificação e iluminação (3.º tempo): celebração dos sacramentos (3.ª etapa). A mistagogia (4.º tempo)”18.

2 O tempo da primeira evangelização ou do pré-catecumenato (1.º tempo) Este é um momento de acolhida na comunidade cristã, de busca e de preparação para o encontro pessoal com Jesus Cristo, como bem orienta Papa Francisco: Ao designar-se como primeiro este anúncio, não significa que o mesmo se situa no início e que, em seguida, se esquece ou substitui por outros conteúdos que o superam; é o primeiro em sentido qualitativo porque é o principal, aquele que sempre se tem de voltar a ouvir de diferentes maneiras e aquele que sempre se tem de voltar a anunciar, de uma forma ou de outra, durante a catequese, em todas as suas etapas e momentos (EG 164)19. Medeiros, Damásio. La nuova evangelizzazione nella prospettiva della pastorale liturgica. Salesianum 75 (2013) 1, p. 81. Santos, Milton dos. Sínodo Arquidiocesano de Cuiabá. Campinas: Art Brasil, 2008, n. 33. (Documento Conclusivo). 15 Lelo, Antônio Francisco. Pedagogia Catecumenal: moda ou herança? Revista de Catequese 32 (2009) 125, p. 14. 16 Medeiros, Damásio. La nuova evangelizzazione nella prospettiva della pastorale liturgica, p. 71. 17 Lelo, Antônio Francisco. Pedagogia Catecumenal: moda ou herança?, p. 14. 18 Lima, Luiz Alves de. Iniciação à Vida Cristã. Revista de Catequese 32 (2009) 127, p. 42. 19 Francisco. Exortação Apostólica Evangelii Gaudium sobre o anúncio do Evangelho no mundo atual. 24 de novembro de 2013, in AAS 105 (2013) 1019-1137. 13

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ARTIGOS ARTIGOS Recomendam-se quatro meses para o desenvolvimento do primeiro tempo, utilizando-se os meses temáticos de evangelização da Igreja. Inicia-se no mês vocacional de agosto, ao redor do dia 24 quando se celebra o Dia do Catequista, percorre-se os meses de setembro (mês da Bíblia), outubro (mês das Missões) e novembro, aproveitando-se de seus argumentos catequéticos para reforçar a formação com ações pastorais na comunidade cristã. Todo o percurso deve ser feito na paróquia, conduzido pelo pároco e pela equipe do Ministério da Catequese. Em agosto serão feitos vários anúncios vocacionais em consonância com a Igreja do Brasil, evidenciando a vocação de catequista ao interno do Ministério da Catequese. Os candidatos, previamente acompanhados pelo pároco, redigirão uma carta pedindo para iniciarem o processo de formação. Após terem os pedidos acolhidos, os candidatos serão apresentados à comunidade paroquial em 24 de agosto (Dia do Catequista), durante a celebração eucarística. Seguindo as orientações do RICA, sugere-se que os candidatos ingressem na celebração acompanhados pelos seus padrinhos. Cada um deles “representa a comunidade cristã local, acompanha o candidato no dia da eleição, na celebração dos sacramentos e durante o tempo da mistagogia”20. O querigma será feito da seguinte maneira ao grupo de candidatos: em setembro, com o estudo, oração e meditação do evangelho do ano litúrgico corrente. Encontros frequentes para juntos lerem e meditarem sobre a palavra dominical de Deus produzirão fecundos efeitos na preparação da liturgia dominical e um necessário aprofundamento bíblico em todas as pastorais. Em outubro, por meio de formação com conteúdo missionário: cristológico, bíblico, eclesiológico, formação de comunidade, universalidade da Salvação, piedade religiosa... Na medida do possível, essa formação culminará em ações durante as santas missões populares que promovam um encontro pessoal com Jesus Cristo, capazes de provocar uma conversão de vida. Esse período de primeira evangelização será concluso na solenidade de Cristo Rei do Universo. Essa celebração também comemora o Dia Nacional do Leigo e da Leiga. Os candidatos, então, com o pároco, com a equipe do Ministério da Catequese e com os padrinhos serão convidados para um escrutínio de discernimento. Após o escrutínio, aqueles que obtiverem do pároco um parecer positivo serão convidados a iniciarem o catecumenato e nominados ajudantes de catequistas.

3 O tempo do catecumenato (2.º tempo) Este período deve conduzir a uma sólida formação de base e de um contínuo amadurecimento vocacional. Por isso é importante que seja um tempo “suficientemente longo para: Catequese; Reflexão; Aprofundamento; Vivência Cristã; Conversão; Entrosamento com a Igreja. A 2.ª etapa de preparação para os sacramentos, através do rito da eleição”21. Com o objetivo de se tornar discípulo de Jesus Cristo e servir a comunidade cristã como ministro da catequese, busca-se aprofundar a vivência cristã na conversão, no engajamento e na missão da Igreja. É um período longo de aproximadamente dois anos, iniciando-se no Advento. 20 21

Congregação para o culto divino. Ritual de Iniciação Cristã de Adultos – RICA. São Paulo: Paulus, 2011, n. 43. Lima, Luiz Alves. Iniciação à Vida Cristã. Revista de Catequese 32 (2009) 127, p. 42.

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São Paulo, ano 40, 39, n. 149, 148, p. jul./dez. 16-24,2016. jan./jun. 2017.

ARTIGOS ARTIGOS É fundamental que no decorrer desse tempo os candidatos frequentem cursos preparatórios que os capacitem no exercício do ministério. Os cursos devem ser preparados por profissionais devidamente qualificados, de maneira sistemática e frequente e cumpram o objetivo de desenvolver as habilidades e competências cristológica, bíblica, litúrgica, pedagógica e catequética nos candidatos. A realização desse curso deverá ser na diocese ou, se as circunstâncias permitirem, pode ser desenvolvido na paróquia. É importante o respeito a um currículo pré-estabelecido e a uma adequada avaliação durante e ao final do curso. Importantíssimo é o acompanhamento da comunidade eclesial por meio de determinadas figuras em todo o percurso formativo. Aqui se volta a afirmar a importância do pároco, da equipe do Ministério da Catequese e do padrinho escolhido pelos candidatos. O RICA, apesar de permitir a livre escolha do padrinho, dá a seguinte orientação: “o candidato para ser admitido entre os catecúmenos seja acompanhado por um ‘garante’, homem ou mulher, que o conheça, o tenha ajudado e possa dar testemunho dos seus costumes, da sua fé e da sua vontade”22.

4 O tempo da purificação e da iluminação (3.º tempo) Esse é o período de preparação imediata para o ministério, definido pelo RICA: Os catecúmenos são objeto de uma preparação interior mais intensa. Esta tem mais em vista o recolhimento espiritual do que a catequese, e destina-se à purificação do coração e da mente, através do exame de consciência e a penitência, e à sua iluminação por meio do conhecimento mais aprofundado de Cristo Salvador. Tudo isto se faz por meio de vários ritos, sobretudo pelos escrutínios e pelas tradições ou entregas23.

Este tempo coincidirá com a Quaresma e a Semana Santa. No III, IV e V domingos da Quaresma serão celebrados os escrutínios, com a entrega do Símbolo da fé e da Oração do Senhor – Pai Nosso. Além das bênçãos aos candidatos nas missas da comunidade paroquial, sugere-se a realização de catequeses práticas com a Campanha da Fraternidade24. A liturgia da Palavra deve ser valorizada (orações bíblicas, lectio divina, estudos bíblicos) revelandose um momento importantíssimo para se entrar em contato e conhecer o Verbo encarnado. Nas missas, as leituras deverão ser feitas diretamente do Lecionário. Esse é um livro “que recolhe e proclama a mensagem da palavra de Deus, sobretudo, na liturgia dominical, goza de uma sua dignidade, porque constitui o depósito físico da Palavra”25. Este período é propício para experimentar o infinito amor de Deus por meio de uma boa preparação ao sacramento da Reconciliação. “A celebração deste sacramento é verdadeiro encontro com Cristo Redentor porque, através da Igreja, Jesus acolhe e perdoa os que se encontram em estado de pecado, de fraqueza”26. Congregação para o culto divino. Ritual de Iniciação Cristã de Adultos – RICA. São Paulo: Paulus, 2011, n. 42. Idem, n. 25. 24 Cf. Lima, Luiz Alves de. Iniciação à Vida Cristã. Revista de Catequese 32 (2009) 127, p. 42. 25 Medeiros, Damásio. Liturgia luogo privilegiato della parola di Dio. Considerazioni tra animazione liturgica e inculturazione. Rivista Liturgica 99 (2012) 2, p. 324. 26 Cnbb. Sou Católico. Vivo minha fé. Brasília: CNBB, 2007, p. 105. (Estudos da CNBB, 95). 22 23

148, jan./jun. jul./dez. 2017. 2016. São Paulo,São anoPaulo, 40, n.ano 149,39,p. n. 16-24,

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ARTIGOS ARTIGOS Recomenda-se que o rito de celebração do Ministério da Catequese seja realizado, ou na Vigília Pascal, ou no III Domingo de Páscoa. Entretanto ressalta-se que a escolha da data será definida pelo pároco e pela equipe de Ministério da Catequese.

5 O tempo da Mistagogia (4.º tempo) Este período deve ter um caráter formativo progressivo destinado aos novos ministros da catequese. Com a comunidade, os novos ministros “aprofundam mais o mistério pascal e procuram traduzi-lo cada vez mais na vida pela meditação do evangelho, pela participação na Eucaristia e pelo exercício da caridade”27. Essa formação será conduzida pela equipe de Ministério da Catequese com o objetivo de aprofundar o serviço ministerial, cujo modelo é o ministério Pascal de Cristo, no sentido da fé. É também necessário perscrutar o mistério cristão nos sacramentos iniciais (batismo, comunhão e crisma) para o amadurecimento da vida na Igreja como luz e sal para o mundo28. Esta etapa “significa essencialmente duas coisas: a necessária progressividade da experiência formativa na qual intervêm toda a comunidade e uma renovada valorização dos sinais litúrgicos da iniciação cristã” (EG 166). O progresso desse processo formativo conduzirá o ministro a ajudar com mais eficácia os demais irmãos na comunidade e na catequese ao amadurecimento da fé. Este período durará todo o Tempo Pascal e será concluso na solenidade de Pentecostes com uma celebração eucarística na solenidade de Corpus Christi.

6 O tempo da missão Este ministério é dom recebido para ser doado para os outros, por isso ele entra perfeitamente na dinâmica da Igreja em saída. Aflora a dimensão missionária do ministro que, consciente de participar da missão da Igreja e ser enviado por Jesus Cristo, testemunha o evangelho e a vida onde quer que esteja. O protagonismo missionário não se pauta num carisma específico ou numa grande figura carismática, mas no povo de Deus em seu permanente estado de missão. A ação a ser desenvolvida pelos ministros de catequese não é algo isolado, mas faz parte do plano global de evangelização da diocese plasmada por esse grande projeto da missão continental para o Brasil e para a América Latina. O RICA ressalta esta missão: Mostra-se, portanto, o mais pronto possível a dar a sua ajuda àqueles que procuram a Cristo, cumprindo assim a sua missão apostólica. Nas várias circunstâncias da vida quotidiana, como no apostolado, o discípulo de Cristo, seja ele quem for, tem o dever de propagar a fé, conforme as suas possibilidades. Consequentemente, ele deve ajudar os candidatos e os catecúmenos ao longo de toda a iniciação, no pré-catecumenato, no catecumenato e no tempo da mistagogia.29 Congregação para o culto divino. Ritual de Iniciação Cristã de Adultos – RICA. São Paulo: Paulus, 2011, n. 37. Cf. Lima, Luiz Alves de. Iniciação à Vida Cristã. Revista de Catequese 32 (2009) 127, p. 42. 29 Congregação para o culto divino, op. Cit., n. 41. 27 28

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São Paulo, ano 39, n. 148, p. jul./dez. 15-27,2016. jul./dez. 2016.

ARTIGOS ARTIGOS O dia sugerido para os leigos, que receberam das mãos do bispo diocesano o ministério de catequese, serem apresentados para a comunidade paroquial é 24 de agosto, pois, como aqui se disse, celebra-se o Dia do Catequista. Durante a celebração, eles serão enviados em missão na paróquia para atuar, auxiliar e acompanhar todo o serviço desenvolvido pelo Ministério de Catequese paroquial. Acompanharão, principalmente, o processo de iniciação cristã das novas gerações e como padrinho dos candidatos que farão todo o percurso catecumenal de formação durante os três anos conforme determinado pela diocese.

Considerações Finais Procurou-se apresentar uma proposta de linha formativa para a preparação inicial dos futuros ministros de catequese. Tal preparação realizada na comunidade eclesial terá como caminho concreto o Ritual de Iniciação Cristã Adulta – RICA. Trata-se de uma formação conforme uma pedagogia catecumenal, envolvendo toda a comunidade eclesial, uma verdadeira introdução e treinamento à vida cristã. A linha de formação, descrita dentro da atmosfera da comunidade eclesial, é constituída por um itinerário litúrgico, catequético e pedagógico por intermédio do RICA. Esse percurso serve como uma bússola pedagógica e ambiente vital, para o triênio da formação inicial dos futuros agentes do Ministério de Catequese. Essa formação catecumenal envolve toda a comunidade eclesial, uma verdadeira introdução e treinamento à vida cristã, e não somente uma formação escolástica, de tipo frontal, preocupada apenas com a transmissão de ideias. Nesse processo formativo, a Bíblia, a liturgia e o testemunho são três elementos que se completam. Assim, a “Igreja evangeliza e se evangeliza com a beleza da liturgia, que é também celebração da atividade evangelizadora e fonte de um renovado impulso para se dar” (EG 24).

Referências Bibliográficas Boselli, Goffredo. O sentido espiritual da liturgia. Brasília: CNBB, 2014. CNBB. Diretório Nacional da Catequese. São Paulo: Paulinas, 2006. (Documentos da CNBB 84). ______. Ministério do Catequista. São Paulo: Paulus, 2006. (Estudos da CNBB, 95). ______. Sou Católico. Vivo minha fé. Brasília: CNBB, 2007. (Estudos da CNBB, 95). Concílio Ecumênico Vaticano II. Constituição Conciliar sobre a Sagrada Liturgia Sacrosanctum Concilium, 04 de dezembro de 1963, in AAS 56 (1964). Conferenza Episcopale Italiana. Educare alla vita buona del Vangelo. Orientamenti pastorali dell’episcopato italiano per il decennio 2010-2020, 4 Ottobre 2010. Congregação para o Clero. Diretório Geral para a Catequese. São Paulo: Paulinas, 2009. Congregação para o culto divino. Ritual de Iniciação Cristã de Adultos – RICA. São Paulo: Paulus, 2011. Francisco. Exortação Apostólica Evangelii Gaudium sobre o anúncio do Evangelho no mundo atual. 24 de novembro de 2013, in AAS 105 (2013). São Paulo,São anoPaulo, 40, n.ano 149,39,p. n. 16-24, 148, jan./jun. jul./dez. 2017. 2016.

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ARTIGOS ARTIGOS João Paulo II. Exortação Apostólica Catechesi Tradendae, 16 de outubro de 1979, in AAS 71 (1979). Lelo, Antônio Francisco. Pedagogia Catecumenal: moda ou herança? Revista de Catequese 32 (2009) 125. Lima, Luiz Alves. Iniciação à Vida Cristã. Revista de Catequese 32 (2009) 127. Medeiros, Damásio. La nuova evangelizzazione nella prospettiva della pastorale liturgica. Salesianum 75 (2013). _____. Liturgia luogo privilegiato della parola di Dio. Considerazioni tra animazione liturgica e inculturazione. Rivista Liturgica 99 (2012). Santos, Milton dos. Sínodo Arquidiocesano de Cuiabá. Documento Conclusivo. Campinas: Art Brasil, 2008.

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São Paulo, ano 40, 16-24,2016. jan./jun. 2017. 39, n. 149, 148, p. jul./dez.

ARTIGOS ARTIGOS O RICA: FONTE DE INSPIRAÇÃO PARA O ITINERÁRIO CATEQUÉTICO INFANTIL RCIA: A SOURCE OF INSPIRATION FOR CHILDHOOD CATECHESIS Thiago Aparecido Faccini Paro* RESUMO: O Ritual da Iniciação Cristã de Adultos (RICA), quando compreendida toda a sua estrutura e dinâmica ritual, torna-se uma valiosa fonte de inspiração para a construção de um itinerário catequético, fazendo da catequese um verdadeiro processo de iniciação a vida cristã. Conservando a estrutura e o sentido mistagógico de cada celebração apresentado pelo RICA, é possível adapta-las de acordo com a realidade de cada comunidade. Unindo os conteúdos refletidos pela catequese e as ações rituais, é possível fazer um caminho de construção participativa inserindo e sensibilizando os catequizandos na fé professada e celebrada. Palavras-chave: Iniciação. Itinerário. Catequese. Liturgia. ABSTRACT: The Rite of Christian Initiation of Adults (RCIA), understood in terms of the totality of its structure and ritual dynamics, serves as a valuable source of inspiration for the development of a catechetical itinerary that makes catechesis a true process of initiation into the Christian life. Preserving the structure and the mystagogical sense of each celebration as presented in RCIA, it is possible to adapt each of the celebrations in accord with the realities of each community. By holding together catechetical contents and ritual actions, it is possible to create a constructive and participative way for incorporating and attuning those who are being catechized into the faith they profess and celebrate. Keywords: Initiation. Itinerary. Catechesis. Liturgy.

Introdução O Concílio Ecumênico Vaticano II determinou a revisão do Rito do Batismo de adultos e decretou a restauração do catecumenato dos adultos vivido em etapas. As decisões e reflexões deste Concílio serviram de orientação e suporte para a elaboração do RICA, inserto no contexto da reforma litúrgica. O ritual prevê a interação entre liturgia e catequese, no qual gradativamente insere e revela aos candidatos todo o projeto de amor e salvação que o Pai tem para a humanidade. O RICA, com seu itinerário celebrativo, torna-se fonte de inspiração para a construção de um itinerário catequético, podendo ser adaptado e aplicado na catequese infantil, fazendo dela um verdadeiro processo de iniciação à vida cristã.

* Mestre em Teologia pela PUCSP; especialista em espaço litúrgico e arte sacra pela PUCRS; especialista em liturgia, ciência e cultura e mestre em Teologia pela PUCSP; pedagogo. Assessor do Setor de Espaço Litúrgico da Comissão Episcopal Pastoral para Liturgia da CNBB.

São Paulo,São anoPaulo, 40, n.ano 149,39,p. n. 25-32, 148, jan./jun. jul./dez. 2017. 2016.

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ARTIGOS ARTIGOS 1 Estrutura e organização do RICA O Ritual, restaurado a pedido do Concílio Ecumênico Vaticano II, é destinado a adultos que ouviram o anúncio querigmático e, conscientes e livres, procuram Deus e se propõem a trilhar um caminho de fé e de conversão. O Ritual é dividido em três etapas e quatro tempos. 1º tempo - pré-catecumenato ou evangelização. Tem por objetivo a adesão a Jesus Cristo. “Durante esse tempo, deve ser feita uma explicação adequada do Evangelho, de modo que se ajudem os candidatos a se integrar na comunidade cristã”1, fazendo brotar o desejo de seguirem a Cristo e de pedirem o batismo. 1.ª etapa - Rito de admissão ao catecumenato. É o momento em que a comunidade acolhe o candidato que manifesta sua intenção de ser batizado. 2.º tempo - catecumenato. Requer uma catequese mais intensa e em etapas na qual se desenvolvam as dimensões doutrinal, moral e litúrgica. “Não pode faltar entre os temas próprios desse tempo uma catequese profunda sobre o Símbolo da Fé, a oração, a moral cristã e os Sacramentos da Igreja”.2 O catecumenato pode prolongar-se por vários anos, a fim de garantir uma sincera conversão dos catecúmenos e a fé possa amadurecer.3 2.ª etapa - Rito de eleição, no qual, após comprovar que a fé e a vivência foram consideradas suficientemente maduras, admite-se o catecúmeno para o recebimento dos sacramentos de Iniciação durante as festas pascais.4 3.º tempo - purificação ou iluminação. Tem a intenção de promover uma vida de oração mais intensa, um olhar para a vida interior do catecúmeno, levá-lo a um exame de consciência, a uma conversão mais profunda. 3.ª etapa - celebração dos sacramentos da iniciação cristã. Consiste na celebração dos três sacramentos da iniciação: batismo, confirmação e eucaristia durante a vigília pascal. 4.º tempo - mistagogia. Tem por objetivo buscar um conhecimento mais profundo dos mistérios, a partir dos sacramentos celebrados. O itinerário catecumenal apresentado pelo RICA desenvolve uma adequada articulação entre a proclamação da Palavra (doutrina), a celebração litúrgica (ritos) e o compromisso de vida (caridade), envolvendo liturgia e catequese, ambas ligadas ao processo de transmissão e de crescimento da fé, tão próximos um do outro que, de modo algum, podem ser considerados realidades distintas.5

CAMARGO, Gilson C. M. A Iniciação Cristã de Adultos. In CELAM. Manual de Liturgia – Os sacramentos: sinais do mistério pascal. Vol. III. 2. ed. São Paulo: Paulus, 2011, p. 40. 2 Ibid., p. 41. 3 Ibid., p. 41. 4 Ibid., p. 41. 5 MARTÍN, Julián López. Liturgia e catequese. In. PEDROSA, V. M.; NAVARRO, M.; LÁZARO, R.; SARTRE, J. Dicionário de Catequética. São Paulo: Paulus, 2004, p. 692.

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São Paulo, ano 40, 39, n. 149, 148, p. jul./dez. 25-32,2016. jan./jun. 2017.

ARTIGOS ARTIGOS 2 O RICA como fonte de inspiração Falar de uma proposta de adaptação e aplicação do RICA à catequese é pensar não só nas celebrações rituais por ele previstos, mas também num programa de conteúdos e temas a serem trabalhados durante todo o processo. É preciso ter bem claro que a iniciação é um processo de transmissão da fé. Como afirma Taborda: Não se chega à fé de um dia para outro. Há todo um processo de maturação, para que ela venha a penetrar as diversas dimensões do ser humano e para que a pessoa, por sua vez, a descubra e a viva em múltiplas feições, pois a fé tem muitas facetas que só se vão encontrando à medida em que se vive.6

A iniciação, portanto, deve permitir “superar um intelectualismo muito comum na compreensão da fé, pois a iniciação não é só uma informação sobre determinadas verdades ou costumes, mas assimilação pessoal da verdade e introdução em uma prática”.7 É preciso, então, um itinerário catequético que leve à aceitação de uma mensagem, que introduza a pessoa nos costumes da comunidade eclesial, que contemple reflexões sobre a doutrina e teologia litúrgica, fazendo com que as celebrações propostas pelo RICA não se tornem algo estranho, mas a complementação e coroação de cada etapa. Para elaborar o itinerário, é preciso estabelecer, primeiro, a faixa etária dos catequizandos, para que todo o conteúdo seja pensado para atender a realidade de cada grupo. Por se tratar de crianças, é preciso destrinchar os conteúdos, trabalhá-los de maneira lúdica e abordar os vários temas diversas vezes em óticas diferentes. Disso dependerá a duração do processo iniciático. É preciso lembrar que o número de etapas (ou a quantidade de encontros) não deve ser fixado pensando-se apenas nos conteúdos mínimos a serem abordados na catequese, mas, sobretudo, em fazer com que os catequizandos e suas famílias criem vínculo com a comunidade e vivenciem a dinâmica eclesial.

3 Itinerário com conteúdos trabalhados em cada etapa da catequese8 O itinerário celebrativo proposto pelo RICA exige uma catequese inculturada, de acordo com a realidade de cada comunidade, que prepare os catequizandos para bem celebrarem. Assim, o conteúdo de cada celebração do RICA torna-se uma guia orientadora dos temas a serem abordados pela catequese. O Catecismo da Igreja Católica torna-se fonte e explicitação deste conteúdo: a profissão de fé, a vida de oração (Pai-Nosso), os Sacramentos. Descrevemos, a seguir, uma ideia geral do conteúdo que poderá ser abordado em cada etapa da catequese, tendo em vista as celebrações inspiradas e adaptadas do RICA, as quais marcarão a conclusão de parte da caminhada e o início de uma nova etapa. São as grandes celebrações de entrega ou recitações, para a Iniciação à Eucaristia: 1.ª etapa - Num primeiro momento, o tema principal a ser trabalhado é o “querigma”, fazendo com que os catequizandos conheçam e façam uma experiência mística de Jesus Cristo. O objetivo é inseri-los na dinâmica do calendário da Igreja – Ano Litúrgico – iniciando os encontros no primeiro TABORDA, Francisco. Nas fontes da vida cristã. Uma teologia do batismo-crisma. São Paulo: Loyola, 2001, p. 39. Ibid., p. 39. 8 O roteiro que propomos é o itinerário da coleção de manuais de catequese “O Caminho”. 6 7

São Paulo,São anoPaulo, 40, n.ano 149,39,p. n. 25-32, 148, jan./jun. jul./dez. 2017. 2016.

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ARTIGOS ARTIGOS domingo do Advento e concluindo-os com a Solenidade de Nosso Senhor Jesus Cristo Rei do Universo9. Ao final da primeira etapa, pode ser realizada a “celebração de inscrição do Nome e entrega do Livro Sagrado”. Esta celebração é uma adaptação do rito de entrada no catecumenato; para tanto, o RICA orienta que: “depois da celebração do Rito, sejam oportunamente anotados, em livro próprio, os nomes dos catecúmenos, com a indicação do ministro, dos introdutores e dia e lugar da admissão”.10 Levando em conta que muitos catequizandos já são batizados, sugerimos que a comunidade tenha um livro que possamos chamar de “Livro de Registro dos Catequizandos”, no qual serão registrados os nomes de todos os catequizandos que concluíram a primeira etapa, dando o sentido de acolhida, de escolha, além de ajudar na organização da catequese. Essa celebração, que marcará o término da primeira etapa da catequese, consta do chamado e inscrição dos nomes no livro do catequizando, diferenciando os catequizandos batizados dos que ainda não foram, entrega da Bíblia e uma insígnia (cordão com uma cruz ou crucifixo), sinal de sua adesão ao processo catequético e ao seguimento de Jesus Cristo. Fazendo um paralelo com o RICA, a primeira etapa que sugerimos equivaleria ao pré-catecumenato e ao rito de admissão. 2.ª etapa - Em cada encontro de catequese, poderá se refletir-se sobre um dos artigos da “Profissão de fé”, em que os catequizandos terão uma noção geral da doutrina da Igreja e de como vivê-la. No início desta etapa, os catequizandos receberão impresso o Credo e, no final, haverá uma celebração, quando professarão solenemente a fé. 3.ª etapa - Na terceira etapa, o catequizando refletirá sobre a vida de oração, tendo como modelo a oração que o Senhor nos ensinou, o Pai-Nosso. Em cada encontro será trabalhada uma parte da oração. No início da terceira etapa, os catequizandos receberão a oração do Pai-Nosso impresso, e ao final dela, haverá uma celebração, quando o rezarão solenemente. Propomos ainda nesta etapa que, ao meditarem sobre o “perdão”, os catequizandos já batizados, sejam iniciados no sacramento da Reconciliação, desvinculando-o do sacramento da Eucaristia. No início da segunda e terceira etapas, portanto, num dos domingos do Tempo do Advento, temos a celebração de entrega do Credo e da Oração do Pai-Nosso impressos. E no final, após uma caminhada de reflexão e conhecimento de cada artigo da profissão de fé e de cada uma das petições da oração do Senhor, os catequizandos da segunda etapa irão recitar solenemente, diante de toda a comunidade reunida, o Credo, e os catequizandos da terceira etapa, o Pai-Nosso. Revendo a tradição da Igreja, as entregas feitas pelos Santos Padres sempre foram verbais, como relata Ambrósio ao explicar a entrega do Símbolo:

Buscamos maior contato e vivência dos catequizandos com o calendário próprio da Igreja e a espiritualidade de cada tempo. Desvinculando do calendário escolar a catequese, propomos que a catequese de eucaristia siga o calendário litúrgico, iniciando na primeira semana do Advento e encerrando-se com a Solenidade de Nosso Senhor Jesus Cristo Rei do Universo; para a catequese crismal, iniciando no primeiro domingo da Quaresma e encerrando-se no tempo Pascal. Com isso, colocamos em prática o que é pedido pelo RICA ao tratar sobre o tempo do catecumenato: “A catequese, ministrada pelos sacerdotes, diáconos ou catequistas e outros leigos, distribuída em etapas e integralmente transmitida, relacionada com o ano litúrgico e apoiada nas celebrações da Palavra, leva os catecúmenos não só ao conhecimento dos dogmas e preceitos, mas à íntima percepção do mistério da salvação de que desejam participar”. RITUAL DE INICIAÇÃO CRISTÃ DE ADULTOS. Tradução portuguesa para o Brasil da edição típica. São Paulo: Paulus, 2001, n. 19.1. 10 Cf. RITUAL DE INICIAÇÃO CRISTÃ DE ADULTOS, n. 17. 9

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São Paulo, ano 40, 25-32,2016. jan./jun. 2017. 39, n. 149, 148, p. jul./dez.

ARTIGOS ARTIGOS Quero avisá-los bem do seguinte: o símbolo não deve ser escrito. Deveis repeti-lo, mas ninguém o escreva. Por que motivo? Foi-nos transmitido que não deveria ser escrito. O que fazer então? Retê-lo de cor. Tu, porém, me dizes: “Como é possível retê-lo sem escrevê-lo?” Pode-se retê-lo melhor se não se escreve. Por que razão? É o seguinte. O que escreves, seguro de que o relerás, não te aplicarás em examiná-lo pela meditação diária. O que, porém, não escreves terás medo de esquecê-lo e daí o repassarás todo dia. Isso é uma grande segurança.11

Para Ambrósio, a não escrita do Símbolo tinha, sobretudo, uma função didática. Os catecúmenos, ao escutarem o Símbolo, deveriam prestar atenção e, com cuidado, reterem o máximo possível das verdades da fé. Lembremos, porém, que a prática dos Santos Padres é para adultos. Em nosso caso, ao fazermos a entrega às crianças, propomos também, por uma função didática, de lhes entregarem o Credo e o Pai-Nosso impresso, cientes de que nessa idade não estão preparados para assimilar todo o conteúdo expresso e retê-los de cor. Assim, podem ser adaptadas, para a segunda e terceira etapas, as celebrações de entrega para um dos domingos do tempo do Advento e as recitações do Credo e do Pai-Nosso, para o domingo de Cristo Rei, pois, insertas nas celebrações dominicais, pode-se envolver toda a comunidade no processo de Iniciação. 4.ª etapa - A quarta etapa poderá ser um aprofundamento sobre os sete sacramentos e sacramentais. Nesta etapa, os catequizandos não batizados receberão o primeiro sacramento na vigília pascal e, ao final da etapa, todos os catequizandos se aproximarão pela primeira vez do corpo e sangue de Cristo, participando da Eucaristia.12 Durante o tempo pascal, propomos batizar os catequizandos que ainda não tenham o sacramento do Batismo, porém toda a devida preparação como sugere o RICA. Assim, no primeiro domingo da Quaresma, poderá acontecer o “rito de acolhida e eleição”. No terceiro domingo da Quaresma, poderá acontecer o primeiro escrutínio que, além da oração de exorcismo, sugerimos que aconteçam também os ritos de assinalação da fronte e dos sentidos. No quarto domingo, poderá acontecer o segundo escrutínio, no qual sugerimos acrescentar o rito do “Éfeta”. No quinto domingo da Quaresma, o terceiro escrutínio com o rito da unção com o óleo dos catecúmenos. Na Vigília Pascal em torno da comunidade reunida, com a presença dos demais catequizandos, serão batizados os eleitos, com o banho batismal (imersão), de preferência. E no término da quarta etapa, na solenidade de Cristo Rei, todos participarão do banquete Eucarístico pela primeira vez.

Na catequese crismal, a cada etapa propomos os seguintes enfoques e temas:

1.ª etapa - História da Salvação. Trabalhar com os catequizandos a concepção cristã de TEMPO, como momento oportuno de salvação de Deus para o homem: Tempo “Kairótico”. Refletir sobre a história da salvação, desde a escolha de Abraão até Jesus Cristo e a fundação da Igreja. Por fim, aprofundar o conceito de Igreja, Discipulado e Missão. A primeira etapa se iniciaria com um grande retiro espiritual para os catequizandos e suas famílias no primeiro domingo da Quaresma. 2.ª etapa - Conhecer a si mesmo, para servir melhor. Levar os catequizandos a refletirem sobre si mesmos, quem são e qual o seu papel e lugar neste mundo, partindo de temas centrais da adolescência: afetividade e sexualidade, a busca da felicidade, as drogas, liberdade, entre outros. Nessa caminhada, AMBRÓSIO DE MILÃO. Patrística. V. 5. Explicação do Símbolo. São Paulo: Paulus, 1996, p. 28. PARO, Thiago A. Faccini. O Caminho: subsídio para encontros de catequese de Primeira Eucaristia, 1.ª etapa. Petrópolis: Vozes, 2014, p. 7.

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São Paulo,São anoPaulo, 40, n.ano 149,39,p. n. 25-32, 148, jan./jun. jul./dez. 2017. 2016.

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ARTIGOS ARTIGOS buscar a reflexão de uma cultura de paz, na descoberta da própria vocação e do seu lugar na Igreja, como um “cristão em tempo integral”. 3.ª etapa - Ser Igreja: Amar e servir. Após conhecer a vida e dinâmica da Igreja paroquial, os catequizandos serão convidados para participar de alguma comunidade, pastoral, movimento ou associação. Durante toda a terceira etapa serão engajados nos vários serviços e ministérios. Além das atividades próprias do grupo em que estiver engajado, haverá um encontro por mês com o catequista para partilhas e orientações, quando, de fato, só serão crismados no final aqueles insertos na vida eclesial. Ao elaborar um itinerário catequético, é importante propor a cada encontro uma sensibilização aos ritos e elementos utilizados nas ações litúrgicas. Por se tratar de uma catequese voltada para crianças e adolescentes, sugerimos iniciar por lhes apresentar nos encontros, dentro dos temas a serem pensados e discutidos, os elementos que constituem os vários símbolos. Por exemplo, o catequista pode começar falando da água, elemento natural, que gera vida e morte, a sua importância para o homem e para a natureza. Deverá mostrar a importância de preservá-la, como criação de Deus. Posteriormente, recorrerá à literatura bíblica mostrando que Deus utilizou a água de diversas formas até a escolher como principal elemento para o Batismo. Assim, a água, o óleo, o fogo, a luz, as velas, as cinzas, os ramos, as flores, o pão e o vinho, tudo pode ser levado para os encontros de catequese. Também os gestos e uma sensibilização corporal devem ter seu lugar durante os encontros: o estar de pé, o sentar-se, o ajoelhar-se, a inclinação, o beijo, o lavar, a imposição ou o erguer das mãos, o olhar, o sentir, o cheirar, enfim todos os sentidos devem ser resgatados nos encontros. Alguns símbolos litúrgicos “menores” podem ser levados para os encontros de catequese: o catequista pode propor que os catequizandos confeccionem uma coroa do Advento, explicandolhes o seu significado e, a cada encontro, durante a oração inicial, acender uma das velas durante as semanas do Advento. Isso irá prepará-los para as celebrações dominicais desse tempo. O mesmo poderá acontecer com o círio pascal que, confeccionado pelos catequizandos e lhes explicado o sentido de cada letra e número; posteriormente, abençoado e aceso na Vigília Pascal, tornar-se-á símbolo do Ressuscitado. O pão ázimo sovado pelos catequizandos, enchendo suas mãos de farinha, próximo à celebração da primeira eucaristia, dará mais sentido ao rito da comunhão. Por fim, para que as catequeses mistagógicas se tornem uma realidade e introduzam os catequizandos no mistério da fé celebrado, recorramos ao autor Boselli que, ao citar um trecho do livro do Êxodo, explica a mistagogia da ação litúrgica que deve acontecer hoje: Quando tiverdes entrado na terra que Iahweh vos dará, como ele disse, observareis este rito. Quando vossos filhos vos perguntarem: ‘Que rito é este?’, respondereis: ‘É o sacrifício da Páscoa para Iahweh, que passou adiante das casas dos israelitas no Egito, quando feriu os egípcios, mas livrou as nossas casas. (Ex 12,25-27)

Durante a páscoa dos judeus, esta é a pergunta que o filho mais novo dirige ao pai de família que preside a liturgia: “Que rito é este?”.13

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BOSELLI, Goffredo. O Sentido Espiritual da Liturgia. Brasília: CNBB, 2014, p. 25.

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ARTIGOS ARTIGOS Esta pergunta é parte integrante do próprio rito. Recordando o significado do rito pascal, o pai preserva o rito do constante perigo de perder a historicidade (sair da história). Esse relato impede que a liturgia se torne magia. Nada, de fato, se opõe à fé hebraico-cristã, quanto à perda da sua historicidade, uma fé nas ações cumpridas por Deus na história. Isto também pode ocorrer quando o rito litúrgico é repetido sem se compreender o seu significado. “Que significa esse rito?” é a pergunta que também a Igreja antiga ouviu dirigida por parte dos seus filhos mais jovens, os catecúmenos e os neófitos. A resposta são as catequeses mistagógicas dos Padres.14

Assim, ao trabalhar os sentidos e significados dos Sacramentos da Igreja, propõe-se partir do rito litúrgico de cada um, na lógica bíblica e da tradição dos Padres, levar os catequizandos a participarem da celebração dos Sacramentos e sacramentais e, nas semanas seguintes a essa experiência, partindo do rito vivenciado, explicar-lhes toda a simbologia e significado daquela ação. Por exemplo, quão enriquecedor seria se os catequizandos pudessem com seus catequistas acompanhar o padre numa visita a um enfermo ou idoso e ali participarem da celebração do Sacramento da Unção dos Enfermos, vendo a realidade do doente e as limitações da idade e, na prática, entender a necessidade desse sacramento para a vida de quem o recebe. E durante os próximos encontros de catequese o catequista perguntar “que rito é este?” Entenderam o que o padre fez? Com que o padre ungiu o doente? Por que lhe impôs as mãos? Que oração ele fez?” Com certeza a catequese sobre esse sacramento se encherá de sentido, e aquele momento ficará guardado na mente e no coração dos catequizandos. De maneira gradativa, buscamos uma pedagogia e mistagogia que revalorizem os símbolos e ritos, fazendo-os passar pela mente e pelo coração dos fiéis e, assim, conscientes, possam transformar nossas celebrações em momentos significativos e autênticos de encontro com o Mistério.

Considerações finais Em grande parte das comunidades, percebe-se apenas uma catequese doutrinal com a inserção de algumas celebrações e/ou ritos que ficam “perdidos” e desconexos do conteúdo transmitido. Conhecer a fundo o RICA e o significado de cada uma de suas celebrações é essencial para a elaboração do itinerário e dos conteúdos a serem transmitidos, pois a catequese deve conduzir à celebração. A proposta de aplicação do RICA apresentada é apenas uma provocação para mostrar a necessidade de mudança em nossas práticas catequéticas. Conservando a estrutura e o sentido mistagógico de cada celebração apresentado pelo RICA, é possível adaptá-los de acordo com a realidade de cada comunidade. Unindo os conteúdos refletidos pela catequese e as ações rituais, é possível fazer um caminho de construção participativa inserindo e sensibilizando os catequizandos na dinâmica simbólico-ritual da fé cristã. Com isso, acredita-se que os sinais sensíveis da liturgia tocarão a mente e o coração dos catequizandos fazendo-os compreender, visualizar e fazer a experiência do mistério celebrado.

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BOSELLI, Goffredo. O Sentido Espiritual da Liturgia, p. 21. São Paulo,São anoPaulo, 40, n.ano 149,39,p. n. 25-32, 148, jan./jun. jul./dez. 2017. 2016.

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ARTIGOS ARTIGOS Referências bibliográficas AMBRÓSIO DE MILÃO. Patrística. V. 5. São Paulo: Paulus, 1996. BOSELLI, Goffredo. O Sentido Espiritual da Liturgia. Brasília: CNBB, 2014. CELAM. Manual de Liturgia. Os sacramentos: sinais do mistério pascal. Vol. III. 2. ed. São Paulo: Paulus, 2011. PARO, Thiago A. Faccini. O Caminho: subsídio para encontros de catequese de Primeira Eucaristia, 1.ª etapa. Petrópolis: Vozes, 2014. PEDROSA, V. M.; NAVARRO, M.; LÁZARO, R.; SARTRE, J. Dicionário de Catequética. São Paulo: Paulus, 2004. RITUAL DE INICIAÇÃO CRISTÃ DE ADULTOS. Tradução portuguesa para o Brasil da edição típica. São Paulo: Paulus, 2001. TABORDA, Francisco. Nas fontes da Iniciação Cristã. Uma teologia do batismo-crisma. São Paulo: Loyola, 2001.

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ARTIGOS ARTIGOS PROPOR A FÉ AOS CASAIS, UM CAMINHO DE INICIAÇÃO CRISTÃ PROPOSING THE FAITH TO COUPLES, THE WAY OF CHRISTIAN INITIATION João da Silva Mendonça Filho*

RESUMO: No colapso dos laços definitivos, o sacramento do matrimônio parece mergulhar no improvável. Amar sem desejar consumir, ter filhos sem sentir-se impedido de crescer, ser exclusivo do outro sem o sentimento de perda, são sentimentos que brotam na sociedade líquida e impedem ou dificultam o SIM definitivo como expressão do amor conjugal. Atentos a isso, a Igreja busca novos caminhos com Amoris Laetitia, sem mudar a essência da doutrina, mas com a coragem de acolher e inserir a todos no seio da mãe Igreja. Para isso, no artigo traça-se um itinerário de acompanhamento e formação de casais com base na metodologia da iniciação cristã, dando corpo a um caminho de fé que ajude a entender o sentido do sacramento num projeto definitivo de vida. Palavras-chave: Iniciação cristã. Amor conjugal. Sacramento. Fé. Medo. ABSTRACT: With the collapse of the definitive bonds of marriage, the sacrament of matrimony seems to plunge into the realm of improbability. To love without wanting more than one has, to have children without feeling that one can no longer grow, to be in an exclusive relationship with another without experiencing a sense of loss, these are feelings that spring up within a fluid society, feelings that prevent or hinder the definitive YES that is an expression of conjugal love. With the encyclical Amoris Laetitia, the Church is looking for new and courageous ways of welcoming and including everyone in the bosom of Mother Church without changing the essence of her doctrinal teachings. Mindful of this fact, the article proposes the way of Christian Initiation as a methodology for accompanying and forming couples, so as to give form and direction to their faith journey in ways that will help them to understand the meaning of the sacrament of matrimony as a definitive life project. Keywords: Christian Initiation. Conjugal love. Sacrament. Faith. Fear.

INTRODUÇÃO Muito nos inquieta o medo de assumir compromissos definitivos, por isso há cada vez mais a presença de ações defensivas1. Diante daquilo que era estável, como o sacramento do matrimônio, entrou o “colapso do pensamento, do planejamento e da ação em longo prazo. Aquilo que foi bemsucedido no passado, hoje parece improvável2”. Nesse sentido, papa Francisco recomenda que as Salesiano de Dom Bosco. Licenciado em Filosofia pela Unisal/Lorena, Bacharel em Teologia pela Xaveriana Bogotá/ Colômbia, Mestre em Educação pela UPS/Roma, pós-graduado em Educação Sexual Unisal/SP e Comunicação pela PUC/ SP-SEPAC/SP. Autor de livros. Artigos publicados em revistas especializadas. 1 BAUMAN, Zygmunt. Tempos líquidos. Trad. Carlos Alberto Medeiros. Rio de Janeiro: Zahar, 2007, p. 15. 2 Ibid., p. 9. ∗

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ARTIGOS ARTIGOS questões locais sejam pensadas e resolvidas em âmbito local. Recomenda ainda que é preciso deixar o que antes foi necessário, mas hoje anacrônico. Então o desafio para a preparação dos casais ao matrimônio é o nosso próprio desafio catequético. Sobre isso ele diz: Há várias maneiras legítimas de organizar a preparação próxima para o matrimónio e cada Igreja local discernirá a que for melhor, procurando uma formação adequada que, ao mesmo tempo, não afaste os jovens do sacramento. Não se trata de lhes ministrar o Catecismo inteiro nem de os saturar com demasiados temas, sendo válido também aqui que «não é o muito saber que enche e satisfaz a alma, mas o sentir e saborear interiormente as coisas». Interessa mais a qualidade do que a quantidade, devendo-se dar prioridade – juntamente com um renovado anúncio do querigma – àqueles conteúdos que, comunicados de forma atraente e cordial, os ajudem a comprometer-se num percurso da vida toda «com ânimo grande e liberalidade». Trata-se duma espécie de «iniciação» ao sacramento do matrimônio, que lhes forneça os elementos necessários para poderem recebê-lo com as melhores disposições e iniciar com uma certa solidez a vida familiar.3

Com este artigo quero propor um caminho formativo, um pouco mais longo do que um final de semana apertado e cansativo, mas um processo de resgate da fé em vista da vida conjugal à luz do sacramento do matrimônio que ajude, pelo menos em parte, a controlar o medo do compromisso definitivo, pois os “medos contemporâneos mais assustadores são os que nascem da incerteza existencial”.4 O protagonista deste artigo, portanto, “é o relacionamento humano. Seus personagens centrais são homens e mulheres, desesperados por terem sido facilmente descartáveis, ansiando pela segurança do convívio e pela mão amiga com que possam contar num momento de aflição, desesperados por relacionar-se. E, no entanto, desconfiados da condição de estar ligado permanentemente”.5 A primeira pergunta que faço é a seguinte: o que acrescenta na vida de um casal o sacramento do matrimônio? É importante a resposta, porque casar é um ato jurídico social que existe mesmo sem o sacramento. As pessoas unem-se em matrimônio em tantas culturas, com ritos muito diferentes. Contudo, no catolicismo, há um rito próprio em que o casal é o único protagonista, ou seja, o ministro do sacramento. É o noivo e a noiva que livremente, conscientemente e de forma exclusiva dizem sim diante de Deus. Todos os demais, inclusive o ministro ordenado, são apenas testemunhas. O fundamento deste “sim” é o amor, quer dizer, “a vontade de cuidar e de preservar o objeto cuidado, de estar a serviço. Não é desejo porque este apenas consome, enquanto o amor perpetua”.6 Então, como resgatar esse valor intrínseco do sacramento numa época de tanto relativismo e de renúncia a “caçar em novas pastagens”?7

PAPA FRANCISCO. Exortação Apostólica pós-sinodal Amoris Laetitia, n. 207. Disponível em: www.vatican.va/. Acesso em: 10 nov. 2016. 4 BAUMAN, Zygmunt. Tempos líquidos, p. 97. 5 Ibid., p. 8. 6 Id., Zygmunt. Amor líquido sobre a fragilidade dos laços humanos. Trad. Carlos Alberto Medeiros. Rio de Janeiro: Zahar, 2004, p. 24. 7 Ibid., p. 25. 3

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ARTIGOS ARTIGOS 1 O ITINERÁRIO DE INICIAÇÃO PARA CASAIS

1.1 Propor a fé ao casal A fé é graça dada. O autor da fé é Deus. A pessoa é o receptáculo desta graça. Por isso, para viver o matrimônio como sinal da presença santificadora de Deus, é preciso a fé. A preparação para o matrimónio cristão é já qualificada como um itinerário de fé: põe-se, de facto, como ocasião privilegiada para que os noivos descubram e aprofundem a fé recebida no baptismo e alimentada com a educação cristã. Desta forma reconhecem e acolhem livremente a vocação de seguir o caminho de Cristo e de se pôr ao serviço do Reino de Deus no estado matrimonial.8

A fé não se conquista, mas se recebe. Ela é dom de Deus. Um dom que eu não peço e não recebo por merecimentos pessoais ou por atos heroicos. Ela é fruto da plena gratuidade de Deus e eu, como receptor, respondo com plena gratidão celebrando o que recebi. O casal precisa compreender o Dom da fé para serem educadores da fé: A transmissão da fé pressupõe que os pais vivam a experiência real de confiar em Deus, de O procurar, de precisar d’Ele, porque só assim «cada geração contará à seguinte o louvor das obras [de Deus] e todos proclamarão as [Suas] proezas» (Sl 145/144, 4) e «o pai dará a conhecer aos seus filhos a [Sua] fidelidade» (Is 38, 19). Isto requer que imploremos a ação de Deus nos corações, aonde não podemos chegar. O grão de mostarda, semente tão pequenina, transforma-se num grande arbusto (cf. Mt 13, 31-32), e, deste modo, reconhecemos a desproporção entre a ação e o seu efeito. Sabemos, assim, que não somos proprietários do dom, mas seus solícitos administradores. Entretanto o nosso esforço criativo é uma oferta que nos permite colaborar com a iniciativa divina. Por isso, «tenha-se o cuidado de valorizar os casais, as mães e os pais, como sujeitos ativos da catequese (...). De grande ajuda é a catequese familiar, enquanto método eficaz para formar os pais jovens e torná-los conscientes da sua missão como evangelizadores da sua própria família». 9

A fé requer, então, o ato de celebrar, ou seja, louvar e agradecer. Supõe também o saber experimentar, sentir os efeitos da presença de Deus na vida, deixar envolver pelo Espírito de Deus, porém a fé deve ser compreendida, estudada à luz da tradição e da Palavra de Deus. Quem não busca a compreensão da fé não consegue amadurecer na sua vivência. Por conseguinte, a fé torna-se testemunho verbal e não verbal. O modo de ver, julgar e contribuir para um mundo melhor passa pela fé. Às vezes, como dizia Paulo VI, pode ser um testemunho silencioso, como também dito, argumentado. Por isso a fé torna-se anúncio, comunicação, evangelização. A pessoa de fé fala do que sente, da experiência de intimidade com Deus e não de uma teoria sobre a fé. Os Padres sinodais insistiram no facto de que as famílias cristãs são, pela graça do sacramento nupcial, os sujeitos principais da pastoral familiar, sobretudo oferecendo «o testemunho jubiloso dos cônjuges e das famílias, igrejas domésticas». Para isso – sublinharam – é preciso fazer-lhes «experimentar que o Evangelho da família é alegria que “enche o coração e a vida inteira”, porque, em Cristo, somos “libertados do pecado, JOÃO PAULO II. Exortação apostólica pós-sinodal Familiaris Consortio, n. 51. Disponível em: www.vat ican.va/. Acesso em: 16 nov. 2016. 9 PAPA FRANCISCO. Exortação Apostólica pós-sinodal Amoris Laetitia, n. 287s. 8

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ARTIGOS ARTIGOS da tristeza, do vazio interior, do isolamento” (Evangelii gaudium, 1). À luz da parábola do semeador (cf. Mt 13, 3-9), a nossa tarefa consiste em cooperar na sementeira: o resto é obra de Deus. E não se deve esquecer também que a Igreja, que prega sobre a família, é sinal de contradição», mas os esposos agradecem que os pastores lhes ofereçam motivações para uma aposta corajosa num amor forte, sólido, duradouro, capaz de enfrentar todos os imprevistos que lhes surjam. É com humilde compreensão que a Igreja quer chegar às famílias, com o desejo de «acompanhar todas e cada uma delas a fim de que descubram a saída melhor para superar as dificuldades que encontram no seu caminho». Não basta inserir uma genérica preocupação pela família nos grandes projetos pastorais; para que as famílias possam ser sujeitos cada vez mais ativos da pastoral familiar, requer-se «um esforço evangelizador e catequético dirigido à família», que a encaminhe nesta direção.10

Nesse sentido, é preciso saber propor aos casais o sentido da fé. Sem ela o sacramento é nulo porque não há a compreensão racional daquilo que não se vê, ou seja, a união de Cristo e a Igreja, na vida concreta do casal. Esse é o sinal visível da graça sacramental, senão permanece um ato jurídico apenas, um pacto que pode durar por um tempo e aceita o divórcio; enquanto o sacramento do matrimônio não convive com a possibilidade do divórcio, mas do reconhecimento que o casal não cumpriu os requisitos do sim fundamentado na fé, na liberdade e no amor reciproco. Os casais precisam ser ajudados a resgatar a fé para assumir o sacramento como projeto pessoal de vida a dois, mesmo se tornando uma só pessoa. Casar não é um viver juntos a fim de algo, mas por causa de uma realidade que “ajuda a dividir o barco, a ração e o leito da cabine”.11 É um navegar juntos nas alegrias e tristezas, saúde e doenças. Aos poucos, na convivência, aparecerão os contornos do outro, as riquezas e fragilidades, a personalidade e o caráter.

1.2 Assumir a experiência de casal em Deus O rito do matrimonio católico não é casar diante de Deus, mas casar em Deus e mergulhar no Seu amor trinitário. Assim como Jesus passou da morte à vida, o casal passa de uma vida de solteiro à participação plena no amor que se manifesta entre o Pai e o Filho na unidade do Espírito Santo. Para tanto, é fundamental a Palavra como fonte inesgotável da presença de Deus e manifestação da obra salvadora de Deus. Assim o casal toma consciência que há uma história de amor de Deus que se revela na Palavra e que transcende a eles mesmos. Por isso o casal saberá viver o dia do perdão, o dia do júbilo, o dia da alegria e da tristeza, da saúde e da doença, portanto um amor que se torna sinal de salvação para ambos. Papa Francisco insiste: Os noivos deveriam ser incentivados e ajudados a poderem expressar o que cada um espera dum eventual matrimónio, a sua maneira de entender o que é o amor e o compromisso, aquilo que se deseja do outro, o tipo de vida em comum que se quer projetar. Estes diálogos podem ajudar a ver que, na realidade, os pontos de contato são escassos e que a mera atração mútua não será suficiente para sustentar a união. Não há nada de mais volúvel, precário e imprevisível que o desejo, e nunca se deve encorajar uma decisão de contrair matrimónio se não se aprofundaram outras motivações que confiram a este pacto reais possibilidades de estabilidade.12 PAPA FRANCISCO. Exortação Apostólica pós-sinodal Amoris Laetitia, n. 200. BAUMAN, Zygmunt. Amor líquido sobre a fragilidade dos laços humanos, p. 45s. 12 Amoris Laetitia, n. 209. 10 11

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ARTIGOS ARTIGOS 1.3 O caminho da iniciação na preparação ao matrimônio Para que esse resgate da fé e da compreensão do matrimônio cristão, é necessário “um processo gradual e contínuo”13 que marque para o casal a passagem de uma simples união para um mergulho no mistério trinitário. A complexa realidade social e os desafios, que a família é chamada a enfrentar atualmente, exigem um empenho maior de toda a comunidade cristã na preparação dos noivos para o matrimónio. É necessário lembrar a importância das virtudes. Dentre elas, resulta ser condição preciosa para o crescimento genuíno do amor interpessoal a castidade. A respeito desta necessidade, os Padres sinodais foram concordes em sublinhar a exigência dum maior envolvimento de toda a comunidade, privilegiando o testemunho das próprias famílias, e a exigência ainda duma radicação da preparação para o matrimónio no caminho da iniciação cristã, sublinhando o nexo do matrimónio com o baptismo e os outros sacramentos. Da mesma forma, evidenciou-se a necessidade de programas específicos de preparação próxima para o matrimónio que sejam verdadeira experiência de participação na vida eclesial e aprofunde vários aspectos da vida familiar.14

Acolhida (Querigma): no primeiro encontro é fundamental acolher o casal. Eles chegam ao poço onde está Jesus para fazer um caminho de descoberta. Como a samaritana que chega ao poço, assim chega o casal em busca de algo que dê significado ao compromisso que desejam fazer. Os casais em situação irregular precisam dessa acolhida, pois a Igreja é mãe de todos, Ninguém pode ser condenado para sempre, porque esta não é a lógica do Evangelho! Não me refiro só aos divorciados que vivem numa nova união, mas a todos seja qual for a situação em que se encontrem. Obviamente, se alguém ostenta um pecado objetivo como se fizesse parte do ideal cristão ou quer impor algo diferente do que a Igreja ensina, não pode pretender dar catequese ou pregar e, neste sentido, há algo que o separa da comunidade (cf. Mt 18, 17). Precisa voltar a ouvir o anúncio do Evangelho e o convite à conversão. Mas, mesmo para esta pessoa, pode haver alguma maneira de participar na vida da comunidade, quer em tarefas sociais, quer em reuniões de oração, quer na forma que lhe possa sugerir a sua própria iniciativa discernida juntamente com o pastor. Quanto ao modo de tratar as várias situações chamadas «irregulares», os Padres sinodais chegaram a um consenso geral que eu sustento: «Na abordagem pastoral das pessoas que contraíram matrimónio civil, que são divorciadas novamente casadas, ou que simplesmente convivem, compete à Igreja revelar-lhes a pedagogia divina da graça nas suas vidas e ajudá-las a alcançar a plenitude do desígnio que Deus tem para elas», sempre possível com a força do Espírito Santo.15

Todo casal passa do desconhecido, do diálogo com o estranho, para a descoberta do outro. Do significado que o outro será para uma vida a dois. Então é importante começar essa acolhida como uma merenda informal, com o testemunho de um casal. A acolhida não é, entretanto, apenas um momento do primeiro encontro, mas um acompanhamento de igreja, de casais que acolhem os demais com o abraço de mãe, que possibilita o diálogo e que faz ressoar a Palavra de Deus dando novo significado à vida deles. Seria muito interessante que no final dessa acolhida os casais fizessem o pedido de noivado ou renovassem, convidando os familiares, para ser um momento de festa e de compromisso. PAPA JOÃO PAULO II. Exortação apostólica pós-sinodal Familiaris Consortio, n. 66. FRANCISCO. Exortação Apostólica pós-sinodal Amoris Laetitia, n. 206. 15 Ibid., n. 297. 13 14

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ARTIGOS ARTIGOS Tempo: 2 encontros Método: 1.º Encontro

- apresentação geral da equipe e do itinerário; - testemunho de um casal sobre o significado do estar casado: descobertas e obstáculos; - merenda.

2.º Encontro - levantamento das expectativas dos casais e realização do pedido ou renovação do noivado com esquema apropriado. O resgate da fé (Catecumenato): aqueles que acompanham precisam apresentar a Palavra de Deus à luz da vida para suscitar esperança, segurança e participação na missão da Igreja. É necessário que o casal à luz da Palavra saiba interpretar a própria história de amor como manifestação da ação salvadora de Deus. O anúncio do Evangelho e a sua aceitação pela fé atingem a plenitude na celebração sacramental. A Igreja, comunidade crente e evangelizadora, é também povo sacerdotal, revestido de dignidade e participante do poder de Cristo Sumo Sacerdote da Nova e Eterna Aliança. A família cristã também está inserida na Igreja, povo sacerdotal: mediante o sacramento do matrimónio, no qual está radicada e do qual se alimenta, é continuamente vivificada pelo Senhor Jesus, e por Ele chamada e empenhada no diálogo com Deus mediante a vida sacramental, o oferecimento da própria existência e a oração. É este o múnus sacerdotal que a família cristã pode e deve exercitar em comunhão íntima com toda a Igreja, através das realidades quotidianas da vida conjugal e familiar: em tal sentido a família cristã é chamada a santificar-se e a santificar a comunidade cristã e o mundo.16

O casal começa a entender que Jesus pousou o olhar sobre eles e quis entrar na casa deles para habitar ali e ser um sinal permanente de salvação, portanto o namoro e o noivado não são um acaso, um tiro no escuro, um jogo de azar, mas um encontro com aquele que é capaz de mudar a casa interior de cada um (Lc 19,1-10). É estar diante de Jesus crucificado que nos ama incondicionalmente a ponto de unir o casal numa história de salvação e de eternidade. É muito importante a reflexão sobre o capítulo 4.º de Amoris Laetitia porque ali está a chave hermenêutica para compreender o amor conjugal à luz da Bíblia e da Tradição da Igreja. Nesse sentido, seria interessante a renovação das promessas do batismo e, para aqueles que ainda não foram crismados, sobretudo se forem adultos, receberem a confirmação. Tempo: 2 encontros 1.º Encontro - Apresentação do capítulo 4.º - Amoris Laetitia 2.º Encontro - Catequese sobre o Batismo e renovação das promessas batismais. Preparação ao rito do matrimônio (iluminação/purificação): o rito é uma passagem que marca a entrega consciente de um ao outro no amor. Por isso, diz-nos Francisco: 16

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ARTIGOS ARTIGOS Na preparação mais imediata, é importante esclarecer os noivos para viverem com grande profundidade a celebração litúrgica, ajudando-os a compreender e viver o significado de cada gesto. Lembremo-nos de que um compromisso tão grande como este expresso no consentimento matrimonial e a união dos corpos que consuma o matrimónio, quando se trata de dois batizados, só pode ser interpretado como sinal do amor do Filho de Deus feito carne, unido com a sua Igreja em aliança de amor. Nos batizados, as palavras e os gestos transformam-se numa linguagem que manifesta a fé. O corpo, com os significados que Deus lhe quis infundir ao criá-lo, «transforma-se na linguagem dos ministros do sacramento, conscientes de que, no pacto conjugal, se manifesta e realiza o mistério».17

O casal entrega-se gratuitamente assim como Cristo se entregou pela humanidade. O rito é um desejo de plenitude de comunhão que saberá superar todos os limites humanos. Essa entrega não estará condicionada pela crise de sentimentos e atrações apenas física, mas na acolhida por inteiro do querer estar um para o outro num projeto de salvação. É por isso que o amor conjugal é manifestação do amor do Pai e do Filho no Espírito e não apenas um pacto jurídico. A equipe de casais, com o ministro, ajudará o casal a entender o valor do rito como adesão ao projeto salvífico de Deus. Conveniente será aprofundar com os casais o capítulo 5.º de Amoris Laetitia. Nessa ocasião, o pároco fará a entrevista com os casais de forma mais tranquila ajudando a esclarecer as dúvidas que eles apresentarem. É importante recordar o que dizia João Paulo II sobre a celebração do matrimônio: Enquanto sinal, a celebração litúrgica deve desenvolver-se de maneira a constituir, mesmo no seu aspecto exterior, uma proclamação da Palavra de Deus e uma profissão de fé da comunidade dos crentes. O empenhamento pastoral terá aqui a sua expressão no diligente cuidado da preparação da «Liturgia da Palavra» e na educação para a fé dos que assistem à celebração e, em primeiro lugar, dos nubentes. Enquanto gesto sacramental da Igreja, a celebração litúrgica do matrimónio deve envolver a comunidade cristã, com uma participação plena, ativa e responsável de todos os presentes, de acordo com a posição e a função de cada um: os esposos, o sacerdote, as testemunhas, os parentes, os amigos, os demais fiéis: todos os membros de uma assembleia que manifesta e vive o mistério de Cristo e da sua Igreja.18

Tempo: 1 encontro com apresentação do rito do sacramento do matrimônio. - Apresentação do ECC e da Pastoral Familiar como meios para engajamento dos casais. Viver no cotidiano o sim definitivo (Mistagogia): o dom de amar está muito além das meras forças humanas. Trata-se de uma conquista, pois ele é apenas um fragmento do amor de Deus e a capacidade de se relacionar como homem e mulher a imagem e semelhança de Deus (Gn 1,27). O papa chama a atenção para uma continuidade: Por outro lado, quero insistir que um desafio da pastoral familiar é ajudar a descobrir que o matrimónio não se pode entender como algo acabado. A união é real, é irrevogável e foi confirmada e consagrada pelo sacramento do matrimónio; mas, ao unir-se, os esposos tornam-se protagonistas, senhores da sua própria história e criadores dum projeto que deve ser levado para a frente conjuntamente. O olhar volta-se para o futuro que é preciso construir dia após dia com a graça de Deus e, por isso mesmo, não se pretende do cônjuge que seja perfeito. É preciso pôr de lado as ilusões e aceitá-lo como é: inacabado, chamado PAPA FRANCISCO. Exortação Apostólica pós-sinodal Amoris Laetitia, n. 213-214. PAPA JOÃO PAULO II. Exortação apostólica pós-sinodal Familiaris Consortio, n. 67.

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ARTIGOS ARTIGOS a crescer, em caminho. Quando o olhar sobre o cônjuge é constantemente crítico, isto indica que o matrimónio não foi assumido também como um projeto a construir juntos, com paciência, compreensão, tolerância e generosidade. Isto faz com que o amor seja substituído pouco a pouco por um olhar inquisidor e implacável, pelo controle dos méritos e direitos de cada um, pelas reclamações, a competição e a autodefesa. Deste modo tornam-se incapazes de se apoiarem um ao outro para o amadurecimento de ambos e para o crescimento da união. Aos novos cônjuges, é necessário apresentar isto com clareza realista desde o início, de modo que tomem consciência de que estão apenas a começar. O «sim» que deram um ao outro é o início dum itinerário, cujo objetivo se propõe superar as circunstâncias que surgirem e os obstáculos que se interpuserem. A bênção recebida é uma graça e um impulso para este caminho sempre aberto. Habitualmente ajuda sentar-se a dialogar para elaborar o seu projeto concreto com os seus objetivos, meios, detalhes.19

Então, a mistagogia é a vivência do mistério recebido como graça de Deus no sim generoso do casal, portanto esse amor é a antessala do ato criador de Deus que se realiza na vida do casal em cada relação sexual, em cada abraço, carinho, atenção, respeito e na aceitação dos filhos, fruto do amor conjugal. Contudo vivemos numa época em que o filho deixou de ser uma “ponte de imortalidade, onde morrer sem filhos significava nunca ter construído uma ponte como essa. Hoje, para muitos, ter filhos significa diminuir as próprias ambições pessoais, sacrificar uma carreira”.20 A mistagogia ajuda a superar o medo: medo de perder o outro, medo de não ser livre, medo de cair na rotina, medo de não saber o que dizer ao outro, medo do futuro e da infidelidade. O problema é que, às vezes, o medo se torna realidade. O casal que se torna discípulo de Jesus, porém, percebe que ele está perto e repete sempre: Não tenha medo! Ele está no barco, ele dorme, mas não abandona o barco. Nessa etapa é também importante refletir sobre a educação dos filhos na fé. Tempo: 1 encontro pós-matrimônio em cada semestre para acompanhamento dos casais.

2 FORMAÇÃO DA EQUIPE DE CASAIS MISSIONÁRIOS Para que o processo de iniciação adaptado aos casais na sociedade líquida obtenha êxito é necessário seguir a proposta do papa Francisco na exortação Amoris Laetitia, capítulo 8.º, isto é, haver pessoas, casais preparados, capazes de acompanhar, discernir e acolher outros casais. As respostas às consultas exprimem, com insistência, também a necessidade de formar agentes leigos de pastoral familiar, com a ajuda de psicopedagogos, médicos de família, médicos de comunidade, assistentes sociais, advogados de menores e família, predispondo-os para receber as contribuições da psicologia, sociologia, sexologia e até aconselhamento. Os profissionais, particularmente aqueles que têm experiência de acompanhamento, ajudam a encarnar as propostas pastorais nas situações reais e nas preocupações concretas das famílias. «Os itinerários e cursos de formação destinados especificamente aos agentes pastorais poderão torná-los idôneos a inserir o próprio caminho de preparação para o matrimónio na dinâmica mais ampla da vida eclesial». Uma PAPA FRANCISCO. Exortação Apostólica pós-sinodal Amoris Laetitia, n. 218; JOÃO PAULO II. Exortação apostólica póssinodal Familiaris Consortio, n. 69. 20 BAUMAN, Zygmunt. Amor líquido sobre a fragilidade dos laços humanos, p. 58-60. 19

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ARTIGOS ARTIGOS boa preparação pastoral é importante, «sobretudo tendo em vista as particulares situações de emergência decorrentes dos casos de violência doméstica e abuso sexual». Tudo isto em nada diminui, antes integra, o valor fundamental da direção espiritual, dos recursos espirituais inestimáveis da Igreja e da Reconciliação sacramental.21

Portanto uma boa equipe de casais missionários que se colocam nesse dinamismo de formação precisa deixar-se guiar pela fé.22 Quem não experimenta a fé não pode ajudar os outros a vivenciá-la. Essa equipe precisa ler, meditar e praticar a Palavra de Deus para, depois disso, saber organizar o itinerário. A equipe: - precisa narrar suas experiências entre si com base no Evangelho; - deve saber que se torna para o outro um testemunho vivo do amor conjugal, jamais perfeito, mas sempre à luz do amor salvífico de Deus; - estabelece horários de encontros, programação, calendário e métodos; - deve estar consciente de que Jesus Cristo é o objetivo fundamental do acompanhamento dos casais; - precisa ter consciência de que alguns casais farão o processo de forma mais rápida e outros, de forma longa, porém cada um terá o seu tempo de encontro com a Palavra de Deus; - acompanhará, seguindo as orientações do capítulo 7.º e 8.º, os casamentos mistos, recasados etc. Tempo: Preparação da equipe durante um mês para entender o processo. - reunião da equipe antes, durante e depois do itinerário para avaliar o processo; - reuniões periódicas da equipe para estudo, convivência e aperfeiçoamento do serviço missionário.

CONSIDERAÇÕES FINAIS Propor um itinerário de iniciação adaptado a casais não é tarefa fácil, porque estamos condicionados a pensar na catequese como ação destinada a crianças ou como preparação para sacramentos. Contudo a iniciação tem como objetivo romper esse esquema escolástico e propor vivência, comunhão de pessoas, compreensão da fé na escuta atenta da Palavra de Deus. Portanto é uma tarefa possível de ser desenvolvida para o resgate do sacramento do matrimônio. No início deste artigo, fiz a pergunta sobre o sentido do sacramento do matrimônio, ou seja, o que acrescenta à união matrimonial o sacramento? Creio que a resposta foi dada ao longo do artigo. O sacramento expressa a união de Jesus com a Igreja e torna visível essa união no casal que, com o consentimento livre e consciente, torna-se sinal visível dessa união. Visto à luz da fé, essa realidade conduz o casal para a vivência da santidade na união conjugal. No processo iniciático para o sacramento do matrimônio tornam-se urgentes dois princípios: gradualidade e discernimento pastoral da situação de cada casal. Não se trata da lei, mas do amor FRANCISCO. Exortação Apostólica pós-sinodal Amoris Laetitia, n. 204. Na Familiaris Consortio, n. 73-75, aparecem os principais responsáveis por acompanhar esse itinerário, porém um bom grupo de especialistas em questões familiares seria muito mais proveitoso, na medida do possível até a participação de um psicólogo, médico, que pudesse ajudar o processo.

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ARTIGOS ARTIGOS misericordioso, ensina Papa Francisco: Não é uma “gradualidade da lei”, mas uma gradualidade no exercício prudencial dos atos livres em sujeitos que não estão em condições de compreender, apreciar ou praticar plenamente as exigências objetivas da lei. Com efeito, também a lei é dom de Deus, que indica o caminho; um dom para todos sem exceção, que se pode viver com a força da graça, embora cada ser humano “avance gradualmente com a progressiva integração dos dons de Deus e das exigências do seu amor definitivo e absoluto em toda a vida pessoal e social”.23

Por sua vez, o discernimento pastoral requer a paciência dos agentes, a disposição do casal e a realidade concreta para que a orientação seja prudente e ajude o casal a não se sentir excluso da vida eclesial. O caminho da Igreja, desde o Concílio de Jerusalém em diante, é sempre o de Jesus: o caminho da misericórdia e da integração. (...) O caminho da Igreja é o de não condenar eternamente ninguém; derramar a misericórdia de Deus sobre todas as pessoas que a pedem com coração sincero (...). Porque a caridade verdadeira é sempre imerecida, incondicional e gratuita. Por isso, “temos de evitar juízos que não tenham em conta a complexidade das diversas situações e é necessário estar atentos ao modo em que as pessoas vivem e sofrem por causa da sua condição”.24

É preciso caminhar, pois os tempos são outros e nossa resposta deve ser ousada e misericordiosa.

Referências bibliográficas BAUMAN, Zygmunt. Tempos líquidos. Trad. Carlos Alberto Medeiros. Rio de Janeiro: Zahar, 2007. _____. Amor líquido sobre a fragilidade dos laços humanos. Trad. Carlos Alberto Medeiros. Rio de Janeiro: Zahar, 2004. PAPA FRANCISCO. Exortação Apostólica pós-sinodal Amoris Laetitia. Disponível em: www.vatican.va/. HORTAL, Jesús. Os sacramentos da Igreja na sua dimensão Canônico-Pastoral. 5. ed. São Paulo: Loyola, 2000. JOÃO PAULO II. Exortação Apostólica pós-sinodal Familiaris Consortio. Disponível em: www.vatican.va/.

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PAPA FRANCISCO. Exortação Apostólica pós-sinodal Amoris Laetitia, n. 295. Ibid., n. 296.

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ARTIGOS ARTIGOS A IMPORTÂNCIA DA NARRAÇÃO NA TRANSMISSÃO DA FÉ NOS NOVOS CONTEXTOS FAMILIARES THE IMPORTANCE OF NARRATIVE IN THE TRANSMISSION OF FAITH IN THE NEW FAMILIAL CONTEXTST José Maria Siciliani Barraza*

RESUMO: O presente artigo reflete sobre a importância da narração na transmissão da fé nos novos contextos familiares. Apresenta, como tentativa de compreender o desenvolvimento de tais contextos, uma perspectiva histórica da família e sua trajetória social e, com base na experiência do autor, um enfoque catequético-narrativo para os respectivos contextos familiares. Fundamentalmente, o texto reflete sobre a experiência catequética da família. Palavras-chave: Transmissão. Fé. Família. Catequese. Indivíduo. ABSTRACT: This article reflects on the importance of narration in the transmission of faith in new familial contexts. In an attempt to understand the development of such contexts, it presents an historical perspective on the family and its social trajectory. Drawing upon the author’s own experience, it proposes taking a catechetical-narrative approach to transmitting the faith in new familial contexts. Fundamentally, the article takes into consideration the catechetical experience of being family. Keywords: Transmission. Faith. Family. Catechesis. Individual.

INTRODUÇÃO2 A catequese contemporânea vive hoje um dinamismo renovador. Tal dinamismo responde aos grandes desafios da Nova Evangelização que a Igreja está pedindo com base nos documentos do Magistério. Portanto de um lado há uma busca por novas formas, de novas linguagens e de um novo ardor (João Paulo II) e, por outro lado, uma realidade social que, com suas orientações e critérios, desafia quem pretende fazer ressoar a Palavra de Deus nos corações das mulheres e homens de hoje. É nesse duplo dinamismo (realidade desafiante e premente necessidade de evangelizar com novas formas) que se coloca essa proposta de uma catequese narrativa para os novos contextos familiares hoje. Trata-se de uma alternativa que recorre a práticas da narrativa em outros processos formativos, concretamente, a práticas daquilo que se conhece nos países de língua francesa como “História familiar e trajetória social” (Roman familial et trajectoire social). O autor desse texto considera que, com base no ponto de vista formativo-catequético, esse * José María Siciliani Barraza é mestre em Educação Religiosa, professor na Faculdade de Ciências da Educação da Universidade de La Salle, Bogotá – Colômbia, membro da Sociedade de Catequetas Latino-americanos (SCALA). 1 Palestra pronunciada pelo autor durante as VI Jornadas de Estudo da Sociedade de Catequetas Latino-americanos (SCALA), com o tema: “Mudança de época, Família e Comunidade Cristã”, em Lima (Peru) em 29 de abril de 2015.

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ARTIGOS ARTIGOS movimento formativo pode resultar significativo e inspirador de novos processos catequético-narrativos familiares. O texto constará, pois, de duas partes: a primeira mostrará brevemente por que e como se usam os relatos nos processos de formação com o enfoque “história familiar”; a segunda mostrará como o autor está usando tal enfoque nos processos catequético-familiares: que mudanças introduziu do ponto de vista catequético e que novos e fecundos aspectos está constatando com essa modalidade catequético-narrativo-familiar. 1 O ENFOQUE: “HISTÓRIA FAMILIAR E TRAJETÓRIA SOCIAL” O indivíduo é produto de uma história da qual ele busca transformar-se em sujeito. (Vincent de Gaulejac)

1.1 A história familiar e o movimento francês de Vincent de Gaulejac Trata-se de uma corrente de pesquisa e de formação permanente de adultos. Essa corrente foi iniciada principalmente por Vicent de Gaulejac na França, durante os anos de 1970. Oferece uma modalidade formativa chamada “seminários de envolvimento e de pesquisa” (séminaires d’implication et de recherche). Um desses seminários denomina-se justamente “História familiar e trajetória social”.2 Após o primeiro seminário, intitulado “Contradições sociais e contradições existenciais”, oferecido em Lourmarin (Vaucluse, França), os seminários estenderam-se por vários países como Suíça, Bélgica, Canadá, Grécia, México, Uruguai, entre outros. Essa corrente de formação com seus diferentes animadores (Max Pagé, Michel Bonetti, Michel Legrand, Alex Lainé...) gerou também trabalhos de pesquisa, particularmente centralizados nos processos sociopsicológicos que acompanham as mudanças sociais. Seus autores publicaram o resultado de tais pesquisas, especialmente na coleção “Sociologie Clinique” (Ed. Erès).3

1.2 Alguns de seus fundamentos teóricos: articular trajetória pessoal e trajetória social Esse seminário caracterizou-se sempre por propor aos participantes um “envolvimento pessoal” nos processos formativos. Trata-se não somente de uma decisão ou de uma manifestação verbal, mas também de um método que, de per si, implica um trabalho sobre a pessoa mesma do formando. De fato: desde o princípio, os promotores dessa corrente sempre experimentaram sobre eles mesmos um trabalho com as histórias de vida. Assim, provocava-se um fenômeno interessante do ponto de vista epistemológico: já não mais se separavam objeto de pesquisa e sujeito pesquisado. Essa ruptura (ou Outros seminários são oferecidos, como: “Histórias de dinheiro”; “Romances amorosos e trajetória social”; “O que eu creio”; “Diante da vergonha”; “Emoções e história de vida”; “Identidade e trajetória espacial”. 3 A maior parte dessas obras foi publicada por Vincent de Gaulejac: La nevrose de clase; Femmes au singulier ou la parentalité solitaire (com Nicole Aubert); Le cout de l’excellence (Com Nicelo Aubert); La lutte des places (com Isabel Taboada-Léonetti); Les sources de la honte; L’histoire en héritage. Roman Familial et trajectoire sociale; L’emprise de l’organisation; Le sexe du pouvoir; L’ingénierie sociale; Sociologies cliniques; La gourmandise du tapir; l’Aventure psychosociologique; la recherche malade du management; Manifeste pour sortir du mal être au travail; Travail. Les raisons de la colère; Qui est-je?; Historia de vida. Psicoanálisis y sociología clínica; La société malade de la gestion. Pode-se também consultar a coleção “Sociologie Clinique” em http://www.cairn.info/collection.php?ID_REVUE=ERES_SOCLI&NEXT=20. 2

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ARTIGOS ARTIGOS melhor, união) epistemológica caminha com uma compreensão particular da relação entre os fenômenos sociais e os processos psicológicos. Os autores dessa corrente procuram unir a realidade externa, objetiva, dos fatos sociais, com a realidade subjetiva, interna, vivenciada, dos sujeitos individuais.4 Assim, na técnica que traça a trajetória socioprofessional aparece a relação entre contexto social e histórico, e os processos de mobilidade social. Os autores também fazem a mesma proposta em algumas categorias próprias da sociologia, da psicologia ou das teorias sobre a formação.5 Do ponto de vista sociológico, o conceito de “trajetória social” tem um papel importante. Esse conceito pertence à sociologia da mobilidade social, entendida como o “conjunto de mecanismos estatisticamente significativos que descrevem quer os movimentos dos indivíduos no interior do sistema profissional no curso de sua existência, quer nos movimentos que caracterizam uma geração com relação à seguinte ou seguintes. Distingue-se, assim, a mobilidade intrageracional e a mobilidade intergeracional”.6 As técnicas empregadas por essa corrente em seus seminários (a árvore genealógica e os gráficos da trajetória social numa linha do tempo) permitem ver as articulações entre a história pessoal e a história social. Pois bem, ao lado do conceito de mobilidade social (articulado com o de trajetória profissional), encontra-se o conceito de “história familiar”. Este se associa ao conceito de mobilidade social na medida em que esta última não remete unicamente aos processos sociohistóricos, mas também a processos pessoais, psíquicos. Afirma-se, inclusive, de forma geral que a mobilidade social se sustenta com processos que pertencem à vida psíquica. Nesse horizonte psicológico, antes de tudo há desejos e projetos de realizar tais trajetórias para alcançar uma posição desejada. Porém nesse plano nunca se está sozinho: as ambições de uma pessoa dependem muitas vezes da classe social à qual pertence e também intervêm os projetos que os pais de família concebem com relação a seus filhos. E geralmente se trata de projetos que os pais não puderam realizar.7 Nessa encruzilhada de desejos, não é fácil conseguir um lugar para os projetos pessoais. Existe aí uma complexa relação entre os desejos de uns e de outros (pais e filhos). Mas, justamente aí, nessa encruzilhada, aparece o conceito de “história familiar”, que “designa o pano de fundo psíquico profundo, em grande parte inconsciente, onde se planejam as questões sobre as origens, sobre as categorias (ou os lugares) sociais ocupados pelos pais e, finalmente, a questão da identidade destes últimos”.8 É preciso esclarecer que a questão sobre o lugar social não se coloca somente em termos de saber qual tenha sido a posição objetiva dos pais na escala social, mas para o filho (a filha) a questão é também de outra ordem: saber que lugar possui no coração de seus pais. Esse conceito de “história familiar” foi forjado por Sigmund Freud e origina-se nos processos da vida psíquica da criança: o primeiro acontece quando a criança descobre que seus pais não são ideais, que há outros pais mais fortes e ricos do que os seus, mais bem posicionados. O outro processo psíquico está associado a este: a criança vê, então, que seu “idílio familiar” está em perigo. Até esse momento, seus pais eram todo-poderosos, “todo-amantes”, porque lhe prodigalizavam todos os cuidados de que Na linha daquilo que foi tentado pelo freud-marxismo de Wilhelm Reich e Herbert Marcuse. Os autores dessa corrente têm uma visão pluridisciplinar (ou multirreferencial) de seu trabalho. De fato, integram também a fenomenologia, a psicologia da família, a análise sistêmica, a Gestalt, o marxismo, a psicanálise. 6 LAINE, Alex. Faire de sa vie une histoire. Théorie et pratiques de l’histoire de vie en formation. Paris: Desclée de Brouwer, 2007, p. 112. 7 Sartre dizia: “Quando os pais têm um projeto, os filhos têm um destino”. 8 LAINE, Op. Cit., p. 114-115. 4 5

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ARTIGOS ARTIGOS ele necessitava. A criança era o “infante-rei” da casa. Porém esse idílio evapora-se, não dura muito. Primeiro, porque ao crescer a criança tem de desenvolver sua independência e, segundo, porque muitas vezes o nascimento de outro filho produz o processo de destronamento, o que desperta sentimentos de abandono, ciúmes e rivalidade. Então, sobre essas bases, a criança constrói sua “história familiar”. A criança cria, assim, pais imaginários, com um status social muito mais prestigioso. É o caso do filme “Caroline e a porta secreta”.9 A mãe de Caroline não se preocupa muito com a menina, pois não sabe cozinhar muito bem, trabalha muito e não tem tempo para sua filha. Por isso a menina entra numa história ideal: ela se transforma em prisioneira de sua mãe imaginária. Todo o filme se desenvolve ao redor desse drama, no retorno à realidade, e na demonstração dos perigos de viver da fantasia sem ter em conta a realidade. Assim, a história familiar é uma espécie de ficção que permite à criança encontrar na imaginação o amor que supostamente perdeu na realidade. Por isso “a história familiar” cumpre uma função de “reparação” ou de gratificação narcisista, já que se supõe que a criança goze da condição social elevada e dos amores de seus imaginários pais. Outra forma de “história familiar” se produz nos jovens, quando o adolescente imagina que sua mãe social é também sua mãe genética, mas isso não vale para o pai. O adolescente supõe que sua mãe o concebeu com outro homem, de mais prestígio social que o pai social-real. Aqui já entra em jogo uma representação realista da sexualidade que faltava na história familiar da criança. Com base nesses conceitos fundamentais, a corrente de formação e de pesquisa (sociologia clínica) que estamos apresentando, formula esta pergunta fundamental: “Como se encontra a história familiar no trabalho das trajetórias sociais e da genealogia”?10 A resposta é tríplice: 1. muitos participantes dos seminários se lembram de suas próprias histórias familiares, das fantasias que inventavam quando crianças ou adolescentes. Falam às vezes dos fantasmas e dos desejos de ter pais com posições sociais mais altas; 2. para algumas pessoas, a trajetória profissional se associa a um forte sentimento de injustiça: “nunca me deram uma real oportunidade, não confiaram nunca em mim, não me deram o amor que eu merecia”. É, pois, uma questão de reconhecimento pelo qual ressoa o eco de um sentimento não realizado: a perda do lugar de “menino-rei”; 3. a história familiar aparece sob a forma sutil das “lendas familiares”, histórias que circulam sobre um familiar heroico, excepcional,... Não é que o narrador do seminário as invente, nem que respondam a fatos verdadeiros. O importante é que cumpre várias funções psíquicas: favorece o sentimento de pertencer a uma família com origens excepcionais e que alguém possui um destino excepcional; justifica a ambição que se tem; veicula uma mensagem como: “mereço mais do que a sorte me concedeu, pois minhas origens garantem isso”. Tudo isso mostra que na “história familiar” está em jogo a identidade. Do ponto de vista da formação, os promotores dessa corrente questionam o sentido que possa ter hoje o fato de alguém relatar os acontecimentos e experiências maiores da própria existência, sobretudo num contexto em que está na moda a bio-oralização ou a autobiografia. Certamente vivemos numa época de individualismo, o que possibilita a história de vida. Só numa sociedade que presta atenção 9

Caroline: Livro de Neil Gaiman (Inglaterra), 2002; filme: Henry Selik (EUA), 2009. (Nota do tradutor). LAINE, Alex. Faire de sa vie une histoire, p. 115.

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ARTIGOS ARTIGOS à individualidade – inclusive ordinária e comum – cabe a autobiografia ou o relato de vida. Contudo os autores dessa corrente questionam a modernidade e a pós-modernidade como a era do indivíduo. Na realidade, na sociedade moderna ou pós-moderna, o indivíduo não ocupa um lugar central. Pelo contrário, o indivíduo está mais manipulado, controlado, submetido a estratégias de controle que o alienam de sua individualidade particular e o massificam. Não estamos diante de um “sujeito livre que se afirma em sua unidade indivisível e em sua singularidade”;11 aliás, os discursos sobre o advento do sujeito são uma cortina de fumaça que esconde outra realidade. Na realidade, a aspiração de tornar-se sujeito é só isto: uma aspiração, “um clamor tão intensamente vivo, que está muito longe de ser satisfeita”.12 Por isso afirma Alex Lainé: “a história de vida não é tanto a expressão de um individualismo preexistente, mas, sim, um dos elementos do processo pelo qual a vontade de constituir-se em sujeito individual e social se esforça por realizar-se”.13 Na prática, os indivíduos hoje são indivíduos de massa, com débeis relações sociais, na qual prevalecem a estandardização e a homogeneização deles, cujas aspirações e desejos são controlados pela indústria cultural. Acontece uma influência (emprise) que faz da individualidade uma ilusão (A. Lainé). Há uma “colonização interior” que modela até os desejos e as motivações para a ação, porém com uma armadilha sutil: deixa intacto o sentimento de liberdade, fazendo as pessoas crerem que elas realmente fazem as escolhas. É o esforço de “persuasão clandestina” (Vance Packard, 1958) que se dirige aos consumidores. Na realidade, o eu está diluído no “um” do rebanho (Nietzsche). Nesse contexto, o que faz o relato de vida num grupo ou, singularmente, de quem trabalha nos seminários? Em primeiro lugar coloca-se o “reconhecimento de si por si mesmo e pelos outros”. Em seguida, produz-se uma estruturação do curso da vida relatada, que deixa de aparecer desagregada e se torna mais unitária, inscrita nos coletivos familiares e sociais, inclusive na História (com maiúscula). Em terceiro lugar, esse processo formativo ajuda a distinguir o que pertence ao desejo, às orientações dos outros e aquilo que é próprio, autônomo. Por isso o gosto pelo relato da própria vida “consiste, propriamente, em captar a própria vida para observar nela as marcas das opções e desejos pessoais, e, ao mesmo tempo, os sinais de uma singularidade e de uma unidade, - inclusive em termos coletivos (a unidade e a singularidade de um ou vários grupos de referências ou pertença) – capazes de restaurar o laço narcisístico consigo mesmo e com os outros... a philia (Aristóteles) ou a ‘amicalidade’ (amicalité)”.14

1.3 Algumas ferramentas metodológicas Do ponto de vista metodológico, o suporte principal empregado no seminário “História familiar e trajetória social” é a “árvore genealógica”. Em grupos de no máximo doze pessoas, estabelece-se um acordo que permita o compromisso de todos (participantes e animadores). Aí se apresentam os objetivos, as modalidades técnicas, a deontologia do processo e a problemática que a fundamenta. Com esse acordo, busca-se que a oferta de formação esteja conforme a demanda. A árvore genealógica é um suporte gráfico que deve ser desenhado pelo participante e, com base nele, dá-se sua apresentação LAINE, Alex. L’approche Roman familial et trajectorie sociale. In: GAULEJAC Vincent de; LEGRAND Michel. Intervenir par le récit de vie. Entre histoire collective et histoire individuelle. Toulouse: Erés, 2010, p. 166. (Col. Sociologie Clinique). 12 Ibid., p. 166. 13 Ibid., p. 166. 14 Ibid., p. 168. 11

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ARTIGOS ARTIGOS oral diante de todo o grupo para, em seguida, continuar com uma fase de trabalho coletivo sobre o relato apresentado. Deve ser feito sobre três gerações, inclusive a do narrador. Para cada um dos personagens da árvore, pede-se, quanto possível: nome, profissão; estrato social, nível social e “sinais particulares”, isto é, o que em família se diz desses personagens. Não é necessário tê-los conhecido para obter tais informações. Escreve-se o resultado sobre uma grande folha (flip-chart, ou folha de papel-jornal, ou slide em computador, de tal forma que possa ser projetado numa tela). Devem ser usadas cores diversas, para identificar cada geração. Com essa técnica, oferece-se outra complementar, outro suporte metodológico chamado “trajetória socioprofissional”. “Trata-se de representar graficamente sobre um esquema com três eixos de tempo, situados entre o nascimento e o dia em que se realiza o exercício. Cada eixo representa um domínio de experiência determinado: a) experiências de formação; b) experiências de profissão, c) experiências de vida, de descanso, de atividade gratuita (ou voluntariado) etc. Sobre cada um desses eixos, o narrador situa cronologicamente as etapas e as experiências que ele considera significativas em seu itinerário.15

2 UM ENFOQUE CATEQUÉTICO-NARRATIVO PARA CONTEXTOS FAMILIARES Trata-se de apresentar agora a experiência realizada pelo autor, sob a inspiração dos conhecimentos da “história familiar e trajetória social”. A primeira coisa que chamou a atenção desse processo é o recurso à “árvore genealógica” e o modo de usá-la no grupo, com outras técnicas como a da trajetória profissional. O conhecimento dessas experiências suscitou a ideia de planejar reuniões de catequese familiar nas quais podemos usar alguns princípios das narrativas. Vejamos antes alguns pressupostos teóricos e preocupações teológicas que sustentaram a proposta e, em seguida, sua forma de proceder.

2.1 Dois elementos de fundamentação teórica A ideia que surgiu imediatamente, entrando em contato com a corrente de formação chamada “história familiar” e o uso que ela faz da árvore genealógica, foi a de uma “transposição didática”. Conforme a compreensão dessa categoria, não se trataria, então, de copiar mimeticamente o modelo, mas inspirar-se em alguns de seus princípios que poderiam parecer articuláveis com os objetivos de uma catequese narrativo-familiar. O primeiro deles foi a ideia do “enraizamento tradicional” da fé. Deve-se compreender tradicional no sentido preciso: se a identidade pessoal se coloca em grande parte sob a influência da história genealógica; pensamos também que as pessoas de uma família poderiam muito bem “rastrear” de forma reflexiva os processos de transmissão familiar da fé, pelos quais se inseririam na tradição católica. Como podemos notar, graças ao processo de transposição didática, do ponto de vista catequético, não são os conceitos de “história familiar e trajetória social” que prevalecem, mas o horizonte 15

LAINE, Alex. Faire de sa vie une histoire, p. 227-228.

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ARTIGOS ARTIGOS narrativo que, agora na catequese, se transforma numa tomada de consciência da pertença a uma tradição de fé. De fato, pensar na possibilidade de uma catequese familiar narrativa que se volta sobre um trabalho de reconstrução do processo de transmissão familiar (genealógico) da fé pareceu ser uma ideia interessante e metodologicamente realizável. Certamente, aqui se parte do seguinte pressuposto: as recentes pesquisas sobre a situação religiosa na América Latina (particularmente na Colômbia, no Brasil...) mostram que, apesar de todas as vicissitudes pelas quais passa a família, ela continua uma das principais fontes de transmissão da fé. Tal constatação é sustentada, teologicamente, por um conceito muito importante na fé cristã: a fé é recebida como um dom; não é fruto de um ato autofundador (ninguém pode batizar-se a si mesmo), mas um ato de acolhida de uma graça recebida pela mediação de outro, particularmente pela mediação de seus familiares. Desse ponto de vista, pensamos que se poderia ler com os participantes desses encontros catequético-familiares os relatos que narram, por exemplo, a genealogia de Jesus. A riqueza desses textos vai muito além da afirmação feita sobre a fé como uma tradição recebida. Mas tais relatos de Mateus e Lucas manifestam com certeza a importância de reconhecer que se pertence a uma família de crentes, graças aos quais se conheceu a fé. O segundo elemento que desejamos ressaltar aqui é a viabilidade metodológica sugerida pelos seminários sobre “história familiar e trajetória social”. O que interessa agora não é tanto a descrição detalhada do dispositivo didático, mas seu sentido teológico. Porque encontrar uma mediação didática aceita pelos participantes (mediante um “acordo” de participação promovido, discutido e sujeito à revisão) que permita voltar sobre a trajetória familiar que conduziu à fé assim como ela é vivida hoje pelos participantes, tal mediação é um convite a envolver-se num trabalho comunitário e pessoal que pode fazer passar de uma fé vivida como ato “mimético social”, passivo, para uma fé refletida e livremente aceita com maior consciência de seu significado. E as duas vantagens não são nada desprezíveis, mesmo que pareçam paradoxais. Efetivamente, ter de repensar as influências vividas na família, analisá-las, recordá-las e tomar consciência da forma pela qual se chegou à fé, é uma forma de entrar em contato (ativamente) com a própria história. Porém esse processo de reflexão sobre o próprio passado pode ser a ocasião de uma distância crítica que pode contribuir poderosamente, graças à catequese, para uma maturação da fé, que permite discernir o que se vive da fé por pura inércia ou imposição e aquilo que se vive por decisão ou por uma nova descoberta favorecida pela catequese. Essa forma de reflexão insere-se plenamente em todo o dinamismo lançado pela Igreja em direção à Nova Evangelização, pois assumir reflexivamente o processo pelo qual se chegou à fé – qualquer que seja seu grau de formação e sua profundidade – constitui uma maneira de retornar à retomada da fé, uma maneira renovada de evangelizar conscientemente.

2.2 As ferramentas didático-narrativas Para desenvolver esse ponto, passamos, a seguir, à descrição da experiência vivida com um grupo de famílias de Bogotá. Trata-se de cinco famílias muito próximas entre si, que participam, com certa regularidade, de eventos sociais como aniversários, casamentos etc. A ocasião desses encontros catequético-familiares aconteceu por solicitação expressa de alguns dos membros; eles manifestaram o interesse de ter alguns encontros em que se pudesse aprofundar certos aspectos da fé. ProcedeuSão Paulo,São anoPaulo, 40, n.ano 149,39,p. n. 43-51, 148, jan./jun. jul./dez. 2017. 2016.

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ARTIGOS ARTIGOS se ao planejamento de um projeto de catequese familiar com este objetivo geral: aprofundar a fé cristã que, para muitos dos membros dessas famílias, era algo vivo e importante, porém para outros constituía um problema ou pelo menos provocava muitos questionamentos. Essa última situação era a de alguns jovens dessas famílias. Sob a inspiração da experiência “história familiar”, pensou-se que seria oportuno refletir, com a ajuda de quatro ferramentas didático-narrativas, como havia sido o processo de transmissão da fé dentro de cada família. São estas as quatro ferramentas: 1) a “árvore genealógica”; 2) “o álbum familiar crente” - consistia em organizar um álbum de fotos em que aparecessem alguns momentos significativos do processo de transmissão da fé na família; 3) o itinerário pessoal-social da fé de cada um; 4) grandes acontecimentos da vida eclesial colombiana nos últimos cem anos. Com relação à “árvore genealógica da fé da família”, pediu-se a cada uma das cinco famílias que fizesse a árvore genealógica destacando os seguintes aspectos: nome, profissão, estrato social, lugares geográficos onde viveu, nível cultural, momentos importantes da vida cristã (batismos, crismas, casamentos, celebrações, outros), pessoas na família destacadas por sua vida de fé, “sinais particulares” (entendidos como ensinamentos ou testemunhos lembrados em família como autêntica herança de fé). Sugerimos que se usassem diferentes cores para cada uma das três gerações que deviam ser inclusas na árvore genealógica. Com relação ao álbum, solicitou-se que se escolhessem os momentos considerados importantes para a história da transmissão da fé em família. Cabe precisar que foi pedido para lembrarem não só os momentos positivos, mas também os negativos (apareceu o exemplo de um momento na história de uma família em que os irmãos se fizeram “cristãos”, abandonando a prática religiosa católica). Com relação ao “itinerário pessoal-social da fé de cada um”, é preciso dizer que esse é uma ferramenta de caráter mais pessoal, mas fortemente ligada aos outros recursos didático-narrativos. Com efeito, aqui se tratava de representar, sobre a linha do tempo, os momentos críticos que marcaram – tanto positiva, quanto negativamente - o processo da própria vida de fé. Foram feitas três observações complementares. A primeira indicava que podiam ser integrados momentos familiares que já haviam sido evocados na “árvore genealógica” ou no “álbum familiar crente”. A segunda indicava a possibilidade de integrar experiências vividas fora da família. A terceira assinalava que se poderia fazer um itinerário que fosse na direção oposta à fé, isto é, como se foi perdendo processualmente o interesse pela vida de fé até chegar à indiferença ou ao estado atual em que se estava, qualquer que ele fosse. Com relação à quarta ferramenta, com a ajuda de um livro sobre a história da Igreja na Colômbia, alguns jovens se animaram a fazer uma linha do tempo; nela apareciam os grandes acontecimentos da Igreja colombiana durante os últimos cem anos, período que abarca, aproximadamente, a vida das três gerações da árvore genealógica. O interesse por esse recurso foi por nele se encontrarem os nexos ou distâncias entre os acontecimentos familiares e pessoais com o desenvolvimento histórico da Igreja na Colômbia. Com essas quatro ferramentas pediu-se um estudo do sentido do texto do Evangelho de Mateus sobre a genealogia de Jesus. Com a intenção de aprofundar o texto, foram entregues aos participantes alguns resumos de análise feitos por especialistas. Trata-se de pequenos fragmentos de leitura (no máximo uma folha, usados os dois lados) que puderam servir como subsídio para a compreensão do sentido desse texto que resulta bem curioso. Dada a motivação do grupo, o interesse com esse texto 50

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ARTIGOS ARTIGOS foi inegável. Os primeiros encontros foram enriquecedores para todos ao descobrirem a importância de situar Jesus dentro de uma longa tradição que remonta a Abraão, nosso pai na fé.

CONSIDERAÇÕES FINAIS Concluindo, é preciso afirmar que essa experiência catequética está ainda em curso e que não se pode dar uma avaliação definitiva sobre ela. Mas já se podem constatar alguns dados significativos. O primeiro tem que ver com o trabalho familiar ao redor da genealogia familiar da fé. É muito positivo que a família tenha tido a oportunidade de se reunir para pensar sua história de fé durante as últimas três gerações. Gerou encontro, tempo de conhecimento e de reconhecimento. De fato, muitos jovens tinham-se esquecido até dos nomes dos bisavós, pois nunca os havia conhecido, porém sobretudo porque não se tinha tido a oportunidade de falar deles. Mas ter enfocado o diálogo, ao redor da forma como se transmitiu a fé, produziu um interesse por saber como os antepassados entendiam a fé e como as novas gerações agora a estavam entendendo. Isso despertou debates sobre o que é a fé; especialmente os jovens manifestaram suas preocupações sobre certas práticas que lhes parecem insignificantes, que qualificam abertamente como supersticiosas. Tudo isso permitiu que, em algumas reuniões, dialogassem sobre conceitos como fé, tradicionalismo, religiosidade popular, superstição, atitude mágica, pressentimentos, presságios... Um segundo indicador da fecundidade e positividade da experiência é o seguinte, produzido pelo “itinerário pessoal-social da própria fé”: uma vez que no interior da família havia alguns que tinham abandonado a fé e suas práticas, e outros que tinham abandonado a Igreja Católica por outras igrejas cristãs, teve-se a oportunidade de abrir um espaço de diálogo respeitoso e profundo sobre os itinerários, extremamente pessoais, de alguns dos membros das famílias. Uma vez que a apresentação do itinerário pessoal era voluntária e com a possibilidade de deixar que o grupo divulgasse ao narrador seu itinerário, essa metodologia provocou momentos fortes de diálogo e de encontro, de expressão de sentimentos nunca manifestados entre os membros da família. Sobretudo, proporcionou a ocasião para uma reflexão-diálogo sobre a identidade da fé católica, especialmente no que diz respeito às grandes críticas que os “cristãos” pentecostais e evangélicos fazem à Igreja Católica: o tema das imagens, da autoridade na Igreja e o tema da vida moral no interior da fé.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS GAULEJAC, Vincent de; LEGRAND, Michel. Intervenir par le récit de vie. Entre histoire collective et histoire individuelle. Toulouse: Erés, 2010. (Col. Sociologie Clinique). LAINE, Alex. Faire de sa vie une histoire. Théorie et pratiques de l’histoire de vie en formation. Paris: Desclée de Brouwer, 2007. Tradução de Pe. Luiz Alves de Lima, sdb, membro da SCALA e participante das VI Jornadas, quando foi apresentado esse tema.

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ARTIGOS ARTIGOS FONTES DA ESPIRITUALIDADE CRISTÃ SOURCES OF CHRISTIAN SPIRITUALITY

Eliton Fernando Felczak* RESUMO: A presente comunicação refere-se à descrição das fontes da espiritualidade cristã segundo Anselm Grün. Segundo ele, o estudo e a reflexão acerca da espiritualidade despertam a atenção das pessoas. A espiritualidade compreende-se como uma vivência segundo a ação do Espírito e, portanto, consiste numa dimensão constitutiva do ser humano. No cristianismo, destacam-se a Bíblia, a pessoa de Jesus Cristo e os sacramentos como fontes da espiritualidade cristã. O caminho permeado pela espiritualidade cristã permite que as pessoas se tornem fecundas para o mundo e que leve ao encontro consigo mesmas, com os outros, com a natureza e com Deus. Palavras-chave: Anselm Grün. Espiritualidade. Bíblia. Jesus Cristo. Sacramentos. ABSTRACT: This article provides a description of the sources of Christian spirituality as presented by Anselm Grün. According to Grün. the study of spirituality and reflection about spirituality arouse the attention of people. Spirituality is understood as an experience of life, that is lived according to the action of the Spirit, and therefore comprises a constitutive dimension of the human being. In Christianity, the Bible, the person of Jesus Christ and the sacraments stand out as sources of Christian spirituality. A life path that is permeated by Christian spirituality enables people to become more fruitful for the sake of the world and leads them to deeper encounters with themselves, with others, with nature and with God. Keywords: Anselm Grün. Spirituality. Bible. Jesus Christ. Sacraments.

Introdução O vocábulo espiritualidade origina-se “da palavra grega pneumatikos, que pode ser traduzida por ‘de acordo com o espírito’ ou ‘cheio do espírito’”.1 Na Bíblia não há nenhuma teoria acerca da espiritualidade, mas acenos e passagens que remetem ao espiritual, de forma particular em Paulo. Encontra-se com frequência o convite a viver como “homens espirituais” (1Cor 2,13; Gl 6,1; Rm 8,9), a viver “na perfeição da santidade, espírito, alma e corpo” (1Ts 5,23). Dentro do conhecimento teológico, é difícil delimitar uma área de estudo acerca da espiritualidade, pois “é o lugar de coincidência de várias disciplinas teológicas”.2 Percebe-se que a espiritualidade não é Bacharel em Administração pela Universidade do Contestado (UnC – Campus Mafra/SC) e Bacharel em Filosofia pela Faculdade São Luiz (FSL – Brusque/SC). Especialista em Estudos Bíblicos pela Faculdade Católica de Santa Catarina (FACASC – Florianópolis/SC) e em Espiritualidade pelo Centro Universitário Salesiano de São Paulo (UNISAL – São Paulo/SP). Seminarista da Diocese de Joinville/SC cursando o bacharelado em Teologia (FACASC) e especialização em Acompanhamento de Adolescentes e Jovens (UNISAL). E-mail: [email protected] 1 Grün, Anselm. Espiritualidade e entusiasmo. São Paulo: Paulinas, 2008, p. 12. (Grifo do autor). 2 Mondoni, Danilo. Teologia da espiritualidade cristã. São Paulo: Loyola, 2000, p. 18. •

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ARTIGOS ARTIGOS algo originado de premissas teológicas ou mesmo de experimentos científicos, mas uma síntese criativa e dinâmica entre fé e vida. “Espiritualidade é uma expressão para designar a totalidade do ser humano enquanto sentido e vitalidade, por isso espiritualidade significa viver segundo a dinâmica profunda da vida”.3 A definição anterior ajuda a compreender o sentido de espiritualidade, pois o senso comum coloca esse vocábulo como algo exclusivo de pessoas especiais, santas ou envolvidas com a religião. O objetivo deste artigo é descrever as fontes da espiritualidade cristã. A espiritualidade, por ser a dimensão mais própria e peculiar da condição humana, seria o que mais a pessoa tem para ser à semelhança de Deus, à Sua imagem (cf. Gn 1,27); ou seja, aquilo que mais reflete sua participação da natureza de Deus. Quanto mais conscientemente vive e age uma pessoa, quanto mais cultiva seus valores, seu ideal, sua mística, suas opções profundas, sua utopia... mais espiritualidade tem, mais profunda e mais rica é sua profundidade. Sua espiritualidade será o talhe de sua própria humanidade.4

Esta pesquisa coloca diante do leitor o primordial na espiritualidade cristã. Segundo o autor pesquisado, ele dá enfoque à Sagrada Escritura, à pessoa de Jesus Cristo e aos sacramentos da Igreja Católica. A Bíblia é o livro que contém a Palavra de Deus; é fonte que informa, alimenta e transforma a vida das pessoas. A Sagrada Escritura tem seu valor, pois Deus se revela a cada um na pessoa de Jesus Cristo. Jesus é o rosto humano de Deus. Deus se faz carne e vem fazer morada no meio de sua criação. Cristo é a plenitude da revelação. A Igreja, posteriormente, propagou a mensagem cristã por intermédio de uma vivência de fé na adesão aos sacramentos. Esses são sete e têm como intuito dar sentido e marcar presença nos momentos mais significativos da vida humana.

1 A significaÇÃO da Sagrada Escritura para a vida espiritual A Bíblia é uma das obras mais lidas e editadas da história da humanidade. Hoje existem edições da Bíblia, no todo ou em parte, em mais de 1.700 línguas diferentes.5 Ainda que sua narrativa registre histórias há mais de dois milênios, “até hoje ainda são lidas com entusiasmo por milhões de pessoas mundo afora”.6 Se vasta é a possibilidade de leitura da Bíblia, também é grande a gama de autores que refletem o seu conteúdo. Quanto mais se aprofunda no seu conteúdo, mais se percebe que nem todo o conhecimento foi esgotado. “A Bíblia é como fonte, da qual não para de jorrar água da vida”.7 Entre as obras literárias do gênero espiritual, inúmeros títulos são lançados acerca da espiritualidade. Anselm Grün8 desponta como um dos autores cristãos mais lidos na atualidade. Nos seus livros, o monge alemão pensa e reflete uma teologia espiritual com base na Sagrada Escritura.

Müller, Maria Campio et al. Espiritualidade e qualidade de vida. Porto Alegre: EDIPUCRS, 2004, p. 8. Casaldáliga, Pedro; Vigil, José Maria. Espiritualidade da libertação. Petrópolis: Vozes, 1993, p. 26. 5 Cf. Krauss, Heinrich; Küchler, Max. As Origens: um estudo de Gênesis 1–11. São Paulo: Paulinas, 2007, p. 247. (Coleção Cultura Bíblica). 6 Drane, John (Org.). Enciclopédia da Bíblia. São Paulo: Loyola; Paulinas, 2009, p. 9. 7 Brakemeier, Gottfried. A autoridade da Bíblia: controvérsias, significado, fundamento. 2. ed. São Leopoldo: Sinodal, 2003, p. 7. 3 4

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ARTIGOS ARTIGOS A Bíblia é, entre outras coisas, também uma coleção de mitos, do material que pertence à história da humanidade, um tipo de sabedoria coletiva acumulada, um saber profundo. Por isso, ler a Bíblia significa também obter um aprofundado conhecimento sobre o ser humano e sua origem – da qual muitas vezes não temos consciência –, conhecer camadas mais profundas do nosso ser, intuir a relação do ser humano com a divindade.9

Por mais que se lancem livros no mercado editorial, “a Bíblia continua a ser o livro dos livros, aquele do qual se alimenta a nossa vida espiritual”;10 “toda Escritura é inspirada por Deus e útil para instruir, para refutar, para corrigir, para educar na justiça, a fim de que o homem de Deus seja perfeito, qualificado para toda boa obra”.11 Os textos bíblicos têm força pelo seu conteúdo e informação; são desnecessários artifícios humanos para convencer as pessoas de sua veracidade e credibilidade. Grün procura refletir sobre o texto bíblico com base na realidade de hoje, fazendo da Escritura uma fonte espiritual abundante. Em uma de suas introduções ao relato dos Evangelhos, menciona: “O que tentarei fazer é mostrar o tesouro da Bíblia para nós, hoje, proporcionando para quem busca um novo acesso à Palavra de Deus”.12 Para o monge alemão é fundamental ter conhecimento da Sagrada Escritura. Deve-se também ter consciência de que não se pode ter pleno conhecimento de tudo o que está escrito, mas todo o esforço para adentrar a Sagrada Escritura é válido. É possível encontrar pessoas que imaginam a Bíblia como um livro elaborado e dado por Deus ao homem, da maneira como ela está estruturada. Ao contrário, a Bíblia é uma obra, composta de vários livros, elaborada pelo homem, mas inspirada por Deus, em que os autores usaram de sua linguagem e conhecimentos humanos – limitados por natureza – para comunicar a experiência que tiveram com Deus.13 A inerrância está nas verdades de fé importantes à salvação, sem pretender ser um manual de história, de geografia, de biologia e de filosofia, entre outras ciências. Os autores bíblicos serviram-se da cultura de seu tempo para anunciar a revelação divina, com a linguagem e conhecimento comum das comunidades cristãs primitivas. Lucas delineou sua imagem de Jesus sobre o pano de fundo da filosofia e mitologia gregas. A segunda carta de Pedro esboça uma imagem de Jesus no diálogo com o sincretismo helenista em que estavam presentes as religiões da Pérsia, do Egito e da Grécia. Os autores do Novo Testamento assumiram conceitos e ideias do mundo de outras religiões com os quais interpretaram Jesus.14

Anselm Grün nasceu em 14 de janeiro de 1945 em Junkershausen, na antiga Francônia (hoje incorporada a Munique, Alemanha). Com 19 anos, tornou-se monge beneditino na abadia de Münsterschwarzach em Würzburg. Lá aprendeu a arte do aconselhamento às pessoas a partir da regra de São Bento de Núrsia. Redescobriu, já nos anos de 1970, a tradição dos antigos padres monacais, cuja importância ele colocou em especial vinculação com a psicologia moderna. É conselheiro espiritual e consultor psicológico de muitos gerentes de empresas sendo um dos autores cristãos mais lidos da atualidade. Cf. Walter, Rudolf. Anselm Grün. Disponível em: http://www.einfachlebenbrief.de/gruen.html. Acesso em: 15 out. 2014. 9 Grün, Anselm; Müller, Wunibald. Deus, quem és Tu? Petrópolis: Vozes, 2012, p. 38. 10 Grün, Anselm. Jesus: modelo do ser humano. O Evangelho de Lucas. São Paulo: Loyola, 2004, p. 7-8. (Coleção Os Evangelhos). 11 Todas as citações bíblicas neste artigo são retiradas da Bíblia de Jerusalém. São Paulo: Paulus, 2012. 12 Grün, Anselm. Jesus: modelo do ser humano, p. 8. 13 Cf. Libânio, João Batista. Teologia da revelação a partir da modernidade. 5. ed. São Paulo: Loyola, 2005, p. 338. 14 Grün, Anselm. Jesus e suas dimensões. Campinas: Verus, 2006, p. 187. 8

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ARTIGOS ARTIGOS A categoria dialógica na formação dos textos remete, também, a seu diálogo com o mundo de hoje. O que foi descrito no tempo em que foram elaborados os textos ganha nova perspectiva numa leitura atual. “Nas Sagradas Escrituras o próprio Deus nos diz sobre a dinâmica do ser humano”.15 Em outras palavras, o que foi escrito no passado, segundo a linguagem e conhecimento dos autores, continua válido nos dias de hoje, devido à, entre tantas questões, condição existencial do homem. A Bíblia, composta por muitos livros e escrita por diversos autores ao longo dos séculos, é “a pessoa de Cristo que dá unidade a todas as ‘Escrituras’ postas em relação com a única ‘Palavra’”.16 O Antigo e o Novo Testamentos apresentam a mensagem salvífica divina: “Deus dispôs sabiamente que o Novo estivesse veladamente no Antigo e o Antigo se manifestasse no Novo”.17 A Bíblia não foi escrita para ser mais um livro. Meditando sobre as Sagradas Escrituras, “devemos penetrar de tal maneira nas palavras de Jesus que nossos olhos se abram ao conhecimento do mistério de Deus e de nossa própria existência humana”.18 Esse passo é realizado num clima de oração e tranquilidade no qual é possível encontrar dentro da própria pessoa “um espaço de silêncio muito maior, um lugar no qual Deus – o mistério – em mim habita”.19 A Bíblia, como fonte de oração, pode-nos “ajudar quando nos acostumamos a escutá-la, tornando-nos mais atentos, mais sensíveis ao grande mistério a que dominamos Deus”.20 É necessário um encontro diário com a Palavra deixando que cada versículo fale diretamente ao coração. “Ele é o Deus que me cinge de força e torna perfeito o meu caminho” (Sl 18,33). Assim, a Palavra põe o ser humano em contato com a força que lateja no fundo da sua alma; essa força consiste no desejo da comunhão com o Criador. “Saboreando a palavra de Deus, entramos em contato com o nosso desejo profundo de conhecer a Deus”.21 Meditando sobre a Sagrada Escritura deve-se penetrar de tal maneira nas palavras de Jesus que os olhos se abram ao conhecimento do mistério de Deus e da própria existência humana. Não podemos induzir a experiência mística através da Bíblia, mas, se a lemos com o coração assim aberto, as palavras da Sagrada Escritura podem às vezes nos levar às profundezas divinas. Sempre é uma dádiva de Deus quando a sua Palavra me toca, quando na Palavra escuto a Ele próprio e quando, na Palavra, Ele vem a meu encontro.22

Aqui se percebe que Deus não é um conceito, mas uma pessoa, capaz e em prontidão de fazer uma aliança, experiência, com o homem. Algo conceitual – semelhante ao deus dos filósofos – não poderia falar. A experiência de um Totalmente Outro, revelado na pessoa de Jesus, é algo que fala com o ser humano e que entende sua humanidade. As palavras da Bíblia são palavras de vida, palavras Grün, Anselm. Impulsos espirituais para curar as feridas da infância. Petrópolis: Vozes, 2012, p. 48. Bento XVI. Verbum Domini. Exortação Apostólica pós-sinodal sobre a Palavra de Deus na vida e na missão da Igreja. São Paulo: Paulinas, 2010, n. 39. (Grifo do autor). 17 Constituição DOGMÁTICA Dei Verbum sobre a revelação divina. In: Concílio Vaticano II. 1962-1965. Vaticano II: mensagens, discursos, documentos. São Paulo: Paulinas, 2007, n. 16. 18 Grün, Anselm. Jesus: caminho para a liberdade. O Evangelho de Marcos. São Paulo: Loyola, 2006, p. 83. (Coleção Os Evangelhos). 19 Id. O espaço interior. Petrópolis: Vozes, 2011, p. 10. 20 Grün, Anselm. Müller, Wunibald. Deus, quem és Tu?,p. 39. 21 Id. A oração como encontro. Petrópolis: Vozes, 2001, p. 97. 22 Id. Mística: descobrir o espaço interior. Petrópolis: Vozes, 2012, p. 170. 15 16

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ARTIGOS ARTIGOS que difundem a vida. “São palavras de salvação que curam os seres humanos em sua dilaceração e que pretendem elevar. Depende da correta perspectiva com que nos aproximamos da Bíblia”.23 As orações bíblicas refletem a experiência de fé de um povo, que se serviu de palavras para expressar a Deus seus pedidos, sua gratidão, seu louvor, seus desejos, suas aspirações e aflições, lamentos e dores. “A Bíblia é, sem dúvida, o livro mais rico em experiência de oração. Fundamentalmente é a história do encontro com de Deus com os homens. Um encontro que nasce da iniciativa do Senhor”.24 Ele fala primeiro e espera a resposta existencial do homem que se abre a Ele na contemplação e no amor. A meditação da Sagrada Escritura é uma ajuda para vivermos de maneira nova nosso dia-a-dia e para o dominarmos melhor. As palavras da Escritura são uma iluminação no caminho da vida. Tudo o que vivemos, elas o mostram sob uma luz diferente: a luz de Deus. Iluminados pela luz de Deus, entendemos nossa vida. E somente quando o entendemos, podemos aceitar nosso destino.25

Dentro da vida religiosa cristã, todos devem deixar a Palavra de Deus penetrar em seu coração. De acordo com são Bento, “toda mística é bíblica”.26 A mais profunda experiência divina ocorre quando permite a Palavra de Deus encarnar na vida do orante. “Para essa finalidade, a noite é considerada o tempo mais adequado. Quando tudo ao nosso redor é silêncio, Deus pode alcançar o nosso ouvido o mais facilmente possível”.27 Com os salmos é possível afirmar essa experiência: “É bom celebrar a Iahweh e tocar ao teu nome ó Altíssimo; anunciar pela manhã teu amor e tua fidelidade pelas noites” (Sl 92,2-3). A Igreja deu grande valor aos salmos na oração diária, no sentido em se reza as palavras bíblicas em união com Jesus. “Como judeu piedoso, Jesus certamente rezou salmos. Hoje, quando os rezamos, tentamos encarar este mundo e nossa vida com os olhos de Jesus”.28 O monge beneditino Anselm Grün relata sua experiência: A oração dos salmos ajuda-me a mim mesmo imaginar que eu dirijo estas palavras a Deus. Não reflito sobre as palavras, mas estou nas palavras que pronuncio, voltado para aquele a quem as dirijo. Assim, as palavras me tiram do círculo em torno de mim mesmo, de meus sentimentos religiosos ou de meu vazio interior, e conduzem para Deus.29

A unidade com Deus ocorre com o amor. “Amor é uma dádiva de Deus às pessoas, é expressão de bênção divina à criação”.30 Na Bíblia encontram-se dois cânticos ao amor: no Antigo Testamento há uma coleção de cantos amorosos no Cântico dos Cânticos e, na Primeira Epístola aos Coríntios, uma descrição do amor feita pelo apóstolo Paulo. Deus é o pastor amoroso, aquele que leva os israelitas à pastagem verdejante. Em Jesus realiza esta promessa. Ele conduz seu rebanho para um pasto verdejante e o alimenta. Ninguém pode tirar as ovelhas da mão do bom pastor (cf. Jo 10,27-29). Jesus é o bom pastor, a fonte de toda a espiritualidade cristã. Grün, Anselm. Bíblia: reflexões e meditações. Petrópolis: Vozes, 2008, p. 11. Maccise, Camilo. Rezar com a Bíblia no contexto da vida. São Paulo: Loyola, 2001, p. 19. 25 Grün, Anselm. Espiritualidade e entusiasmo, p. 37. 26 Id. No ritmo dos monges. Convivência com o tempo, um bem valioso. São Paulo: Paulinas, 2006, p. 14. (Coleção Viver Melhor). 27 Id. No ritmo dos monges, p. 10. 28 Ibid., p. 30. 29 Id. Os salmos que acompanham minha vida. Petrópolis: Vozes, 2011, p 8-9. 30 Id. Abra seu coração para o amor. Petrópolis: Vozes, 2006, p. 81. 23 24

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ARTIGOS ARTIGOS 2 Jesus Cristo, fonte da espiritualidade cristã A espiritualidade cristã orienta-se pelo Espírito de Jesus Cristo, expresso de forma singular na Sagrada Escritura. Deus, na Sua infinita bondade e sabedoria, quis revelar-se a si mesmo e manifestar o mistério da sua vontade a toda criação (cf. Ef 1,9). Ele se dá a conhecer ao ser humano por pura gratuidade, reafirmando sua Aliança de amor com a humanidade. Os homens têm acesso ao Pai e se tornam participantes da natureza divina de Cristo, Verbo encarnado, no Espírito Santo (cf. Ef 2,18; 2Pd 1,4). Deus invisível (Cl 1,15; 1Tm 1,17), revela-se por causa do seu muito amor, falando aos homens como a amigos (cf. Ex 33,11; Jo 15,14s) e conversando com eles (cf. Br 3,38), para convidá-los a estarem com ele no seu convívio.31

A história de Israel começou com a promessa feita a Abraão: “Por ti serão benditos todos os clãs da terra” (Gn 12,3). Essa história tem seu cumprimento em Jesus. Ao mesmo tempo, Deus cria em Seu Filho um novo começo: “assim como Deus criou no início o céu e a terra, criou em Jesus, o homem, que é o sentido e meta da criação”.32 Em Jesus, realiza-se o que fora prometido a Abraão: ele se torna bênção para todas as gerações futuras. Jesus Cristo é aquele que cumpriu as promessas do Antigo Testamento. “Mateus usa sempre variantes da mesma fórmula para citar a Escritura: ‘Para que se cumprisse o que diz o profeta Isaías’ (4,14). De forma análoga repete-se em 1,22; 2,15; 17,23; 8,17; 12,17; 13,35; 21,4; 27,9”.33 Jesus realiza a imagem do servo de Deus profetizado por Isaías: fez-Se luz para os que andavam nas trevas, curava os doentes levando embora as enfermidades, tratava as pessoas com estima e respeito, reerguia os exclusos e dava sentido à existência deles. Ele abre os nossos olhos para a realidade da criação, para o mistério de Deus, que poderia ter sido desvendado na criação se os homens não tivessem preferido ficar de olhos fechados. Jesus nos introduz no mistério de Deus e do ser humano.34

Toda a história da salvação, culminada na pessoa de Cristo, é evidenciada na Bíblia, com gestos e palavras intimamente ligados entre si. Os sinais deixados por Deus no percurso histórico salvífico “manifestam e confirmam os ensinamentos e as realidades significadas pelas palavras. As palavras, por sua vez, proclamam os acontecimentos e iluminam o mistério neles contido”.35 Jesus é Deus feito carne que vem habitar na história humana. O relacionamento do ser humano com Deus não pode ser o mesmo depois desse acontecimento. “Ninguém jamais viu a Deus: Seu Filho único, que está no seio do pai, no-lo revelou” (Jo 1,18). Nessa exclamação jubilosa, o hino atinge seu apogeu. Nenhum ser humano é capaz de ver Deus. Nem o próprio Moisés pôde olhar realmente para ele, pois viu apenas as suas costas. Jesus é o único que viu Deus realmente, porque ele mesmo é Deus. Ele nos revelou Deus, o tornou visível. Em Jesus somos transportados para dentro dessa intimidade com o Pai.36 Concílio Vaticano II. Dei Verbum, n. 2. Grün, Anselm. Jesus: mestre da salvação. O Evangelho de Mateus. São Paulo: Loyola, 2006, p. 27. (Coleção Os Evangelhos). 33 Ibid., p. 11. 34 Ibid., p. 11. 35 Concílio Vaticano II. Dei Verbum, n. 2. 36 Grün, Anselm. Jesus: porta para a vida. O Evangelho de João. São Paulo: Loyola, 2006, p. 36. (Coleção Os Evangelhos). 31 32

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ARTIGOS ARTIGOS Aqui reside a originalidade do cristianismo e de sua espiritualidade. O invisível se torna visível. “Com Deus se tornando homem, o coração irrequieto do ser humano é apaziguado”.37 O homem cindido por dentro pelo pecado tinha perdido sua semelhança com Deus. “Ele escurecera seu ser real. Pela encarnação, Deus restabelece sua imagem em nós, que ele tinha gravado em nós no ato da criação”.38 Os Evangelhos39 narram a vida e a missão de Jesus durante o tempo em que viveu na Palestina. Seus textos não foram escritos numa ótica histórica, como se elaboram os escritos documentais de hoje. São muitos os cientistas que se têm interessado pela história de Jesus, não se contentando somente com o que está escrito no Evangelho. Pesquisadores que vivem em Israel, em particular, que estão no mesmo local geográfico em que Jesus viveu, enriquecem-se com novas descobertas sobre o Jesus histórico. Jesus nasce no ano 7 (ou 6) antes da nossa era. Cresce em Nazaré, uma pequena aldeia da Galileia, com cerca de cem a cento e cinquenta habitantes. Dirige-se para o Jordão, provavelmente em janeiro de 28, onde João promove, há cerca de dois anos, um batismo com água do rio. A partir de março de 28, Jesus anda por Cafarnaum, local em que inicia sua atividade pública. Em novembro de 28 João é preso. Jesus, então, inicia sua missão propriamente dita. Em março de 29 João é executado. Jesus atua, sobretudo, na Galileia, mas todos os anos vai para a Festa da Páscoa em Jerusalém. Lá ele prega no Templo e expulsa do recinto os vendedores. Com isso, provoca principalmente os saduceus, que lucram com o movimento do Templo. Em 7 de abril de 30 Jesus é crucificado, na véspera da Festa da Páscoa. Seus discípulos fogem, voltando à Galileia. Ali Jesus aparece várias vezes.40

O que se registrou nos Evangelhos teve como intuito fortalecer a fé dos discípulos e animar as comunidades. O que importava era o fato de Jesus ter mudado o curso da vida dos seguidores com sua palavra e seu exemplo. “O céu e a terra passarão; minhas palavras, porém, não passarão” (Lc 21,33). Isso é evidente com seu modo de lidar com as pessoas, com suas palavras e com sua vida e morte. “Ele nos possibilitou a fé como novo modo de ver, o amor como novo modo de conduta e o louvor como expressão de nosso novo sentimento de existência”.41 Jesus é o mestre que inicia os homens na arte da vida em conformidade com Deus, sendo ele mesmo um exemplo do que prega. Jesus é o novo Moisés que conduz à liberdade. Ele tira os homens da escravidão do Egito para a Terra Prometida, para a terra em que a humanidade pode ser ela mesma. Nos dez milagres – que correspondem aos dez milagres de Moisés no caminho para a liberdade – ele nos mostra que é o homem livre. Para Mateus, o homem verdadeiramente livre é aquele que crê, que deixa seu ceticismo e vê em Jesus o Messias, o Filho de Deus (Mt 16,16).42 Grün, Anselm. Jesus: modelo do ser humano, p. 35. Id. Redenção: seu significado em nossa vida. São Paulo: Loyola, 2007, p. 28. 39 A palavra “Evangelho” significa literalmente “boa nova” e, na Bíblia, veio a ser usada a respeito de um tipo especial de boa nova. Marcos, então, prepara-se para nos transmitir a boa nova da história da salvação de seu povo por Deus; e esta história é sobre Jesus Cristo, ou Jesus, o Messias, que também é filho de Deus. Hooker, Morna D. Inícios: chaves que abrem os Evangelhos. São Paulo: Loyola, 1998, p. 20. 40 Grün, Anselm. Jesus e suas dimensões, p. 11-12. 41 Id. A fé como reinterpretação: crer, amar, louvar. São Paulo: Loyola, 2008, p. 15. 42 Id. Redenção, p. 50. 37 38

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ARTIGOS ARTIGOS A crença em Jesus, na comunidade mateana, é importante para sustentar a liberdade diante da escravidão e das trevas. Já a comunidade joanina apresenta Jesus como a luz que desceu do céu para iluminar tudo o que estava escuro. “Nele realmente abriu-se uma janela, e nós podemos lançar um olhar para o mundo do céu, para o mundo de Deus. É ele que nos levanta o véu e nos manifesta o mistério de Deus”.43 Jesus é humano e divino ao mesmo tempo. Em Jesus, Deus assumiu tudo quanto era humano. Aceitou o nascimento e a morte, a alegria e o sofrimento, as trevas e a luz. Aqui se encontra “uma experiência profunda por trás dessa compreensão de Jesus: a experiência de que Deus e o homem estão indubitavelmente unidos, de que Deus penetra inteiramente homem com seu amor e espírito divino”.44 João entende que a encarnação de Jesus deu à vida humana um novo sabor, o sabor do vinho. Isso se mostra no primeiro sinal operado por Cristo, nas bodas de Caná. Por sua morte e ressurreição, Jesus expulsa o cheiro de putrefação da vida que tem seu término biológico na morte. “O primeiro sinal faz alusão à transformação do homem operada pela encarnação de Deus em Jesus. O sétimo sinal remete à transformação pela morte e ressurreição de Jesus. É a transformação da própria morte”.45 Os sete sinais46 de João são perpassados pela vida. O próprio Jesus disse: “Eu vim para que tenham vida e a tenham em abundância” (Jo 10,10). Jesus foi anunciado pelos discípulos e esse testemunho chegou até os dias atuais. A Paixão-Morte-Ressurreição é o evento que revela plenamente toda a atividade de Jesus.47 Em cada evangelista há um significado diferente para a experiência de Jesus pregado na cruz; suas interpretações não se contradizem, mas se complementam. Para Mateus ela simboliza a não-violência de Jesus. Jesus é o profeta misericordioso, que não confia no poder e que sem violência se deixa prender e matar. Para Marcos a cruz vem ser a vitória de Jesus sobre os poderes das trevas. Em Lucas a cruz é expressão das tribulações que temos que enfrentar em nosso caminho para a glória de Deus. João foi certamente aquele que mais se estendeu na interpretação da cruz. Para ele a cruz demonstra o amor de Jesus por nós até o extremo.48

O Nazareno passou sua vida pregando o Reino de Deus. Veio cumprir a vontade do Pai revelando-se como nosso único Salvador. Sua intimidade era tão profunda com Deus que chegou a afirmar: “Eu e o Pai somos um” (Jo 10,30). Jesus apresenta um Deus que ama todos incondicionalmente como pessoa, e não os seus erros e deficiências. No Reino de Deus, a ênfase está na misericórdia divina e não no julgamento, como faziam as facções religiosas de seu tempo em consonância com Grün, Anselm. Dimensões da fé. Petrópolis: Vozes, 2005, p. 56. Id. Jesus e suas dimensões, p. 116. 45 Ibid., p. 100. 46 Na Bíblia, é comum as matérias serem organizadas na base do número sete, número da perfeição. Em João, temos o Livro dos Sinais (1,19 – 12,50), assim organizados: a semana inaugural, com o sinal da água transformada em vinho (2, 1-11); a cura do filho de um funcionário real (4,46-54); a cura de um enfermo na piscina de Betesda (5,1-18); a multiplicação dos pães (6,1-15); Jesus vem ao encontro de seus discípulos, caminhando sobre o mar (6,16-21); a cura de um cego de nascença (9,1-41); a semana pascal, centrado em torno da ressurreição de Lázaro (11,1-44). Cf. Konings, Johan. Evangelho segundo João. Amor e fidelidade. São Paulo: Loyola, 2005, p. 84-85. 47 Cf. Grün, Anselm. A cruz: a imagem do ser humano redimido. 2. ed. São Paulo: Paulus, 2010, p. 36-42. 48 Id. Jesus e suas dimensões, p. 158. 43 44

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ARTIGOS ARTIGOS a mentalidade excludente judaica.49 Jesus, numa discussão com os fariseus, disse que “não são os que têm saúde que precisam de médico, mas os doentes. Eu não vim chamar justos, mas pecadores” (Mc 2,7). Acolheu todos: os financeiramente pobres, os intelectualmente ou fisicamente deficientes, os que se sentiam moralmente desqualificados segundo os parâmetros da época. A singularidade do cristianismo está na transparência desse homem concreto, Jesus de Nazaré, homem como nós, que morreu não num acidente de estrada na Palestina, mas morreu na cruz, num processo de insurgência, porque tomou o partido dos pobres, dos humildes, transparência que permite captar a transcendência divina.50

Jesus servia-se de parábolas para comunicar-se e fazer-se entender com as pessoas, principalmente os mais humildes. O simbolismo empregado não estava restrito às ocorrências naturais, pois acentuava as realidades sociais, domésticas, políticas e econômicas que moldavam a vida dos seus contemporâneos. “Contar uma parábola, de fato, é mais do que levantar uma tese teológica. [...] Quando Jesus conta uma parábola, ele põe algo em movimento dentro do ouvinte”.51 Cristo buscou os que estavam perdidos a fim de conferir dignidade a eles. Jesus sentava-se para comer na casa dos cobradores de impostos; conversou com prostitutas, aleijados e leprosos e, também, com doutores da lei e pessoas ricas, mostrando que Deus ama a todos, incondicionalmente.52 A vida de Cristo foi dedicada à superação da ausência de relações visando instaurar a vontade do Pai, o Reino de Deus, num mundo manchado pelo pecado. Fazendo-se último dos últimos no sacrifício da cruz, experimenta a profundeza da ausência de relações, resgatando da condenação todos.53 O Reino de Deus é a vivência da espiritualidade cristã no reatamento da eterna e nova aliança/relação ente Deus e a humanidade, visando a que todos tenham a vida verdadeiramente plena. Jesus descobre para as pessoas a própria verdade. “É o Espírito de Jesus que nos liberta para a vida. O Espírito de Jesus é o Espírito da verdade”.54 No evangelho de João, Jesus diz “e conhecereis a verdade, e a verdade vos libertará” (Jo 8,32). A verdade está na pessoa de Jesus que age em comunhão com o Pai na força do Espírito Santo. Isso se dá nos momentos de oração em que Jesus se retirava constantemente. “A oração é para Jesus a experiência de que o céu está aberto, de que aqui ele vive sempre em ligação com seu Pai e de que, a partir dessa relação, ele também consegue abrir aos homens o céu”.55 A experiência de oração, no cristianismo, tem como ambientes propícios, a Sagrada Escritura ou a liturgia. “A mística bíblica e a mística cultual têm sido os lugares em que os contemplativos experimentam a união com Deus”.56 A Liturgia e a Palavra colocam Cristo como fonte da espiritualidade cristã. Na liturgia, sobretudo na vivência dos sacramentos, os fiéis encontram-se com Deus e são convidados a mergulhar no Mistério de Cristo.

Cf. Haught, John F. Mistério e Promessa. Teologia da Revelação. São Paulo: Paulus, 1998, p. 197. Boff, Leonardo. Tempo de transcendência. Rio de Janeiro: Sextante, 2000, p. 80. 51 Grün, Anselm. Jesus: modelo do ser humano, p. 47. 52 Cf. Haught, John F. Mistério e Promessa, p. 201-208. 53 Cf. Grün, Anselm. Jesus como terapeuta. O poder curador das palavras. Petrópolis: Vozes, 2012, p. 52. 54 Id. Espiritualidade e entusiasmo, p. 91. 55 Id. Jesus e suas dimensões, p. 144. 56 Id. Espiritualidade e entusiasmo, p. 46. 49 50

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ARTIGOS ARTIGOS 3 A sacramentalidade: mergulho no Mistério de Cristo A dimensão espiritual da sacramentalidade acontece no mergulho no Mistério de Cristo, ou seja, na vivência dos sacramentos. “Os sacramentos da Igreja reinterpretam os pontos cruciais da vida”.57 Os sacramentos são sinais que a Igreja encontrou para lidar com temas importantes como nascimento e morte, saúde e doença, entrada na vida adulta, amor, responsabilidade, missão e culpa. Como ritos de passagem, os sacramentos têm a ver com nossa maturidade. Não há maturidade completa. Inclusive nas plantas há crises e passagens; com maior razão, elas existem entre os seres humanos. E essas passagens devem ser acompanhadas, para que deem certo. Hoje muitos têm dificuldades de lidar com os sacramentos. Acreditam que eles não têm lugar em sua vida. No entanto, ao observamos mais detidamente os sacramentos, concluímos que são ritos maravilhosos que nos ajudam a viver mais conscientemente e a superar melhor os desafios de nossa vida.58

O encontro com o Salvador e Redentor Jesus Cristo dá-se, como mencionado, na oração, na meditação, na leitura da Bíblia e, também, nos sacramentos.59 Santo Agostinho define sacramento como “uma palavra que se vê (verbum visible); por contraste, habituamo-nos a definir a Palavra de Deus como um sacramento que se ouve (sacramentum audible)”.60 Percebe-se que os sacramentos são decorrentes da Palavra escutada que se torna visível em seus sinais. “O sacramento é uma consequência de uma adesão à proposta do Reino, vivida na Igreja. Nosso processo de crescimento na fé é permanente; os sacramentos alimentam esse processo e têm consequências na vida”.61 Sacramento é uma “ação de consagração com um juramento e um compromisso”.62 Pode também ter outros sentidos. Sacramento é a tradução da palavra grega mysterion (mysterion). Mysterion significa a iniciação do fiel no mistério da vida, e no mistério da morte e ressurreição de Jesus Cristo”.63 Esse processo não se faz num cursinho rápido nem mesmo numa catequese isolada da caminhada de fé da comunidade. “Não se trata de ‘aprender coisas’, mas de adesão consciente a um projeto de vida”.64 O Batismo é a porta de entrada dos sacramentos. Nele, os neófitos rompiam com a vida antiga e iniciavam uma vida nova. “No batismo, as pessoas renunciavam à antiga identidade para encontrar uma nova identidade em Jesus Cristo”.65 A imagem do renascimento descreve um aspecto importante do Batismo. A imagem da água que caracteriza o Batismo remete-nos à simbologia da purificação. A água é capaz de “fecundar, sacralizar e renovar a pessoa”.66 Outra imagem do Batismo é a da unção Grün, Anselm. Não esqueça o melhor: inspirações para cada dia do ano. São Paulo: Paulinas, 2008, p. 13. Id. Abra seu coração para o amor, p. 117. 59 Cf. Id. Espiritualidade e entusiasmo, p. 57. 60 Cantalamessa, Raniero. O Mistério da Palavra de Deus. 3. ed. São Paulo: Canção Nova, 2011, p. 31. (Grifo do autor). 61 Conferência Nacional dos Bispos do Brasil. Diretório Nacional de Catequese. São Paulo: Paulinas, 2006, n. 50. (Estudos da CNBB 84). 62 Neunheuser, apud Grün, Anselm. Batismo. Celebração da vida. São Paulo: Loyola, 2006, p. 14. (Coleção Sacramentos). 63 Grün, Anselm. Batismo, p. 14. (Grifo do autor). 64 Conferência Nacional dos Bispos do Brasil. Iniciação à Vida Cristã. Brasília: CNBB, 2009, n. 4. (Estudos da CNBB 97). 65 Grün, Anselm. Batismo, p. 8. 66 Ibid., p. 8. 57 58

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ARTIGOS ARTIGOS com o óleo do crisma na fronte e o óleo dos catecúmenos no peito. “Este tornou-se um cristão, isto é, ‘ungido’ do Espírito Santo, incorporado a Cristo, que é ungido sacerdote, profeta e rei”.67 O crisma é o óleo da unção dos reis, misturado a bálsamos e ervas possuindo um aroma próprio. “Os três sacramentos da iniciação cristã são o batismo, a confirmação e a eucaristia”.68 A Confirmação está em íntima conexão com o Batismo; compreende-se como reafirmação das promessas do Batismo e, por isso, da presença e ação do Espírito Santo na vida da pessoa. “A confirmação pode ser entendida como o sacramento da transformação do jovem em adulto”.69 No sacramento da Confirmação, o jovem recebe o Espírito Santo para que realize sua missão no mundo e na Igreja. O Espírito capacita o crismando a adotar um novo comportamento e a desenvolver nossas aptidões tornando-se verdadeiras testemunhas de Cristo.70 A comunidade joanina vê o Espírito Santo como um espírito pessoal de Jesus, o espírito que ele transmite aos apóstolos. Na noite de Páscoa, Jesus sopra sobre seus discípulos e diz a eles: “Recebei o Espírito Santo!” (Jo 20,22). No discurso de despedida aos discípulos, o evangelista João compreende o Espírito Santo como o Advogado. A força do alto que permitirá aos cristãos a perseverarem e a viverem em plenitude a sua fé. O Espírito Santo é o advogado que está ao nosso lado. Não ficamos sozinhos nesse mundo, quando nossos pais nos deixam ou quando saímos da casa paterna. O Espírito Santo nos acompanha, luta por nós e nos protege. [...] O Espírito fala em nosso interior e nos mostra o que serve para nós, o que é bom para nós, o que nos leva à vida. Jesus prometeu assistência a seus discípulos justamente nas adversidades de suas vidas.71

Na celebração do sacramento da Confirmação, o bispo invoca o Espírito Santo sobre os jovens para que renasçam e tornem plenos do Espírito, do amor e da força de Cristo. A unção na fronte com o óleo “deve transmitir o aroma do amor de Cristo, cobrir o jovem com o perfume de Cristo, dar-lhe algo de sua irradiação amorosa”.72 O padrinho é aquele que acompanha o crismando e dá testemunho do que o Espírito pode fazer na vida de cada um. Após os sacramentos do Batismo e da Crisma, a Eucaristia é o terceiro sacramento correspondente à iniciação cristã. Este último é o sacramento de que o fiel participa com mais frequência. A Igreja, no seu todo, celebra-a todos os dias.73 Ela é memória na qual se apresenta toda a vida dos cristãos, as alegrias e as fadigas de cada dia. Na qualidade de cristãos, não celebramos a eucaristia como memória da última ceia de Jesus, mas para comemorar tudo o que Deus fez em Jesus Cristo, quando falou aos seres humanos por meio dEle, curou os doentes, reergueu os desvalidos, evocou os pecadores à conversão e anunciou a todos a sua mensagem, mas, sobretudo, para lembrar a morte e a ressurreição de Jesus, nas quais se concentraram toda sua ação e pensamento. Justamente em nossa época sem história e sem memória, é importante celebrarmos a lembrança da redenção na história de Jesus, para que ela aconteça a nós hoje.74 Catecismo da Igreja Católica, n. 1241. (Grifo do autor). Betto, Frei. Catecismo Popular. São Paulo: Ática, 1992, p. 112. 69 Grün, Anselm. Confirmação. Responsabilidade e vigor. São Paulo: Loyola, 2006, p. 17. (Coleção Sacramentos). 70 Cf. Betto, Frei. Catecismo Popular, p. 112. 71 Grün, Anselm. Confirmação, p. 27. 72 Ibid., p. 38. 73 Id. Eucaristia. Transformação e União. 2. ed. São Paulo: Loyola, 2007, p. 8. (Coleção Sacramentos). 74 Ibid., p. 15. 67

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ARTIGOS ARTIGOS Na eucaristia celebra-se a morte e a ressurreição de Jesus. Em sua morte, Cristo se entrega pela humanidade e, em sua ressurreição, vive eternamente na presença do Pai, ao conceder este dom a todo aquele que nele acreditar.75 Uma das parábolas mais conhecidas do que a eucaristia é capaz de proporcionar aos cristãos encontra-se na passagem do filho pródigo. Na eucaristia cada um é convidado a retornar à casa do Pai. A eucaristia é a ceia da alegria que o Pai realiza para a humanidade. Ele também diz a cada um: “este meu filho estava morto e tornou a viver; estava perdido e foi reencontrado!” (Lc 15,24). “Eucaristia significa ação de graças. Agradecemos a Deus tudo o que Ele fez por nós em Jesus Cristo”.76 Quando se participa da Santa Missa apresentando a vida e sob a reflexão de cada Evangelho proposto na Liturgia da Palavra, a Eucaristia nunca se torna monótona e tediosa. Ela conduz o homem ao encontro pessoal com Jesus, capaz de renovar e santificar a vida do cristão.77 Após iniciar a vida de fé, o cristão é convidado a assumir uma missão na comunidade. Os sacramentos que despontam no decorrer de toda uma vida consistem na constituição de uma família ou mesmo na vida consagrada celibatariamente a Deus. Na celebração do casamento, os noivos ministram-se mutuamente o sacramento do Matrimônio. Aquele que se casa confia no outro. Deposita confiança no outro e na bênção de Deus. Quando alguém diz “sim” ao outro, assim o diz completamente. Mas só pode fazer isso quando diz “sim” a si mesmo, quando aceita a si mesmo incondicionalmente. Ao considerar o matrimônio um sacramento, a Igreja quer expressar com isso que o “sim” que duas pessoas dizem uma à outra tem algo a ver com Deus. A Igreja consagra o matrimônio, torna-o sagrado e completo, coloca-o sob a bênção de Deus. Com isso ela oferece aos cônjuges a esperança de que seus vínculos matrimoniais permanecerão inquebrantáveis e indestrutíveis.78

A teologia do casamento é elucidada no evangelho de Mateus 19,3-12. Aqui são feitas três afirmações importantes sobre a essência do casamento. Em primeiro lugar, trata-se do motivo e do fundamento do casamento: Deus criou os seres humanos como homens e mulheres. A segunda afirmação refere-se ao êxito do casamento. O casamento para obter êxito pressupõe um abandono, uma libertação da dependência dos pais e dos padrões de vida paternos. A terceira afirmação indica o objetivo do Matrimônio: homem e mulher se tornam uma só carne. Neles a dualidade é superada. A saudade da unidade com Deus acalma-se com o casamento.79 O caminho ordinário de santidade e plenitude de vida cristã é o casamento. É no estado conjugal que em sua maioria os homens e as mulheres se tornam santos. É na vida de família que o espírito de liberdade e união na caridade são facilmente acessíveis ao homem comum.80 O símbolo do casamento é a aliança. Como ela é circular, representa a totalidade do ser humano; pretende arredondar o que é incompleto no ser humano. “O círculo, que se fecha em si mesmo, é símbolo da unidade e da Cf. Grün, Anselm. A oração como encontro, p. 116. Id. Eucaristia, p. 12. 77 Id. Para que a tua vida respire liberdade. Rituais de purificação para o corpo e a alma. São Paulo: Paulus, 2005, p. 23. 78 Id. Matrimônio. Bênção para a vida em comum. São Paulo: Loyola, 2006, p. 13. (Grifo do autor). (Coleção Sacramentos). 79 Ibid., p. 17-19. 80 Cf. Merton, Thomas. Homem algum é uma ilha. 4. ed. Rio de Janeiro: Agir, 1961, p. 157. 75 76

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ARTIGOS ARTIGOS completude. Como não tem fim, é também uma imagem da eternidade”.81 Nas alianças, concentra-se a esperança de que os parceiros encontrarão uma unidade que os tornará completos e de que seu amor alcançará a eternidade. Além do Matrimônio, a Ordem também consiste num sacramento do serviço e da comunhão.82 O padre ou sacerdote é aquele que se coloca a serviço da comunidade seguindo a missão confiada por Cristo aos apóstolos. O sacerdote é aquele que purifica a pessoa das projeções dos outros e das ilusões criadas por ela mesma, com as quais encobre sua verdadeira imagem. Ele também purifica a pessoa da culpa que obscurece sua essência. Vê nela a beleza primordial de Deus e não se deixa levar por prejulgamentos. Descobre indícios de Deus em cada vida humana.83

As palavras do padre não são meramente as suas palavras ou a sua doutrina. “Deveriam ser sempre a doutrina de Cristo que os enviou. A ação do padre sobre as almas deveria vir de alguma coisa mais do que seu pobre poder humano para aconselhar e dar consolação”.84 Embora humanos, os seus atos, pobres e deficientes em si mesmos, devem ser sustentados pela ação sacramental de Jesus Cristo, e vivificados pelo trabalho escondido do Espírito Santo. O sacramento que alimenta a vida dos cristãos é a Eucaristia, dom celebrado e ministrado pelo sacerdote. Na antiga Igreja, o sacerdote não tinha apenas o dever de ministrar a eucaristia. Devia ministrar todos os sacramentos, e sobretudo devia anunciar a palavra de Deus na prédica e instruir os cristãos na doutrina da fé cristã. Cipriano fala da obra sagrada da Palavra, empregando para isso a palavra grega que designa “ação sacerdotal” (hierourgein). Portanto, para Cipriano a divulgação da Boa Nova é uma ação sacerdotal tanto quanto o ministério dos sacramentos.85

O anúncio da Palavra é uma ação que os sacerdotes realizam para levar os fiéis ao encontro com Deus. Os sacerdotes, pelo sacramento da Ordem, são “imagem viva de Cristo Cabeça e Pastor da Igreja”.86 Na comunidade antiga de Jerusalém já existiam pessoas que conduziam os cristãos no caminho de Jesus: “E a palavra de Deus crescia. O número dos discípulos multiplicava-se enormemente em Jerusalém, e considerável grupo de sacerdotes obedecia à fé” (At 6,7). Jesus redimiu os pecados de toda a humanidade ao passar pela Paixão-Morte-Ressurreição. No Mistério Pascal, Jesus esvazia-se de si mesmo para resgatar a sua glória. De forma semelhante, na Ordem, as pessoas também devem esvaziar-se de si próprias para que o Espírito possa agir nelas da mesma forma que no ministério de Jesus. No rito de ordenação há a prostração, os candidatos ficam deitados no chão enquanto toda a comunidade reza. É um sinal da total dedicação a Deus, o reconhecimento da própria impotência e da própria humanidade. Eles serão ordenados não porque mereceram a ordenação sacerdotal, mas porque Deus os chamou em sua fraqueza.87 Grün, Anselm. Matrimônio, p. 29. Cf. Catecismo da Igreja Católica, n. 1536. 83 Grün, Anselm. Ordem. Vida Sacerdotal. São Paulo: Loyola, 2006, p. 14. (Coleção Sacramentos). 84 Merton, Thomas. Homem algum é uma ilha, p. 153. 85 Grün, Anselm. Ordem, p. 26. (Grifo do autor). 86 João Paulo II. Pastores Dabo Vobis. Exortação Apostólica pós-sinodal sobre a formação dos sacerdotes nas circunstâncias atuais. São Paulo: Loyola, 1992, n. 42. 87 Grün, Anselm. Ordem, p. 32. 81

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ARTIGOS ARTIGOS Com relação aos sacramentos de cura, tem-se a Unção dos Enfermos e a Penitência.88 O sacramento da Unção dos Enfermos remonta à ordem de Jesus aos discípulos: “Curai os doentes, ressuscitai os mortos, purificai os leprosos, expulsai os demônios” (Mt 10,8). Jesus exige dos discípulos que realizem as mesmas coisas que Ele realizou. Para Mateus, a ideia da conformidade dos discípulos ao Mestre é muito importante. Jesus envia seus discípulos com a missão de curar os enfermos com a força de seu poder.89 No Evangelho de Marcos está descrito como os discípulos curavam os doentes. “E expulsavam muitos demônios e curavam muitos enfermos, ungindo-os com óleo” (Mc 6,13). Na Antiguidade, o óleo era um medicamento conhecido e era costume utilizá-lo nos doentes para alívio de suas enfermidades. Sobretudo o óleo de oliva era considerado símbolo de força espiritual, porque era obtido do fruto oliveira, uma árvore que cresce em solo árido e mesmo assim produz frutos. [...] Ao ungir os enfermos com óleo, os discípulos invocavam a força da bênção divina sobre eles. Assim como o óleo que cura a ferida, Deus, em nome de Jesus Cristo, dirige sua força curadora ao enfermo.90

Esse sacramento é oferecido num momento difícil em que a vida terrena está fragilizada. “A unção dos enfermos nos ajuda a enfrentar a situação da doença e nos introduz no mistério da morte”.91 A espiritualidade do sacramento da Unção tem o intuito de oferecer esperança e animar a fé do fiel, salientando que de forma alguma ele está sozinho. “Mas o determinante é que na doença, na saúde e na morte estamos sempre cercados pelo amor carinhoso de Deus”.92 No sacramento da Confissão ou da Penitência, a pessoa tenta restabelecer sua relação com Deus, consigo mesma e com o próximo. “Todos têm necessidade de penitenciar-se, pois sentem que se desviam a toda hora do caminho correto”.93 Na culpa, as pessoas sentem-se exclusas da comunidade humana; em muitas situações, necessitam do rito da confissão para sentir-se novamente parte da comunidade humana e, com isso, reconciliar-se consigo mesmas. A ideia de mudar de vida é forte nos Evangelhos. A primeira palavra de Jesus no Evangelho de Marcos diz: “Cumpriu-se o tempo e o Reino de Deus está próximo. Arrependei-vos e crede no Evangelho” (Mc 1,15). No sinal da cruz realizado com cinzas, desenhada na testa dos fiéis na quartafeira de cinzas, mostrava-se que todos os cristãos eram pecadores e dependiam da conversão. O sacramento da Penitência tem uma dimensão pascal própria, pois nele o cristão pecador é lavado e absolvido pelo sangue redentor de Cristo. O sacramento da Confissão é sinal prognóstico da Páscoa de Cristo, real antecipação, embora não completa e definitiva, da vitória final e completa sobre o pecado.94

Cf. Zilles, Urbano. Os sacramentos da Igreja Católica. Porto Alegre: EDIPUCRS, 2001, p. 27. Cf. Grün, Anselm. Unção dos Enfermos. Consolo e afeto. São Paulo: Loyola, 2007, p. 12. (Coleção Sacramentos). 90 Ibid., p. 13. 91 Id. A cruz, p. 64-65. 92 Id. Unção dos Enfermos, p. 25. 93 Id. Penitência. Celebração da Reconciliação. São Paulo: Loyola, 2006, p. 13. (Coleção Sacramentos). 94 Cf. Ramos-Regidor, José. Teologia do sacramento da penitência. São Paulo: Paulinas, 1989, p. 123-132. 88

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ARTIGOS ARTIGOS O ritual pede o arrependimento pelos erros cometidos. “Ele consiste muito mais em dizer não à ação do passado. Isso não quer dizer que reprimo o meu passado, mas que o reconheço e estou disposto a assumir a responsabilidade por ele”.95 Mais importante que ficar remoendo e analisando o passado é a oferta de si mesmo ao Deus de infinita misericórdia que ama todos. Perdoar é um ato de libertar-se do outro. A outra pessoa já não me comanda. Se não posso perdoar, estou sempre ainda ligado à outra pessoa e continuo me deixando comandar por ela. Dou-lhe poder sobre mim. No perdão, coloco-me sobre os próprios pés e deixo o ferimento com a outra pessoa.96

É importante o perdão àqueles que feriram, mas muitos não entendem o significado dessa atitude. O rito é necessário para dissolver as imagens arcaicas de culpa que ficam no inconsciente das pessoas. Também comunica ao inconsciente que “fomos aceitos incondicionalmente por Deus e que não precisamos mais reapresentar nossa culpa a nós mesmos”.97 Nenhum dos sacramentos poderá ajudar a evolução daquele que permanece em tal postura irreconciliável com sua história de vida.

Considerações Finais A espiritualidade cristã não é algo postiço, uma máscara que o ser humano veste para aparecer melhor diante dos outros. Tampouco é um manto piedoso colocado para enfrentar as dificuldades inerentes à vida. Ela não esconde nada.98 Também não é nenhum modelo pronto para ser alcançado e conquistado. “Espiritualidade é aquilo que produz dentro de nós uma mudança. O ser humano é um ser de mudanças, pois nunca está pronto, está sempre se fazendo, física, psíquica, social e culturalmente”.99 Jesus Cristo é essencialmente a fonte da espiritualidade cristã. Por meio da Sagrada Escritura, Deus se revela ao ser humano na pessoa de Jesus. Nessa fonte registra-se a aliança que Deus fez com a humanidade de forma plena e definitiva por meio de Seu Filho. É tão forte a aliança do amor de Deus com as pessoas, que Ele criou o ser humano à Sua imagem e semelhança. A revelação bíblica começa com uma pessoa (Abraão) e estende-se a toda a humanidade (Jesus). O Antigo Testamento pode ser entendido como o tempo da promessa e o Novo Testamento como o cumprimento dessa promessa. A história da salvação e a história da humanidade entrelaçam-se. A promessa do Pai cumpre-se no envio do Filho ao mundo e hoje se atualiza na força do Espírito Santo. A mensagem principal que seu Filho veio anunciar não foi conteúdo nem doutrina, embora Jesus deixasse muitos ensinamentos que posteriormente foram escritos pelos discípulos. O cristianismo é a única religião em que Deus se comunica com a humanidade encarnando-se na realidade. O Verbo se faz carne e habita com o ser humano (cf. João 1,14) para mostrar que essa realidade humana com suas imperfeições pode ser transformada pela realidade divina. Jesus é uma pessoa e não um conceito. Jesus Cristo é a plenitude da Revelação, pois Deus se faz carne e torna-se visível. Grün, Anselm. Penitência, p. 47. Id. O que fiz eu para merecer isto? A incompreensível justiça de Deus. Petrópolis: Vozes, 2008, p. 142. 97 Id. Penitência, p. 51. 98 Id. O que nutre o amor: relacionamento e espiritualidade. Petrópolis: Vozes, 2011, p. 8. 99 Boff, Leonardo. Espiritualidade: um caminho de transformação. Rio de Janeiro: Sextante, 2006, p. 14. 95 96

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ARTIGOS ARTIGOS O ser humano pode ser transformado pelo poder Palavra de Deus e da vivência sacramental. Jesus Cristo é o redentor da humanidade e em sua morte e ressurreição venceu definitivamente o pecado, ou seja, tudo aquilo que obscurece e denigre a imagem e semelhança de Deus em cada pessoa. O mergulho no Mistério de Cristo dá no conhecimento de Jesus, o Deus encarnado, bem como o estudo da Sagrada Escritura e a vivência sacramental. Jesus Cristo é a fonte da espiritualidade cristã. Foi alguém que cativou as pessoas em seu tempo e continua a atrair as pessoas a Si pelo seu modo peculiar de falar com Deus. Jesus cumpre as promessas do Antigo Testamento revelando o rosto amoroso de Deus. Fundante no itinerário cristão é compreender o significado da Sagrada Escritura para a vida espiritual. Jesus é a Palavra que se fez carne, é o sinal de que Deus ama cada pessoa e quer estar com elas formando uma aliança de amor. A contínua presença de Cristo na vida de seus seguidores consiste na adesão à comunidade de fé pelos sacramentos. Sete, eles simbolizam a perfeição, atestam a presença misericordiosa e amorosa de Jesus nos momentos mais significativos da vida terrena, como: nascimento e morte, saúde e doença, entrada na vida adulta, amor, responsabilidade, missão e culpa. Referências Bibliográficas Bento XVI. Verbum Domini. Exortação Apostólica pós-sinodal sobre a Palavra de Deus na vida e na missão da Igreja. São Paulo: Paulinas, 2010. Betto, Frei. Catecismo Popular. São Paulo: Ática, 1992. Bíblia: A Bíblia de Jerusalém. São Paulo: Paulus, 2012. Boff, Leonardo. Espiritualidade: um caminho de transformação. Rio de Janeiro: Sextante, 2006. ______. Tempo de transcendência. Rio de Janeiro: Sextante, 2000. Brakemeier, Gottfried. A autoridade da Bíblia: controvérsias, significado, fundamento. 2. ed. São Leopoldo: Sinodal, 2003. Cantalamessa, Raniero. O Mistério da Palavra de Deus. 3. ed. São Paulo: Canção Nova, 2011. Casaldáliga, Pedro. Vigil, José Maria. Espiritualidade da libertação. Petrópolis: Vozes, 1993. Concílio Vaticano II. 1962-1965. Vaticano II: mensagens, discursos, documentos. São Paulo: Paulinas, 2007. Conferência Nacional dos Bispos do Brasil. Diretório Nacional de Catequese. São Paulo: Paulinas. (Estudos da CNBB 84). ______. Iniciação à Vida Cristã. Brasília: Edições CNBB, 2009. (Estudos da CNBB 97). Drane, John (Org.). Enciclopédia da Bíblia. São Paulo: Loyola; Paulinas, 2009. Grün, Anselm. A cruz: a imagem do ser humano redimido. 2. ed. São Paulo: Paulus, 2010. ______. A fé como reinterpretação: crer, amar, louvar. São Paulo: Loyola, 2008. ______. A oração como encontro. Petrópolis: Vozes, 2001. ______. Abra seu coração para o amor. Petrópolis: Vozes, 2006. ______. Batismo. Celebração da vida. São Paulo: Loyola, 2006. ______. Bíblia: reflexões e meditações. Petrópolis: Vozes, 2008. ______. Confirmação. Responsabilidade e vigor. São Paulo: Loyola, 2006. ______. Dimensões da fé. Petrópolis: Vozes, 2005. ______. Espiritualidade e entusiasmo. São Paulo: Paulinas, 2008. ______. Eucaristia. Transformação e União. 2. ed. São Paulo: Loyola, 2007.

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ARTIGOS ARTIGOS ______. Impulsos espirituais para curar as feridas da infância. Petrópolis: Vozes, 2012. ______. Jesus como terapeuta. O poder curador das palavras. Petrópolis: Vozes, 2012. ______. Jesus e suas dimensões. Campinas: Verus, 2006. ______. Jesus: caminho para a liberdade. O Evangelho de Marcos. São Paulo: Loyola, 2006. (Coleção Os Evangelhos). ______. Jesus: mestre da salvação. O Evangelho de Mateus. São Paulo: Loyola, 2006. (Coleção Os Evangelhos). ______. Jesus: modelo do ser humano. O Evangelho de Lucas. São Paulo: Loyola, 2004. (Coleção Os Evangelhos). ______. Jesus: porta para a vida. O Evangelho de João. São Paulo: Loyola, 2006. (Coleção Os Evangelhos). ______. Matrimônio. Bênção para a vida em comum. São Paulo: Loyola, 2006. ______. Mística: descobrir o espaço interior. Petrópolis: Vozes, 2012. ______. Não esqueça o melhor: inspirações para cada dia do ano. São Paulo: Paulinas, 2008. ______. No ritmo dos monges. Convivência com o tempo, um bem valioso. São Paulo: Paulinas, 2006. (Coleção Viver Melhor). ______. O espaço interior. Petrópolis: Vozes, 2011. ______. O que fiz eu para merecer isto? A incompreensível justiça de Deus. Petrópolis: Vozes, 2008. ______. O que nutre o amor: relacionamento e espiritualidade. Petrópolis: Vozes, 2011. ______. Ordem. Vida Sacerdotal. São Paulo: Loyola, 2006. ______. Os salmos que acompanham minha vida. Petrópolis: Vozes, 2011. ______. Para que a tua vida respire liberdade. Rituais de purificação para o corpo e a alma. São Paulo: Paulus, 2005. ______. Penitência. Celebração da Reconciliação. São Paulo: Loyola, 2006. ______. Redenção: seu significado em nossa vida. São Paulo: Loyola, 2007. ______. Unção dos Enfermos. Consolo e afeto. São Paulo: Loyola, 2007. ______; Müller, Wunibald. Deus, quem és Tu? Petrópolis: Vozes, 2012. Haught, John F. Mistério e Promessa. Teologia da Revelação. São Paulo: Paulus, 1998. Hooker, Morna D. Inícios: chaves que abrem os Evangelhos. São Paulo: Loyola, 1998. João Paulo II. Pastores Dabo Vobis. Exortação Apostólica pós-sinodal sobre a formação dos sacerdotes nas circunstâncias atuais. São Paulo: Loyola, 1992. Konings, Johan. Evangelho segundo João. Amor e fidelidade. São Paulo: Loyola, 2005. Krauss, Heinrich; Küchler, Max. As Origens: um estudo de Gênesis 1–11. São Paulo: Paulinas, 2007. (Coleção Cultura Bíblica). Libânio, João Batista. Teologia da revelação a partir da modernidade. 5. ed. São Paulo: Loyola, 2005. Maccise, Camilo. Rezar com a Bíblia no contexto da vida. São Paulo: Loyola, 2001. Merton, Thomas. Homem algum é uma ilha. Trad. Timoteo A. Anastacio.4. ed. Rio de Janeiro: Agir, 1961. Mondoni, Danilo. Teologia da espiritualidade cristã. São Paulo, Loyola, 2000. Müller, Maria Campio et al. (Orgs.) Espiritualidade e qualidade de vida. Porto Alegre: EDIPUCRS, 2004. Ramos-Regidor, José. Teologia do sacramento da penitência. São Paulo: Paulinas, 1989. Walter, Rudolf. Anselm Grün. Disponível em: http://www.einfachlebenbrief.de/gruen.html. Zilles, Urbano. Os sacramentos da Igreja Católica. Porto Alegre: EDIPUCRS, 2001.

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ARTIGOS ARTIGOS SALMO 133: A VIDA DA COMUNIDADE – PROMESSA DE BÊNÇÃO ETERNA PSALM 133: THE LIFE OF COMMUNITY PROMISE OF ETERNAL BLESSING Clarisse Ferreira da Silva* Christiane Tavares Ferreira da Silva** RESUMO: Trabalharemos no presente artigo com a análise do Salmo 133. Embora seja um salmo curto comparando-se a quase todo o restante do saltério, ele surpreende pela riqueza de suas imagens e sua mensagem profunda. A primeira parte de nossa pesquisa procura responder a questões relativas à caracterização do que é um salmo e como se formou o livro bíblico que conhecemos hoje. É a partir dessa base que buscaremos fundamentar nossa análise Palavras-chave: Antigo Testamento. Salmo. Templo de Jerusalém. Peregrinação. ABSTRACT: This article provides an analysis of Psalm 133. Although it is a short psalm compared to almost all the rest of the psalms in the psalter, it offeres many surprises given the richness of its images and its profound message. The first part of this study endeavors to answer questions pertaining to the characterization of what constitutes a psalm and how the Book of Psalms as we knowit today was formed. It is on this basis of these questions that we will seek to ground our analysis. Keywords: Old Testament. Psalms. Temple of Jerusalem. Pilgrimage.

Introdução O livro dos Salmos é um dos mais lidos do Antigo Testamento, importante tanto no judaísmo quanto nas tradições cristãs. É um livro poético deveras humano, em que o fiel se dirige a Deus para agradecer suas bênçãos, declarar Sua grandeza, lamentar-se de suas dores, cantar a alegria da peregrinação e da liturgia. Este artigo tem seu início com informações para possibilitar maior compreensão do contexto do livro, para depois analisarmos brevemente os estilos e a poesia hebraica e, enfim, alcançarmos o objetivo final, a análise do Salmo 133.

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Pós-doutora em História pela USP; pesquisadora do Centro de Estudos Judaicos da FFLCH – USP. Bacharel em Relações Internacionais pela PUC-SP.

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ARTIGOS ARTIGOS 1 O significado de Salmos ou Tehillim O nome “Salmos” foi utilizado na versão grega das escrituras e refere-se a músicas acompanhadas por um instrumento de cordas1. Essa é a tradução grega do título mais frequente entre os poemas, em hebraico, aparecendo 57 vezes. A designação tornou-se usual na tradição cristã, enquanto o judaísmo utiliza o vocábulo “louvores” ou “glorificações”2. Alter comenta: “Talvez essa designação tenha sido escolhida pela predominância de poemas celebrando a grandeza de Deus nos ritos do Templo, ou mesmo por causa da sequência de cinco poemas de aleluia (Salmos 146-150) que formam uma espécie de coda3 à coleção.”4

1.1 A divisão do livro dos Salmos O livro dos Salmos é composto por 150 textos poéticos individuais, escritos durante um período de mais de 800 anos5. Na opinião de muitos especialistas, eles foram selecionados exatamente com esse objetivo, formar um livro com 150 textos. É praticamente um consenso o fato de que a coleção dos salmos foi editada propositalmente em cinco livros. Alter apresenta a suposição de que, a princípio, havia uma reunião de quatro coleções, as quais foram, depois, divididas em cinco partes, no intuito de coincidir com os cinco livros da Torá, considerando que os números têm um grande significado simbólico para o povo judeu. Desse modo, os salmos são considerados por muitos autores como a resposta de louvor de Israel à Torá, que lhes foi dada como presente de Deus. De acordo com Sicre, os cinco livros são: Sl 1-41; 42-72; 73-89; 90-106; 107-1506. Ao final dos salmos 41, 72, 89 e 106, encontramos uma doxologia que encerra cada um dos livros, todas com o sentido resumido de “Bendito seja o Senhor”7. As coleções que compõem os salmos, porém, não condizem com os cinco livros. Além disso, cada coleção pode ser dividida em coleções menores. Estas são: o Saltério de David (Sl 3-41); o Eloísta (42-83, mais apêndices) dividido em Salmos dos filhos de Coré (42-49, mais os apêndices (84-89), Salmos de Asaf (50 e 73-80) e Segundo Saltério de David (51-72); a última coleção, dividida em quatro menores: a primeira de 90-104, sem característica definidora; a segunda de 108-110 e 138-145; a terceira coleção, constituída de salmos davídicos e dos Cantos de Peregrinação, de 120-134; a quarta, com os salmos restantes, os de “aleluia”, ou salmos de encerramento8.

2 A datação do livro dos Salmos A datação, como ocorre em muitos livros do Antigo Testamento, apresenta dificuldades. De acordo com Alter, a datação da maioria dos salmos não pode ser estabelecida com precisão. O autor observa BRUEGGEMANN, W., & BELLINGER JUNIOR, W. Psalms. New York: Cambridge University Press, 2014, p. 1. ZENGER, E. O Livro dos Salmos. In E. ZENGER, & C. FREVEL. Introdução ao Antigo Testamento. São Paulo: Loyola, 1995, p. 308-309. 3 Coda – “Seção conclusiva de uma composição (sonata, sinfonia etc.) em que há repetições”. Cf. dicionário Aurélio. 4 ALTER, R. E. Salmos. In Guia Literário da Bíblia. São Paulo: UNESP, 1997, p. 267. 5 WILSON, G. H. The NIV Apllication Commentary: Psalms – Vol. 1. Michigan: Zondervan, 2002, p. 5. 6 SICRE, J. L. Introdução ao Antigo Testamento. 2 ed. Petrópolis: Vozes, 1999, p. 305 7 SCHMIDT, W. H. Introdução ao Antigo Testamento. São Leopoldo: Sinodal, 1994, p. 286. 8 SICRE, J. L. Introdução ao Antigo Testamento, p. 305-306. 1 2

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ARTIGOS ARTIGOS um hebraico bíblico tardio em alguns poemas, porém também nota que há uma tradição literária na escrita, que pouco evoluiu através dos séculos. A organização final do livro é datada por ele no período do Segundo Templo, no século II a.C.9. Wilson, por sua vez, opina que o arranjo do livro contém pistas de dois períodos históricos: os três primeiros livros refletiriam o exílio babilônico, enquanto os livros finais teriam relação com os eventos ocorridos no final do século I d.C., após a queda do Segundo Templo em 70 d.C. Desse modo, os dois momentos de crise levaram à organização do livro dos salmos10.

3 Autoria O problema da autoria parece ser ainda maior do que o da datação. 126 dos 150 salmos possuem um título, mesmo que breve. Entre esses, 101 mostram no título o nome de uma pessoa ou de um grupo de pessoas. David é o mais frequente, aparecendo em 73 salmos11, ou seja, praticamente metade de todo o saltério é-lhe atribuída. Em I e II Samuel, David é concebido como poeta e guerreiro, o que fundamentava que esse fosse, realmente, o autor. Desse modo, o problema da autoria segue. Alter relaciona as seguintes hipóteses: A sociologia da composição do salmo também permanece um tema de conjecturas. Foi sugerido que havia uma guilda profissional de poetas salmistas associada ao culto do Templo de Jerusalém, e provavelmente recrutada nas fileiras sacerdotais ou levíticas. Esses poetas comporiam peças litúrgicas para os ritos do Templo e teriam produzido também salmos (...). Tudo isso é plausível, mas indemonstrável. De qualquer modo, o caráter popular dos Salmos, o fato de os poetas salmistas nunca chegarem a desenvolver o tipo de estilo complexo e inovador que se encontra em Jó ou a intelectualidade sagaz da poesia de Provérbios levam à suspeita de que a composição de salmos não se limitou exclusivamente a um pequeno círculo profissional em Jerusalém.12

4 A liturgia e os Salmos Mencionando a liturgia do Templo, Alter aproveita para levantar a questão da função dos salmos13. Durante o século XIX e início do XX, os estudiosos viam os salmos como preces individuais. Atualmente, a maioria dos estudiosos segue a hipótese de que os salmos seriam parte do culto em Israel14, embora a visão popular ainda seja a de que serviriam preferencialmente como devoção privada. Alter considera que não temos como chegar a uma conclusão definitiva, mas defende que alguns salmos, com certeza, destinavam-se ao culto ou à liturgia15. Wilson concorda: a maioria, se não todos, eram destinados para serem apresentados em público na adoração. O autor, então, procura explicar o porquê ALTER, R. E. Salmos. In Guia Literário da Bíblia. São Paulo: UNESP, 1997, p. 265. WILSON, G. H. The NIV Apllication Commentary, p. 30. 11 ZENGER, E. O Livro dos Salmos. In E. ZENGER, & C. FREVEL. Introdução ao Antigo Testamento. São Paulo: Edições Loyola, 1995, p. 312. 12 ALTER, R. E. Salmos. In Guia Literário da Bíblia. São Paulo: UNESP, 1997, p. 264-265. 13 Ibid., p. 265-267. 14 DAY, J. Psalms. Sheffield: JSOT Press, 1990, p. 14-15. 15 ALTER, R. E. Salmos. In Guia Literário da Bíblia. São Paulo: UNESP, 1997, p. 266. 9

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ARTIGOS ARTIGOS de a visão popular ainda ser a de salmos como preces individuais. Ele identifica a destruição do Primeiro Templo e, consequentemente, o exílio como a causa do início dos salmos como preces privadas16. Brueggemann e Bellinger trazem uma visão semelhante à de Alter, percebendo a linguagem dos salmos como litúrgica em sua natureza. Assim, muitos textos teriam sido escritos por líderes associados ao culto, como vimos no caso de Coré e Asaf. A despeito de não compactuarem com aqueles autores que relacionam os salmos exclusivamente ao Templo, acreditam que atualmente muitos exegetas percebem o culto como base de diversos salmos17. Se, no entanto, apegamo-nos à tradição e damos crédito a Davi como autor de alguns salmos e patrono de músicos e poetas do antigo Israel, podemos conjecturar igualmente que parte da criação dos salmos possa ser oriunda da própria corte.

5 Poesia Hebraica A poesia hebraica é bastante distinta da ocidental. Esta é muitas vezes reconhecida por recursos como a rima ou um sistema métrico, ausentes na poesia hebraica18. Podemos elencar algumas de suas principais características: uso abundante da linguagem figurativa, jogos de palavras, metáforas, paralelismo, pares de palavras, repetição, quiasmo19, entre outras.

6 Os Gêneros dos Salmos A questão do gênero dos salmos é uma das mais estudadas no tocante ao Saltério. Hermann Gunkel foi um precursor, ao estabelecer a base para os futuros estudos sobre o assunto20. Ele encontrou cinco tipos principais de salmos: os salmos de louvor ou hinos, lamentos espirituais individuas, lamentos da comunidade, ação de graças individuais e poemas com temas menos utilizados; entre eles, os designados salmos de peregrinação21. Os hinos têm uma composição bastante uniforme. Todos começam com uma exortação ao louvor de Deus. Vêm depois os motivos do louvor, que são os prodígios realizados por Deus na natureza (...) e na história (...). As súplicas e lamentações não cantam a glória de Deus, mas se dirigem a ele. Geralmente começam com uma invocação, seguida de um pedido de ajuda, uma oração ou expressão de confiança. Na parte central se tenta comover a Deus, descrevendo a triste situação do suplicante (...). Muitas vezes concluem com a certeza de ser atendido e com uma ação de graças. Estas súplicas e lamentações se subdividem em dois grandes grupos: coletivas, por um desastre nacional ou uma WILSON, G. H. The NIV Apllication Commentary, p. 26-27. Temos, porém, especialistas como I. Knohl e J. Milgrom, que defendem que, no período pré-exílico, o culto do Primeiro Templo acontecia em total silêncio (cf. essa teoria In Knohl, 1995; Milgrom, 2004 etc.). O culto do segundo templo refletido nos livros I e II de Crônicas, ao contrário, é repleto de música e de figuras como as de músicos e cantores levitas (na Torá, essa não é uma das funções levíticas). 17 BRUEGGEMANN, W., & BELLINGER JUNIOR, W. Psalms, p. 6. 18 WILSON, G. H. The NIV Apllication Commentary, p. 26-27, p. 36. 19 Conforme o dicionário Aurélio, “figura de estilo pela qual se repetem palavras invertendo-se-lhes a ordem”. 20 DAY, J. Psalms, p. 11. 21 VANGEMEREN, W. A. Psalms. In F. E. GAEBELEIN, The Expositor’s Bible Commentary with the New International Version: Psalms, Proverbs, Ecclesiastes, Song of Songs (pp. 5-39). Michigan: Zondervan, 1991. p.12. Ver Introduction to Psalms: The Genre of the Religious Lyric of Israel. 16

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ARTIGOS ARTIGOS necessidade comum (...), e individuais, por motivo de uma enfermidade, perseguição, velhice etc. (...). A ação de graças (...). Subdivide-se também em coletiva (pela libertação de um perigo, abundância da colheita, benefícios concedidos ao rei etc.) e individual, que com frequência introduz temas didáticos.22

Sicre, aqui, oferece-nos um resumo das características dos principais gêneros classificados por Gunkel. Entre eles, não estão anunciados os salmos de peregrinação, sobre os quais trataremos no próximo tópico.

7 Salmos de Peregrinação Os salmos de peregrinação, de subida a Jerusalém ou romagem, como vimos, são considerados por Gunkel como um dos gêneros menores e tratam da jornada para o santuário, o Templo de Jerusalém23. Em Is 30,29, lemos que os peregrinos subiam para o Templo cantando e tocando músicas: “Vós, porém, fareis retumbar vossos cânticos, como na noite em que se celebra a festa; e tereis alegria no coração, como o que caminha ao som da flauta, para vir ao monte do Senhor, junto ao rochedo de Israel”24. Day conjectura que esses salmos eram cantados durante as viagens a Jerusalém, talvez ao subir os degraus da cidade de David. Ele cita que os poemas se iniciam, em sua maioria, com “cântico das subidas”, que também pode ser traduzido como “cântico dos degraus”. Em outra argumentação, os salmos 120-134 podem ser interpretados como uma celebração à volta do exílio babilônico para Israel. Goulder, estudando as tradições, defende esse ponto de vista, ou seja, de que esses salmos refletiriam o retorno a Jerusalém25. Lee, no entanto, não concorda com a argumentação de Goulder e considera que os salmos devem ser associados às peregrinações aos três festivais no Templo26. De acordo com Lee, a peregrinação foi a luz da fé judaica. E, mesmo no período do exílio, a terra prometida manteve-se como o centro religioso ainda que o templo já tivesse sido destruído. Jerusalém era a terra da morada de Deus27. Day escreve: “A visão comum associa esses salmos aos três maiores festivais do Templo. C.C. Keet, no entanto, preferiu relacioná-los aos peregrinos oferecendo seus primeiros frutos no Templo (...)”28. Clifford segue o argumento dos três festivais: os salmos 122 e 133 celebrariam Sião como o lugar de congregação das tribos de Israel, que vinham em peregrinação para as festividades29. Dos salmos de peregrinação Wilson faz uma divisão em subcategorias baseadas em suas características literárias, além dos temas e linguagem comuns que percebemos em todos eles. Os salmos 120, 123, 125, 126, 129 e 130 seriam de libertação; os 121, 132 e 134, de adoração litúrgica; SICRE, J. L. Introdução ao Antigo Testamento, p. 306 BROWN, W. P. The Psalms: an overview. In Oxford Handbook of the Psalms. New York: Oxford University Press, 2014, p. 12. 24 Todas as citações bíblicas provêm da Bíblia de Jerusalém. 25 GOULDER, M. The Psalms of the Return (Book V, Psalms 107-159): Studies in the Psalter, IV. New York: Bloomsbury T&T Clark, 1998, p. 20-21. 26 LEE, S. Y. Knowing God through Journey and Pilgrimage: a Scriptural Study of Journey, Jesus’ Pilgrimages and their significance to the Feast of Passover, Pentecost and Tabernacles. Eugene: Wipf and Stock, 2011, p. 78-79. Quais sejam: a Páscoa e as festas dos Tabernáculos e das Semanas. 27 LEE, S. Y. Knowing God through Journey and Pilgrimage, p. 78-79. 28 DAY, J. Psalms, p. 63. 29 CLIFFORD, R. J. Psalms 73-150. Nashville: Abingdon Press, 2003, p. 259. 22 23

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ARTIGOS ARTIGOS o 124, um hino de ação de graças; o 122, um louvor a Sião; o 131, atos de submissão e, por fim, os salmos 127, 128 e 133 seriam descrições das bênçãos aos fiéis30.

8 O Salmo 133 O salmo 133 é um dos salmos presentes no quinto livro. Como vimos, é classificado como salmo de peregrinação, prestando homenagem à reunião do povo ao redor do Templo de Jerusalém. Brueggemann e Bellinger creem que ele está bem adequado em sua coleção (120-134) ao focar Sião como um local abençoado pela presença divina. Seu texto é bastante curto, contando apenas três versículos, embora seja rico no uso de imagens e em suas mensagens. É mais um dos salmos associados, de algum modo, a David. O Salmo 133 inicia por meio da fórmula “cântico das subidas” ou “cântico dos degraus”, o que já o classifica como um salmo de peregrinação. Em seguida, deparamos com mais uma fórmula hebraica conhecida nos Salmos, ou seja, “leDavid”. Os estudiosos, no entanto, advertem que os títulos em hebraico anunciando “ledawid” podem querer indicar tanto a autoria “de David”, como se aquela fosse uma obra “por David” ou, ainda, “para David” ou “sobre David”. A ambiguidade da partícula hebraica “le”, portanto, torna a questão de autoria davídica para a maioria desses estudiosos uma possível ficção. John Day, no entanto, é um dos que acreditam que a partícula teria significado de autoria de. Essa autoria, contudo, teria sido atribuída a David por outro escritor, seguidor de sua tradição poética31. Day e Alter comentam que, de acordo com suas análises, os sobrescritos nos salmos seriam obras de um escritor tardio. Day completa mencionando que, cada vez mais, crescia a tendência de atribuir-se a autoria de salmos para David, como se pode perceber na versão grega, em que o número de salmos a ele atribuídos sobe de 73 para 8532. Essa tendência adquiriu a alcunha de “davidização” dos salmos. Brueggemann e Bellinger Junior sugerem que devamos compreender a tradição referente a David tendo como base a figura da realeza que teria estabelecido o culto e a utilização dos salmos no Templo de Jerusalém, em outras palavras, ele seria um patrono33. Allen, por sua vez, estranha a referência a David no título do salmo 133 e conjectura que esse pode ter sido mal posicionado, pertencendo na realidade ao salmo 132, onde estaria melhor34. Após seu enunciado, o Sl 133 principia seu conteúdo com a sabedoria de como bem viver: “Vede como é bom, como é agradável habitar todos juntos como irmãos”. O centro do primeiro verso é a questão da unidade. Os “irmãos” mencionados são motivo de debate. Brueggemann e Bellinger acreditam que o salmo começa referindo-se à família, e, posteriormente, o vocábulo teria sofrido expansão, abrangendo a comunidade que adora a Deus35. Clifford dispensa a análise fraternal: os irmãos são aqueles que têm um ancestral comum e dividem a mesma história36. Nos comentários de WILSON, G. H. The NIV Apllication Commentary, p. 58. DAY, J. Psalms, p. 114-115. 32 Ibid., p. 115. 33 BRUEGGEMANN, W., & BELLINGER JUNIOR, W. Psalms, p. 2. 34 ALLEN, L. C. Word Biblical Commentary Volume 21: Psalms 101-50, Revised. Dallas: Nelson Reference & Electronic, 2002, p. 279. 35 BRUEGGEMANN, W., & BELLINGER JUNIOR, W. Psalms, p. 558-559. 30 31

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ARTIGOS ARTIGOS Rashi, o autor expressa uma esperança escatológica sobre o seu povo: o Senhor habitará o Templo e, nesse momento, o povo de Israel se reunirá como irmãos e amigos37. A partir do segundo versículo, o poema é tomado por metáforas: É como óleo fino sobre a cabeça, descendo pela barba, a barba de Aarão, descendo sobre a gola de suas vestes. É como o orvalho do Hermon, descendo sobre os montes de Sião; Porque aí manda Iahweh a bênção, a vida para sempre.

Clifford chama a atenção para a dificuldade de entender as metáforas. Ele defende que as metáforas na poesia hebraica podem ser utilizadas para melhor descreverem imagens, mesmo que não tenham relação objetiva com o que está sendo tratado. O óleo, aqui, representaria plenitude e generosidade, além de remontar ao ordenamento legítimo dos sacerdotes. Aarão, quando ordenado por Moisés, teve sua cabeça ungida com óleo38, significando como os sumos sacerdotes deveriam ser ungidos a partir daquele momento (Lv 8, 12). A unção dos filhos de Aarão, que demonstrava como os sacerdotes comuns deviam ser investidos, era mais simples, requerendo apenas a aspersão do óleo39 (Lv 8, 30). Essa dissemelhança dos rituais de unção era uma das muitas formas com que se sinalizavam os diferentes status entre o sumo sacerdote e o sacerdote comum40. Allen coloca Aarão como o protótipo do sumo-sacerdote, que, ungido desse modo, tornavase o mediador de Deus no santuário41. Já Rashi cita a tradição tanaíta, que narra como Moisés teria imaginado ter cometido sacrilégio quando o óleo escorreu da cabeça para a barba de Aarão, temendo tê-lo derramado em demasia. A voz divina acalmou Moisés, e Aarão passou a se sentir culpado pela ofensa. A voz então haveria dito “Vede como é bom, como é agradável habitar todos juntos como irmãos42”. A imagem do óleo no Sl 133, a despeito da curiosa interpretação de Rashi, é totalmente positiva, sendo símbolo de autoridade, legitimidade e bênção. Clifford continua sua argumentação a partir do “orvalho de Hermon”. Para o autor, “Hermon” tem um significado relativo a “lugar exótico”. O monte Hermon seria famoso pela abundância de orvalho, de grande importância em adição à chuva que, em Israel, cai apenas durante o verão. Desse modo, a imagem é de Sião como um local de fertilidade, mesmo sem as chuvas, assim como o monte43. Brueggemann e Bellinger comentam que o cenário do salmo vai expandindo-se ao longo do poema: a família, a comunidade religiosa, o sacerdócio e, por fim, há uma analogia ao mundo que Deus criou,

CLIFFORD, R. J. Psalms 73-150, p. 259. GRUBER, M. I. Rashi’s Commentary on Psalms. Philadelphia: The Jewish Publication Society, 2007, p. 721. 38 CLIFFORD, R. J. Psalms 73-150, p. 259-260. O óleo da unção da investidura do sumo sacerdote e dos sacerdotes comuns era preparado com base numa receita exclusiva com determinados perfumes e especiarias puras, sendo interditado para uso fora do Templo (v. Lv 30, 22ss), até mesmo para a unção dos reis. 39 Na verdade, primeiro o sumo sacerdote era ungido na cabeça e, depois, com os demais sacerdotes, também era aspergido (como lemos no mesmo Lv 8, 30). 40 As vestes, o ritual e a função do sumo sacerdote são todas diferenciadas do sacerdote comum, que era o responsável pelos sacrifícios no altar. Recordando, por exemplo, que apenas o sumo sacerdote podia adentrar o “Santo dos Santos”, local da presença divina por definição (o equivalente ao sacrário na Igreja Católica), uma vez por ano, no Yom Kippur (Dia do Perdão; v. Lv 16). 41 ALLEN, L. C. Word Biblical Commentary Volume 21, p. 280. 42 GRUBER, M. I. Rashi’s Commentary on Psalms, p. 722. 43 CLIFFORD, R. J. Psalms 73-150, p. 261. 36 37

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ARTIGOS ARTIGOS onde o refrescante orvalho do Hermon desce a Sião. O Hermon, contudo, é também o monte mais alto de Israel. É possível que tenhamos aqui um paralelo entre o Hermon, ou seja, o monte mais alto, e o sumo sacerdote, que, como mediador da bênção divina, assume, metaforicamente, uma alta estatura. Deus o alça, estendido em Seu templo, como o ser humano mais alto, de cuja cabeça “desce” a bênção e a vida, simbolizadas pelo óleo de sua unção e o orvalho que gera fecundidade. Vale lembrar que é de Aarão/sumo sacerdote a bênção litúrgica de Nm 6, 23-27, certamente esperada ansiosamente pela comunidade reunida no templo em busca do favor divino. O salmo conclui, então, com a bênção dada aos peregrinos que vão em direção à morada de Deus44. Para Allen, Sião e a bênção funcionam como motivos proeminentes, da mesma forma que acontece nos salmos 123 e 13445. A última linha reúne tudo o que havia sido dito por meio de imagens, simbologia e metáforas. O salmo indica que os peregrinos corretamente se dirigem a Sião para receberem a graça divina, pois é a fonte de bênçãos e sustento para as pessoas46. Brueggemann e Bellinger apresentam uma síntese da interpretação do salmo: Chegando ao destino pretendido, a comunidade peregrina se reúne com uma família em Sião, e o Salmo 133 celebra o deleite e a felicidade do cenário. A exclamação de abertura do salmo de deleite na comunidade é relacionado à palavra de bênção divina. As duas imagens do salmo, o óleo e o orvalho, cultivam esse sentido da bênção e júbilo da comunidade. O úmido orvalho e o perfumado óleo de unção conjuram na imaginação dos peregrinos o senso da graciosa bênção divina, derramando sobre eles neste lugar, Sião.47

Considerações finais O Salmo 133 celebra um povo, mas não de um modo qualquer. Celebra um povo ao redor de seu Deus, no lugar que Ele mesmo o chama para reunirem-se a Ele. O sumo sacerdote é o mediador, na busca de Deus, da bênção e da vida, o agregador que leva o povo ao Templo. Talvez valha conjecturar que esse momento descrito no Salmo fosse um momento especial, o dia em que o povo acorria a Sião para presenciar e comemorar a investidura de um novo sumo sacerdote. Ali receberiam mais uma vez a bênção que outrora, quando no tempo de Moisés nascia a nação, fora pronunciada pela boca de Aarão.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ALLEN, L. C. Word Biblical Commentary Volume 21: Psalms 101-50, Revised. Dallas: Nelson Reference & Electronic, 2000. ALTER, R. E. Salmos. In Guia Literário da Bíblia. São Paulo: UNESP, 1997. BRUEGGEMANN, W., & BELLINGER JUNIOR, W. Psalms, p. 559. ALLEN, L. C. Word Biblical Commentary Volume 21, p. 277. 46 Ibid., p. 280. 47 BRUEGGEMANN, W., & BELLINGER JUNIOR, W. Psalms, p. 559. 44 45

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ARTIGOS ARTIGOS BELLINGER JUNIOR, W. Psalms and the Question of Gender. In W. P. BROWN, The Oxford Handbook of the Psalms. New York: Oxford University Press, 2014. BROWN, W. P. The Psalms: An Overview. In Oxford Handbook of the Psalms. New York: Oxford University Press, 2014. BRUEGGEMANN, W., & BELLINGER JUNIOR, W. Psalms. New York: Cambridge University Press, 2014. CLIFFORD, R. J. Psalms 73-150. Nashville: Abingdon Press, 2003. DAY, J. Psalms. Sheffield: JSOT Press, 1990. GOULDER, M. The Psalms of the Return (Book V, Psalms 107-159): Studies in the Psalter, IV. New York: Bloomsbury T&T Clark, 1998. GRUBER, M. I. Rashi’s Commentary on Psalms. Philadelphia: The Jewish Publication Society, 2007. KNOHL, I. The Sanctuary of Silence: The Priestly Torah and the Holiness School. Minneapolis: Fortress Press, 1995. LEE, S. Y. Knowing God through Journey and Pilgrimage: a Scriptural Study of Journey, Jesus’ Pilgrimages and their significance to the Feast of Passover, Pentecost and Tabernacles. Eugene: Wipf and Stock, 2011. MILGROM, J. Leviticus: a book of Ritual and Ethics. Minneapolis: Fortress Press, 2004. SCHMIDT, W. H. Introdução ao Antigo Testamento. São Leopoldo: Sinodal, 1994. SICRE, J. L. Introdução ao Antigo Testamento. 2 ed. Petrópolis: Vozes, 1999. VANGEMEREN, W. A. Psalms. In F. E. GAEBELEIN. The Expositor’s Bible Commentary with the New International Version: Psalms, Proverbs, Ecclesiastes, Song of Songs. Michigan: Zondervan, 1991. WILSON, G. H. The NIV Apllication Commentary: Psalms - Volume 1. Michigan: Zondervan, 2002. ZENGER, E. O Livro dos Salmos. In E. ZENGER, & C. FREVEL. Introdução ao Antigo Testamento. São Paulo: Loyola, 1995.

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ARTIGOS ARTIGOS A MISTAGOGIA DA PALAVRA: UMA LEITURA CATEQUÉTICA DE JOÃO 1,1-18 (SEGUNDA PARTE)

THE MISTAKE OF THE WORD: A CATECHETIC READING OF JOHN 1: 1-18 (SECOND PART)

Gilberto Siqueira Alves* RESUMO: É bem verdade que falamos muito sobre Mistagogia e às vezes esperamos “milagres” de nossos agentes catequéticos. Há um dado importante! O itinerário catecumenal não é algo acabado ou perfeito; devemos adequá-lo na práxis pastoral respeitando as potencialidades e os avanços eclesiais para melhor formar discípulos missionários do Senhor. Ascender da experiência de Deus para a experiência de fé, ou seja, participação ativa na comunidade, identidade cristã e valorização dos ritos como meios para maturidade que repercuta no testemunho cristão. Ser agentes de transformação necessita de reeducação no que temos de mais sagrado, o chamado de Deus, traduzido em conversão constante. A figura do mistagogo como amigo de caminhada e referência de espiritualidade suscita nos adultos segurança e capacidade de fluírem nesse processo de maturidade cristã. Palavras-chave: Palavra de Deus. Comunidade de fé. Mistagogo. Ministérios. Desafios. ABSTRACT: It is quite true that there is a great deal of talk about Mistagogy and that at times we expect “miracles” from our catechists. There is an important fact to keep in mind! The catechumenal journey is not something that is ever completely finished or perfected; we constantly must adapt it as we engage in pastoral praxis, always respecting the ecclesial potential and advances for improving the training and formation of missionary disciples of the Lord. To move forward from the experience of God to the experience of faith, that is to say, active participation in the community, involves growing in one’s Christian identity and discovering the value of the rites as a means for maturing in faith in ways that reverberate in and through Christian witness. To be agents of transformation we must constantly re-educate ourselves about that which we hold most sacred, the call of God, that translates into ongoing conversion. The figure of the mystagogue as a friend on the journey of faith and a point of reference for spiritual growth, arouses in adults a sense of security and the ability to flow in this unfolding process of Christian maturity. Keywords: Word of God. Community of faith. Mistagogue. Ministries. Challenges.

INTRODUÇÃO Promover o percurso mistagógico faz parte da vertente evangelizadora. Por isso, a Igreja é provocada para possibilitar aos nossos adultos consistência na fé bem como aprofundamento da identidade comunitária. Naturalmente isso não ocorre num piscar de olhos! O conjunto de ministérios que compõem os elementos da organização eclesial converge para o processo de maturidade na fé. * Frade Capuchinho e Presbítero. Licenciado em Filosofia; Bacharel em Teologia; Especialista em Docência do Ensino Fundamental, Médio e Superior, em Pedagogia Catequética e em Acompanhamento Espiritual Franciscano. Atualmente, Pároco da Paróquia Nossa Senhora da Conceição em Guaramiranga-CE. Arquidiocese de Fortaleza.

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ARTIGOS ARTIGOS Os tempos e as etapas na estrutura catecumenal não são estanques nem dissociados das demais pastorais. A Mistagogia é um convite a deixar o Espírito dinamizar e fecundar a Igreja na progressividade de ser verdadeira casa da iniciação à vida cristã. Os agentes da catequese por meio da formação continuada, da espiritualidade e motivação eclesial continuarão encontrando novos modos, resguardando o espírito catecumenal, em função de um itinerário dinâmico e profícuo, levando em conta o que se tem de específico na Diocese, Paróquia ou Comunidade. O importante é que tenhamos vivência catequética, para que, depois dos sacramentos recebidos, os catequizados não sumam de nossas comunidades. Portanto a Mistagogia é a saudável “lembrança” experiencial do que receberam com a instrução, transformado em experiência concreta de fé. Tamanho esforço exige de toda Igreja sentir nos adultos o que mais pode ser valorizado para ser conversão permanente. A partir disso, chegaremos à conclusão: Mistagogia não só ajuda os neófitos nesse desabrochar na comunidade. Faz parte do processo de vida nova respaldado na fé cotidiana desses adultos que passaram pelo processo de iniciação à vida cristã ao longo das catequeses e dos encontros diversos para agora serem, de fato, novos discípulos missionários do Senhor. A perseverança dos encontros mistagógicos é desafiadora. Por isso toda a estrutura da Igreja acolhe esses adultos para incentivá-los a aderirem à pastoral, a grupos, movimentos ou atividades caritativas. Tudo isso tendo presentes as vivências dos símbolos litúrgicos. É na fé que eles abraçarão a missão de cristãos autênticos e participantes de suas comunidades que os convidam ao protagonismo com a vida porque já foram iniciados nos mistérios do Senhor. Toda a Igreja quer sentir de perto o fruto do processo catecumenal feito pelos nossos adultos na fé, verdadeiros multiplicadores da graça de Deus em práxis evangélica cheia de entusiasmo e senso de pertença à comunidade de fé, caminho de novas atitudes a partir do ressuscitado que habita em seus corações.

1 INICIAR NOS MISTÉRIOS É IDENTIFICAR-SE COM CRISTO A partir da iniciação à vida cristã, urge trazer Cristo para a realidade palpável dos catequizados, e o mistagogo faz esse papel. Ele não é mestre nem guru. É amigo de caminhada dos adultos, para ajudá-los na nova vida. A Igreja, ao abrir-se para acompanhar os adultos na fé, pede necessariamente o auxílio dos ministérios, que devem funcionar bem para fazer sentir que a Igreja abraçou pastoralmente esse caminho, o de fazer transfigurar na vida o rosto de Cristo em cada iniciado. Foi por iniciativa de nosso Deus amoroso que Cristo participou de nossa história (cf. Jo 1,14). Como ficar indiferente à personificação da salvação, Cristo? Deste modo, a palavra que o homem dirige a Deus torna-se também Palavra de Deus, como confirmação do caráter dialógico de toda a revelação cristã, e a existência inteira do homem torna-se um diálogo com Deus que fala e escuta, que chama e dinamiza a nossa vida. Aqui a Palavra de Deus revela que toda a existência do homem está sob o chamado divino.1 1

BENTO XVI. Exortação Apostólica Pós-sinodal Verbum Domini. São Paulo: Paulinas, 2010, n. 24. São Paulo,São anoPaulo, 40, n.ano 149,39,p. n. 78-88, 148, jan./jun. jul./dez. 2017. 2016.

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ARTIGOS ARTIGOS Nessa ótica, os ministérios exercidos na estrutura catecumenal geram vida e compromisso com o reino de Deus. Como não vibrar com a distribuição das tarefas numa realidade de catequese catecumenal? Cada qual, segundo sua índole, enriquece esse processo de formar os novos cristãos. No catecumenato existem ministérios específicos2: os introdutores ou acompanhantes– pessoas de fé comprovada, “caminho pessoal de busca de Deus, ao mesmo tempo em que supõe responder a um chamado da Igreja para cumprir uma missão específica”.3 Fazem a primeira abordagem aos adultos que desejam entrar no processo de maturidade cristã. São muitos os adultos distantes da comunidade. Chamamos esse tempo fase do convite, do anúncio, da acolhida e acompanhamento limitado desses adultos. Período relativamente curto, não tem previsão exata de terminar; os padrinhos – pelo menos ao fim do tempo do catecumenato, os adultos estejam com seus padrinhos devidamente escolhidos - têm a função de representantes da comunidade. São testemunhas e ajudantes dos catecúmenos. A motivação para a escolha do padrinho deve ir além de amizade ou empatia. Depois da recepção dos sacramentos, há toda uma vida em transformação que precisa ser traduzida em profetismo na comunidade. Em alguns casos, o próprio introdutor poderá fazer a função de padrinho, ampliando, assim, o acompanhamento inicial já realizado junto ao pré-catecumenato;4 os catequistas – fazem fluir com êxito o catecumenato e motivam a comunidade para se despertar e valorizar essa dádiva de Deus na vida dos adultos. “São responsáveis pela condução do grupo catecumenal, constituído a partir da celebração de admissão, até a recepção dos sacramentos e o tempo da mistagogia”.5 Convém esclarecer que o catequista não é professor de ensino religioso. É alguém investido da graça de Deus para catequizar também com a vida; os bispos – são os mestres da fé e catequistas por excelência;6 devem publicar um Diretório Diocesano da iniciação à vida cristã para orientar e estabelecer critérios na concretização do projeto de iniciação à vida cristã. A história nos revela o devotamento dos próprios bispos na Iniciação. Alguns ‘Padres da Igreja’ se destacaram por trabalharem eles mesmos, diretamente o tempo da mistagogia. É de grande proveito ainda hoje a leitura e meditação de suas catequeses mistagógicas, ricas em conteúdos e motivação que eles transmitiram aos que haviam recebidos os Sacramentos da Iniciação na Vigília Pascal.7

Os presbíteros têm a laboriosa função, segundo o Diretório Geral de Catequese n. 225, de coordenar o trabalho de catequese no processo iniciático das comunidades. São eles que, na ausência do bispo, realizam as celebrações dos sacramentos. Motivam liturgias profundamente enraizadas no evento pascal do Senhor; os diáconos servem na liturgia, naquilo que lhe é próprio. Se solicitados, podem coordenar ou auxiliar os adultos na caminhada evangelizadora durante essa caminhada catequética. O RICA orienta, de acordo com o número 47: os diáconos podem presidir as celebrações, dependendo da realidade pastoral.8 Existe variada bibliografia sobre a função e de que modo esses ministérios específicos se integram na pastoral no processo de iniciação à vida cristã. Citamos alguns escritos para pesquisas: NENTWIG, Roberto. Iniciação à comunidade Cristã. São Paulo: Paulinas, 2013. (Coleção Catequética). RITUAL DA INICIAÇÃO CRISTÃ DE ADULTOS. 4. ed. São Paulo: Paulus, 2007. 3 ALBERICH, Emílio; BINZ, Ambroise. Catequese com adultos: elementos de metodologia. 2. ed. São Paulo: Salesiana, 2001, p. 38. 4 RITUAL DA INICIAÇÃO CRISTÃ DE ADULTOS, n. 42. 5 NENTWIG, Roberto. Iniciação à comunidade Cristã, p. 108. 6 CNBB. Diretório Nacional de Catequese. 6. ed. São Paulo: Paulinas, 2008, n. 250-251. (Documentos da CNBB 84). 7 Id. Iniciação à vida cristã: Um processo de inspiração catecumenal. São Paulo: Paulus, 2009, n. 71072. (Estudos da CNBB 97). 8 Cf. NENTWIG, Roberto. Iniciação à comunidade cristã, p. 97-110. 2

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ARTIGOS ARTIGOS Propositadamente, mencionamos esses ministérios e funções, para dizer que todos eles têm mistagogia em sua essência. São serviços da Igreja e necessários para conduzir os adultos à maturidade da fé. Desse modo, os adultos acompanhados serão estimulados a serem testemunhas evangelizadoras em suas respectivas comunidades. Quando somos capazes de deixar o mistério de Deus agir em nós, temos a confiança de que o projeto da iniciação à vida cristã não é nosso, como propriedade. Ao estender essa bonita experiência, como pede a Igreja, teremos adultos maduros na fé e partícipes de uma nova realidade eclesial: catolicismo de convicção, participação ativa na comunidade de fé e multiplicação da graça do Senhor a outros tantos irmãos e irmãs que ainda não conhecem o rosto amoroso de Cristo. Em demanda disso, com novas atitudes, trabalharão pelo bem do povo de Deus a caminho da realização na intimidade com o Senhor ressuscitado.

1.1 Ser nova criatura, eis a proposta mistagógica Os passos para Deus podem ser comparados a degraus, ou etapas de crescimento na fé. São Paulo mostra-nos a importância da evolução do cristão: “quando eu era criança falava como criança, pensava como criança, raciocinava como criança; ao tornar-me adulto, abandonei as coisas de criança” (1Cor 13,11). Quem autenticamente faz a experiência da iniciação à vida cristã estará marcado pelo processo catequético. A mistagogia, consciente disso, estimula a perseverança na comunidade. Na catequese e pastoral, é nocivo o pragmatismo sacramental! Infelizmente este ainda é habitual em nossas Paróquias. Romper com essa prática elitista e ocasional é obrigação. Com nossos catequistas, buscamos formar catequizados comprometidos com sua comunidade e autênticos testemunhos de fé. Não é utopia; é ser nova criatura, e acreditamos na Igreja animada pela força transformadora da catequese. É bem verdade que isso não ocorre subitamente. Muitas pistas mistagógicas surgem com o aprendizado oriundo da prática. Não se compreende cristão que não tenha um mínimo de pertença a uma comunidade. A pertença corrobora a vida de fé. Essas inquietações que frisamos terão sentido se a Igreja, hierarquicamente organizada, e o santo povo de Deus estiverem juntos e em sintonia. Ouvir o clamor das comunidades por fé sincera e fincada em elementos consistentes é tarefa também de nossos pastores e perspicácia dos ministérios da comunidade para fazer com que os adultos formados sejam genuínos evangelizadores do Senhor. Isso comporta novas atitudes: Ainda há que considerar que, para uma nova disposição de fé, de esperança e de caridade dos católicos, a iniciação cristã que hoje a Igreja deseja recuperar tem como fundamento e ponto de partida uma instância oficial, com recursos humanos e materiais específicos: é o querigma, o anúncio alegre, direto e incisivo do Cristo vivo (cf. At 2,22-24; 5,29-32).9

Essa trajetória não é patrimônio de uma etapa da iniciação à vida cristã. Permeia toda a vida dos adultos, não com apreensão fria de conteúdos. É a vida que se torna oração e testemunho catequético e profético na comunidade de fé. Tudo isso é ser nova criatura, comprometida com a boa-nova do Senhor. O mistagogo, além de testemunhar a vida de oração, convida os adultos iniciados para que assumam seus ministérios na comunidade que os acolhe. SÁ, Janison. A iniciação cristã no catecismo da Igreja Católica. In: FERREIRA, Antônio Luiz Catelan (Org.). Os 20 anos do Catecismo da Igreja Católica e o ano da fé. Brasília: CNBB, 2013, p. 537.

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ARTIGOS ARTIGOS Ou seja, trata-se basicamente de jamais desvincular fé e vida. A iniciação cristã não cultiva uma fé como que sobreposta à ou separada da realidade pessoal, familiar, profissional, social. Levar a compreendê-la e assumi-la a partir de novos parâmetros: o seguimento de Jesus Cristo em função da chegada do Reino de Deus.10

É a comunidade, útero de cristãos, que tem de ser beneficiada com os frutos de novos irmãos e irmãs na fé. Somos continuadores da boa nova de Jesus. O tempo presente questiona a qualidade da presença profética da Igreja interna e externamente. Porém anima saber que o Espírito Santo mobiliza os cristãos a dinamizar a Igreja, para que todos tenham vida: É também notória a busca intensa da Igreja à procura de responder à necessidade e ao anseio por um melhor e mais qualificado conhecimento para atuar de maneira eficaz na evangelização. A Igreja universal e as Igrejas particulares produziram muito no desejo de indicar pistas e apontar caminhos para uma melhor ação educativa e evangelizadora. Isso não quer dizer que o conteúdo destes documentos foram sempre colocados em prática, mas podemos afirmar que houve um esforço de preparar melhor os agentes evangelizadores.11

É bem verdade que os documentos produzidos pela Igreja devem descer às bases. Foram redigidos para que, entre tantas motivações, respondam aos apelos pastorais. Um dos grandes exemplos positivos dessa aproximação prática, no que toca à catequese, foi a redação do Documento de Aparecida 2007, n. 290, elaborado em terra brasileira. Quanto à dimensão mistagógica, ele orienta-nos desta forma: Trata-se de uma experiência que introduz o cristão numa profunda e feliz celebração dos sacramentos, com toda a riqueza de seus sinais. Desse modo, a vida vem se transformando progressivamente pelos santos mistérios que se celebram, capacitando o cristão a transformar o mundo. Isso é o que se chama ‘catequese mistagógica’.

Portanto, quando falamos da figura do mistagogo imbuído de mística eclesial, queremos ressaltar o valor da comunidade que recebe os adultos e os estimula para que no futuro possam mistagogicamente, e em comunidade, ajudar as outras pessoas nesse itinerário de gerar adultos maduros na fé.

2 A COMUNIDADE MISTAGÓGICA: TESTEMUNHA DA PALAVRA A comunidade à luz da Páscoa torna-se promotora e beneficiária do protagonismo dos adultos maduros e cônscios de sua caminhada de fé. Esse processo é longo e árduo, porém possível. Mistagogia é a palavra de ordem no hodierno contexto eclesial e catequético.

2.1 Ser maduros na fé e responder positivamente aos apelos de Deus na comunidade, são atitudes mistagógicas

O caminho traçado com adultos, do ponto de vista bíblico e catequético torna-se referência para toda a vida cristã. Depois de substanciosos encontros de catequese, da recepção dos sacramentos da iniciação cristã e da identidade comunitária, resta aos adultos a continuação dessas experiências 10 BUYST, Ione. O segredo dos ritos: ritualidade e sacramentalidade da liturgia cristã. São Paulo: Paulinas, 2011, p. 117. (Coleção Celebrar). 11 SÁ, Janison. A iniciação cristã no catecismo da Igreja Católica. In: FERREIRA, Antônio Luiz Catelan (Org.). Os 20 anos do Catecismo da Igreja Católica e o ano da fé, p. 516.

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ARTIGOS ARTIGOS fortalecedoras da fé. O protagonismo da graça sacramental inquieta a consciência dos adultos, chamados por Deus a fazer resplandecer o testemunho da fé professada com a vida. A função da comunidade, como mãe e guia, é ajudar seus novos filhos para que se encontrem e se realizem nas diversas pastorais existentes, para o bem da evangelização e o espírito missionário. As catequeses mistagógicas,12 que fizeram tanto bem aos adultos nos primeiros séculos do Cristianismo, são retomadas em seu espírito no catecumenato vigente, para o bem da Igreja. Como diz BUYST: “a catequese mistagógica aprofunda, faz tomar consciência e compreender melhor a experiência ritual e a participação no mistério que acontece na celebração do sacramento e na vida”.13 Ao falarmos de atitudes mistagógicas, temos presente o universo da evangelização como parte integrante do ser adulto na fé. Na catequese, o que foi abordado é transformado em boa-nova existencial. Desse modo, os neófitos apresentam à Igreja uma bonita mensagem: a pastoral de manutenção e a apatia eclesial não têm sentido na vida deles. Esse é o resultado do acompanhamento que desperta gente madura na fé: “a Igreja deve reconhecer-se sobretudo em seus fiéis adultos, principais sujeitos da missão”.14 A motivação dos adultos na fé ganha sentido quando eles se sentem confrontados pela Palavra de Deus, mais precisamente no ciclo litúrgico da Igreja, em que se intensificam os estágios primários de fé: a escuta atenta com os “ouvidos do coração” do que Deus pede a eles e o compromisso profético na comunidade. Esses são elementos indispensáveis. Constituem-se atitudes mistagógicas permanentes. Uma tal catequese ligada a cada tempo forte do ciclo litúrgico anual permitiria que os cristãos revisitassem o essencial do mistério da fé pascal e aprofundassem nele, sem perder o seu sabor! Preserva-se também a organicidade e a integridade da revelação sem esgotar o mistério [...], essa catequese mistagógica cíclica permitiria desdobramentos diferentes, da mais implícita à mais explícita, segundo as idades e os estágios de maturidade.15

A liturgia é excelente campo mistagógico. Conhecendo mais a Palavra de Deus, poderemos amá-lO. A Igreja está mais empenhada16 em fazer com que nossos adultos continuem a catequese permanente, isso é mistagogia, ou seja, os adultos na fé façam história na comunidade: “Assim, essas novas práticas catequéticas, que se buscam, são os lugares teológicos que esperam sua inteligência na fé cristã”17 “Para posterior aprofundamento sobre o catecumenato e as catequeses mistagógicas, orientamos o leitor para os seguintes livros que são verdadeiras preciosidades catequéticas: JERUSALÉM, São Cirilo de. Catequeses pré-bastimais. Trad. Frei Frederico Vier e Frei Fernando A. Figueiredo. Petrópolis, RJ: Vozes. 1978. (Essa obra é do século IV; composta por 18 catequeses batismais, feitas para exposição durante a Quaresma em preparação para o batismo e as cinco catequeses mistagógicas dirigidas aos neobatizados); AMBRÓSIO, Santo. Os sacramentos e os mistérios: Iniciação cristã nos primórdios. Trad. Dom Paulo Evaristo Arns. Petrópolis: Vozes. 1972. (Tem como finalidade orientar os que se preparam para receber os sacramentos da iniciação cristã. Faz uma bela explicação acerca do Pai-nosso, para os catecúmenos); AGOSTINHO, Santo. A instrução dos catecúmenos: teoria e prática. Trad. Maria da Glória Novak. Petrópolis, RJ: Vozes. 1973. (Depois de um pedido o diácono de Cartago, Deogratias, sobre como deveria proceder na instrução dos que pediam para se tornarem cristãos. Agostinho fez um manual de catequese. O valor desse escrito é inestimável, podemos dizer sem exageros)”. ALVES, Gilberto Siqueira. A Pedagogia da Iniciação Cristã com Adultos. Teresina: Nova Aliança, 2011, p. 36. 13 BUYST, Ione. O segredo dos ritos, p. 126. 14 ALBERICH, Emílio; BINZ, Ambroise. Catequese com adultos, p. 75. 15 VILLEPELET, Denis. O futuro da catequese. São Paulo: Paulinas, 2007, p. 138. (Coleção Pedagogia da Fé). 16 Em tempos recentes, a Igreja tem-se notabilizado catequética e pastoralmente quanto à questão da iniciação à vida cristã dos adultos: Primeira semana brasileira de catequese em Itaici (SP) – 1986. Tema: “Fé e vida em comunidade: renovação da Igreja e transformação da sociedade”; Segunda semana brasileira de catequese em Itaici (SP) – 2001. Tema: “Com adultos, catequese adulta” e a Terceira semana brasileira de catequese em Itaici (SP) – 2009. Tema: “Iniciação à Vida Cristã”. 17 VILLEPELET, Denis. O futuro da catequese, p. 138.

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ARTIGOS ARTIGOS 2.2 Desafios propriamente mistagógicos Na atual conjuntura eclesial é consenso que todos nós devamos acreditar e nos empenhar nesse projeto da iniciação à vida cristã. Da eficiência desse itinerário catequético, teremos uma Igreja mais consciente de sua missão, promotora de adultos empenhados na mistagogia permanente, adultos imbuídos de embasamento bíblico, maturidade na fé e pertencentes a uma comunidade que é “útero” de experiências transformadoras de vida e pulsar da esperança. A realidade contemporânea impõenos uma conversão pastoral!18 “É também notória a busca intensa da Igreja à procura de responder à necessidade e ao anseio por um melhor e mais qualificado conhecimento para atuar de maneira eficaz na evangelização” (SÁ, 2013, p. 516). Em benefício disso, a eleição do papa Francisco tem dado novo ardor a nossas comunidades. Isso deve ser refletido na catequese de adultos. Cremos que o sacerdócio ministerial e o povo sacerdotal não são ilhas. Na Diocese, o primeiro a promover e apoiar o catecumenato deve ser o bispo diocesano. Na Paróquia, cabe ao pároco tomar a iniciativa. Nossos leigos e catequistas têm o direito de ser estimulados pelas figuras eclesiásticas na condução de metas catequéticas consistentes. Não bastam documentos produzidos em gabinetes fechados e sem o “cheiro” da pastoral. Lá no cotidiano das pessoas, “a caminhada pastoral da Igreja possibilita saber, de maneira mais clara e pragmática, o que o povo está sentindo, suas motivações, necessidades, esperanças e reclames”.19 Muito menos “escutar” meia dúzia de pessoas para estabelecer “resultados” numéricos. O projeto da iniciação à vida cristã é mais profundo e complexo. Conforta saber! A CNBB contemplou, em suas Diretrizes Gerais da Ação Evangelizadora da Igreja no Brasil (2015-2019), o item Igreja: casa da iniciação à vida cristã. Não dá mais para passar despercebida essa realidade. Precisamos apostar nesse projeto. Muitos ainda desconhecem o uso do Ritual da Iniciação Cristã de Adultos (RICA). Os catequistas querem conhecer esse precioso Ritual, porém a formação deve ser constante. Trata-se de um livro litúrgico, aberto para adaptações segundo a realidade pastoral. Os tempos e as etapas foram elaborados para facilitar sua concretização. O RICA chama atenção para a prática desse processo renovador de evangelização, conversão, catequese, recebimento dos sacramentos pascais da iniciação cristã e a concretude dos valores cristãos solidificados pela mistagogia permanente do cristão. A dimensão litúrgica fica a desejar. As celebrações com sua riqueza de símbolos, gestos e ritos precisam de visibilidade e interação. Na realidade, falta a justa posição entre catequese, pastoral e liturgia. Cada qual é chamado a celebrar no respeito do que é específico e a evitar os exageros. O rubricismo asfixia a espontaneidade do mistério celebrado. Na prática pastoral, há um indisfarçável abismo entre catequese e liturgia. Para levar a sério o caminho mistagógico apontado pelo RICA, teremos que levar em conta esta realidade e construir as necessárias pontes entre estas duas áreas da pastoral.20

É fundamental deixar bem claro: o catecumenato não termina com a recepção dos sacramentos. A mistagogia resguarda a lembrança em comunidade da missão permanente dos cristãos. Chega Os bispos, na 51.ª Assembleia da CNBB em Aparecida de 10 a 19 de abril de 2013, produziram um texto de estudos: Comunidade de comunidades: uma nova paróquia. Sobretudo nos números 171-235 discorre-se em que consiste a “conversão pastoral” (Estudos da CNBB 104). 19 ALVES, Gilberto Siqueira. A Pedagogia da Iniciação Cristã com Adultos. Teresina: Nova Aliança, 2011, p. 115. 20 BUYST, Ione. O segredo dos ritos, p. 130. 18

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ARTIGOS ARTIGOS de pragmatismo sacramental ou coisa do gênero! Não podemos reproduzir cristãos artificiais. Para tanto, a realidade requer planejamento e articulação das pastorais, além de promoções de reuniões em conjunto das equipes dos sacramentos da iniciação cristã. A unidade do calendário catequético da Paróquia até o acompanhamento e inserção desses adultos nos serviços da Igreja é responsabilidade de todos os que estão à frente do catecumenato: O catecumenato não prepara para os sacramentos, mas para a vida cristã; portanto, não estão vivenciando a última etapa, mas o início da inserção mais plena na vida da comunidade eclesial, principalmente pelo engajamento nos seus diversos serviços.21

A animação bíblica da pastoral deve ser uma constante no catecumenato. É, por partilhar o amor de Cristo, que nós, discípulos do Senhor, seremos capazes de conduzir os adultos à experiência do chamado e à participação na comunidade; “a catequese precisa propiciar uma verdadeira experiência de Deus, encarnada em Jesus de Nazaré. E tendo os mesmos sentimentos de Jesus que Ele se revela a nós” (RIXEN, 2010, p. 283). O Catecumenato inspira-se também mistagogicamente nas fontes inesgotáveis da sabedoria e simplicidade das Comunidades Eclesiais de Base. São Comunidades orantes embasadas na Vida e na Palavra de Deus. O método indutivo é uma das marcas registradas. Essa diaconia bonita de caridade e serviço chama atenção ao concretizar a experiência da fé com a realidade tal como se apresenta, visando à transformação dos adultos em agentes de fé e promotores de vida digna em todos os níveis e sem acepção de pessoas. Os moradores de rua formam uma vergonhosa chaga social e cristã. Inquieta a práxis catecumenal. Somos missionários(as) da vida, em primeiro lugar. Esses nossos(as) irmãos(ãs) que residem nas ruas não deveriam ser dependentes de ações paliativas. Nessa realidade, torna-se necessária a catequese existencial e, com base no mundo deles, lançar pistas de melhoramentos como seres humanos. É bem verdade que essa ação questiona indelevelmente a práxis catequética. A educação na Leitura Orante da Bíblia. O sentido mistagógico da fé é continuado na aplicação orante da Palavra de Deus na vida dos adultos. Essa apropriação do rezar por meio da Revelação de Deus, nas Sagradas Escrituras, faz deles discípulos missionários do Senhor em mistagogia que perpassa toda a vida. “E trata-se de, com este ‘estudo com a vida’, estimular iniciativas de solidariedade no meio do povo, e, particularmente, propor um novo modelo de sociedade segundo os valores do Reino”.22

2.3 Abraçar a proposta mistagógica é multiplicar experiências de vida e salvação Queremos comunidades de portas abertas para acolher os jovens, adultos e fazê-los sentir a dimensão evangelizadora na vida deles. A mistagogia permanente, como processo de continuação na vida de fé, possibilitará experiências fortes da graça de Deus. A humildade da Igreja em escutar o que desejam nossos jovens vai motivar outras pessoas que passaram pela catequese, e elas serão inclusas nos ministérios. Cada qual segundo seu tempo de internalização da experiência de fé. Os momentos fortes de convivência dos neófitos (recém-iniciados na fé ou batizados) com a comunidade dependerão da criatividade da comunidade. 21 22

NENTWIG, Roberto. Iniciação à comunidade Cristã, p. 130. NERY, Irmão. Catequese com adultos e catecumenato: história e proposta. São Paulo: Paulus, 2001, p. 147. São Paulo,São anoPaulo, 40, n.ano 149,39,p. n. 78-88, 148, jan./jun. jul./dez. 2017. 2016.

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ARTIGOS ARTIGOS A título de inspiração vejamos alguns desses possíveis eventos: 1. Reuniões mistagógicas (depois das missas ou em outros momentos oportunos): o pároco, a equipe do catecumenato, coordenadores de pastoral estejam presentes nas reuniões mistagógicas, para partilhar o evangelho do dia, discorrer sobre a importância dos ministérios na comunidade, a função da Igreja no mundo e a missão do cristão; 2. permanente contato com os iniciados: cartões, mensagens pela internet ou celular, sobre como é bom tê-los na comunidade. É uma maneira de não causar dispersão súbita dos adultos. Nos momentos festivos da comunidade, é de bom tom convidá-los a fazer parte ativamente desses eventos; 3. continuidade da formação de fé: pode ser instituída uma equipe para cuidar de encontrar-se com esses adultos permanentemente. É chegar às famílias e criar laços de fé, convidá-las ao engajamento segundo sua realidade; 4. acolhimento do conselho paroquial: a autoestima dos adultos será revigorada. É forma de evitar o isolamento do grupo catecumenal. As pessoas foram formadas pela comunidade. Jamais deverão formar guetos, sem conotação pastoral e comunitária! Tomarão consciência dos frutos das pastorais na prática: “fundamental que os neófitos sejam lembrados de que o primeiro modo de servir é dando testemunho”;23 5. engajamento dos neófitos: formar pequenos grupos catecumenais antenados com as propostas da assembleia paroquial e fazer fluir testemunho nas pastorais. A comunidade é chamada a oferecer uma proposta continuada de formação.24 Fazer a iniciação à vida cristã e obter bom êxito dá-se pela prática. Não existem fórmulas mágicas. Ser criativo e acreditar no Cristo, autor e ápice da missão, é “teste” de fé cotidiana. Não conseguiremos sozinhos! Envolver as pastorais, formar permanentemente e lançar-se nesse projeto para dinamizar a comunidade é urgente! A evolução do mundo exige da Igreja posturas que respondam bem à sede por Deus. Formar e acompanhar de maneira próxima os cristãos exige da Igreja maior mobilização e abertura pastoral. Nesse sentido, o catecumenato possibilita que a Igreja possa avançar pelo simples fato de a obrigação ser continuadora da missão de Cristo na terra. É verdade que nem sempre a estrutura institucional permite fluir o dinamismo catecumenal com desenvoltura. Mas é possível!

CONSIDERAÇÕES FINAIS Cremos ser urgente a práxis mistagógica em toda a Igreja. O Ritual da Iniciação Cristã de Adultos é instrumento ritual que carece de adaptação que contemple satisfatoriamente as questões pastoral, litúrgica e catequética. Cada leigo, ao assumir seu ministério na comunidade, é chamado à mistagogia permanente. Nesse resgate, faremos de nossa Igreja instrumento dinâmico e profético para ser luz e sal, no mundo que apresenta tantas pseudoculturas de morte, que escraviza

NENTWIG, Roberto. Iniciação à comunidade Cristã, p. 132. Cf. Excelentes sugestões para comunidades que querem estimular os neófitos na práxis pastoral e catequética: NENTWIG, Roberto. Iniciação à comunidade cristã, p. 129-133. 23 24

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ARTIGOS ARTIGOS pessoas e instituições segundo a lógica do utilitarismo. Isso mina e rejeita a espiritualidade e o sentido catequético-comunitário. A Igreja busca incutir valores permanentes nos cristãos e pessoas de boa vontade. Para tanto, com os agentes da catequese, queremos catequizados comprometidos com sua comunidade e protagonistas de testemunhos substanciais. A Evangelii Gaudium (n. 166) registra: O encontro catequético é um anúncio da Palavra e está centrado nela, mas precisa sempre de uma ambientação adequada e de uma motivação atraente, do uso de símbolos eloquentes, da sua inserção num amplo processo de crescimento e da integração de todas as dimensões da pessoa num caminho comunitário de escuta e resposta.

Acreditamos na Igreja animada pela força transformadora da catequese. É bem verdade que isso leva um tempo significativo para acontecer! Porém a Palavra (Cristo) que assumiu a nossa história, aponta-nos pistas mistagógicas de esperança, que farão toda a diferença na realidade do protagonismo evangelizador numa determinada comunidade de fé.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ALVES, Gilberto Siqueira. A Pedagogia da Iniciação Cristã com Adultos. Teresina: Nova Aliança, 2011. ALBERICH, Emílio; BINZ, Ambroise. Catequese com adultos: elementos de metodologia. 2. ed. São Paulo: Salesiana, 2001. ______. Formas e modelos de catequese com adultos: panorama internacional. São Paulo: Salesiana, 2001. BENTO XVI. Exortação Apostólica Pós-sinodal Verbum Domini. São Paulo: Paulinas, 2010. BIBLIA DO PEREGRINO. 3. ed. São Paulo: Paulus, 2011. BUYST, Ione. O segredo dos ritos: ritualidade e sacramentalidade da liturgia cristã. São Paulo: Paulinas, 2011. (Coleção Celebrar) CONSELHO EPISCOPAL LATINO AMERICANO. Documento de Aparecida: texto conclusivo da V Conferência Geral do Episcopado Latino-Americano e do Caribe-13-31 de maio de 2007. Paulinas, 2007. CONGREGAÇÃO PARA O CLERO. Diretório Geral para a Catequese. São Paulo: Paulinas, 1998. CNBB. Diretório Nacional de Catequese. 6. ed. São Paulo: Paulinas, 2008. (Documentos da CNBB 84). ______. Diretrizes Gerais da Ação Evangelizadora da Igreja no Brasil 2015-2019. Brasília: CNBB, 2015. (Documentos da CNBB 102). ______. Iniciação à vida cristã: um processo de inspiração catecumenal. São Paulo: Paulus, 2009. (Estudos da CNBB 97). ______. Comunidade de comunidades: uma nova paróquia. São Paulo: Paulus, 2013. (Estudos da CNBB 104). FRANCISCO, Papa. Exortação Apostólica Evangelii Gaudium. São Paulo: Paulinas, 2014. NERY, Irmão. Catequese com adultos e catecumenato: história e proposta. São Paulo: Paulus, 2001. NENTWIG, Roberto. Iniciação à comunidade Cristã. São Paulo: Paulinas, 2013. (Coleção Catequética). RITUAL DA INICIAÇÃO CRISTÃ DE ADULTOS. 4. ed. São Paulo: Paulus, 2007. São Paulo,São anoPaulo, 40, n.ano 149,39,p. n. 78-88, 148, jan./jun. jul./dez. 2017. 2016.

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ARTIGOS ARTIGOS RIXEN. Dom Eugène Lambert Adrian. Homilia de Dom Eugène Lambert Adrian Rixen 11.10.2009. In: CNBB. Iniciação à Vida Cristã. Brasília: CNBB, 2010. SÁ, Janison. A iniciação cristã no catecismo da Igreja Católica. In: FERREIRA, Antônio Luiz Catelan (Org.). Os 20 anos do Catecismo da Igreja Católica e o ano da fé. Brasília: CNBB, 2013. VILLEPELET, Denis. O futuro da catequese. São Paulo: Paulinas, 2007. (Coleção Pedagogia da Fé).

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ARTIGOS ARTIGOS MISERICÓRDIA, DIREITO E JUSTIÇA MERCY, LAW AND JUSTICE

Rogério Augusto das Neves* RESUMO: O presente artigo inicia-se com uma breve abordagem sobre as acepções da palavra Direito, mostrando qual a noção do que se pretende evidenciar. Em seguida, introduz-se o tema da misericórdia para mostrar algumas razões do aparente antagonismo das noções, buscando mostrar a linha de complementariedade e, ao mesmo tempo, de superação da justiça pela misericórdia, para estabelecer a justiça retributiva como o passo inicial para se chegar à conversão pela misericórdia. Por fim, o artigo apresenta os instrumentos jurídicos que devem favorecer a misericórdia. Partindo do conceito genérico de “equidade”, já consagrado no Direito Romano como conceito necessário para superar as imperfeições da aplicação da lei na busca da justiça, chega ao conceito de “equidade canônica”. Por ela se estabelece o instrumento maior para perseguir o escopo final da lei eclesiástica: a salvação das almas. Palavras-chave: Misericórdia. Justiça. Direito. Equidade Canônica. Salvação das almas. ABSTRACT: This article begins with a brief explanation of the various meanings of the word Law, thereby giving evidence of what is intended by the notion. Next, the theme of mercy is introduced and an effort is made to explain some of the reasons for the apparent antagonism that exists between these two notions. The article then seeks to illustrate lines of complementarity and, at the same time, to explain how mercy surmounts justice. It then goes on to explain how retributive justice serves as an initial step in the process of arriving at an experience of conversion by mercy. Finally, the article describes the diverse legal means that should work in favor of mercy. Starting from the generic concept of “equity,” already enshrined in Roman law as a concept that is needed in order to overcome the imperfections of law enforcement in the pursuit of justice, it arrives at the concept of “canonical equity.” In doing so, it confirms the greater means that is needed to pursue the ultimate scope of ecclesiastical law: the salvation of the souls. Keywords: Mercy. Justice. Right. Canonical Equity. Salvation of souls.

INTRODUÇÃO Antes de tudo, a abordagem do tríplice tema traz uma apreciação já importante: em primeiro lugar, a ideia de não se identificar o Direito e a Justiça oferece uma distinção entre algo que transcende o ser humano ao lado de uma ordem estabelecida como fenômeno social, portanto humana. É verdade que também o Direito apresenta um possível discurso metafísico, mas isso já seria enveredar pela filosofia do Direito mais do que se tratar das consequências propriamente jurídicas. Em segundo lugar, Presbítero da diocese de São José dos Campos; Doutor em Direito Canônico pela Universidade Lateranense de Roma; Professor de Direito Canônico no curso de Teologia do UNISAL, Campus Pio XI, da Faculdade São Bento e da Faculdade Católica de São José dos Campos.

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ARTIGOS ARTIGOS a apreciação da misericórdia, mais do que como virtude humana, como atributo divino que se deve imitar, posta ao lado da Justiça ou do Direito, supostamente constituiria uma dicotomia com eles, o que é o objeto propriamente dito dessa explanação, desejando estabelecer que tal argumento é falso. Isto é, a misericórdia não é contrária à Justiça e ao Direito; portanto misericórdia e direito complementamse e aperfeiçoam-se.

1 O que é o Direito? No estudo da palavra “direito” vemos que sua origem está no vocábulo do latim: directum ou rectum, que significa “reto” ou “aquilo que é conforme uma régua”. Essa concepção somou-se à noção positivista, uma vez que, em suas diversas acepções, consolidou-se o “pressuposto de uma regra a determinar o que é ‘certo’ e uma autoridade ou chefe a impô-la”.

1.1 Diversidade de significados da palavra “Direito” A palavra direito encontra, pois, uma pluralidade de significações que refletem diferentes realidades; embora não se limite ao significado vinculado a sua origem latina, carrega sempre consigo o pressuposto de ser uma regra a determinar o que é certo. Assim, o vocábulo direito pode significar1: a) norma - quando, por exemplo, diz-se que “o direito proíbe uma conduta”. Esse é o sentido mais comum que se dá à palavra direito. Inúmeras definições correntes referem-se à acepção do direito como lei, ou como um conjunto de normas, como as referências positivistas mais comuns. É com esse significado que Vicente Ráo conceitua o direito como um sistema de normas. É o direito um sistema de disciplina social fundado na natureza humana que, estabelecendo nas relações entre os homens uma proporção de reciprocidade nos poderes e deveres que lhes atribui, regula as condições existenciais dos indivíduos e dos grupos sociais e, em consequência, da sociedade, mediante normas coercitivamente impostas pelo poder público. Mas essa concepção é imprecisa, pois é incapaz de dar conta de toda a complexidade do fenômeno jurídico, reduzindo-o à mera legalidade; b) faculdade - quando, numa expressão, diz-se que “o cidadão tem o direito de propor uma ação”. Esse é o mesmo sentido dado por Ihering quando propõe que direito “é o interesse protegido pela lei”. Essa acepção é, pois, uma ideia de direito subjetivo, já que reflete um poder, uma faculdade reconhecida ao sujeito; c) justiça - na hipótese, por exemplo, de que “a educação é um direito de todos”. Na acepção de direito, como justo, há duas possibilidades de interpretação: direito pode ser entendido como “devido por justiça”, como o significado da palavra direito na Declaração Universal dos Direitos do Homem, e, ainda, pode ser entendido como “conforme a justiça”; d) ciência - quando nos referimos, por exemplo, ao fato de que “cabe ao Direito Penal estudar a 1

Cf. MONTORO, André Franco. Introdução à ciência do direito. São Paulo: Livraria Martins, 1972, p. 29-59. 90

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ARTIGOS ARTIGOS criminalidade”. É muito comum, também, empregar-se a palavra direito com o sentido de “ciência do direito”. Na definição de Celso:2 “direito é a arte do bom e do justo”. Importante ressaltar-se que a ideia de direito como “ciência” não é, por um lado, pacífica, diante das críticas e ponderações de outras ciências, como as da Sociologia e que, por outro, ainda que considerado ciência, deve-se ficar atento, então, ao modelo de ciência do direito no sentido dado por Kelsen:3 nem tudo o que se faz no mundo jurídico necessariamente é ciência; e) fato social - quando consideramos que “o direito é um fenômeno da sociedade”. Esse é o sentido dado, principalmente, pelos sociólogos que entendem o direito como um setor da vida social. Nessa acepção, não se refere exclusivamente ao direito como um fenômeno estatal, ou seja, ao direito como norma, direito instituído, mas como um fenômeno de poder que se pode dar em várias esferas, não somente na do que já está instituído, mas também na esfera do instituinte.4

1.2 Uma noção mais prática e simples sobre o Direito De nossa parte, preferimos partir de uma noção mais geral e prática do Direito. Tendo como ponto de partida o aforisma dos romanos: “Ubi societas ibi ius” (Onde está a sociedade aí está o Direito) pensamos no Direito como um fenômeno humano da regulação das relações humanas. Onde houver dois seres humanos convivendo (sociedade) necessariamente haverá uma ordem jurídica entre eles para regular as duas liberdades. A fonte pode ser a autoridade de um ou mesmo o consenso de ambos, mas haverá alguma normativa entre eles. Pensando em sociedade como um agrupamento bem mais numeroso, teríamos o estabelecimento das leis. É isso que nos permite pensar que seja muito natural que a Igreja também tenha o seu Direito e as suas leis; ela é também uma sociedade humana, embora não se restrinja a ser apenas isso. A lei, do modo como a compreendemos, é apenas uma expressão do Direito. É clássica a definição de São Tomás de Aquino: ‘’Lei é uma ordenação da razão para o bem comum, promulgada por aquele que tem o cuidado da comunidade”. Nas palavras do jesuíta Francisco Suárez,5 a lei é um ‘’preceito justo, comum e estável, suficientemente promulgado”. Tanto numa definição quanto na outra, é essencial o elemento da “promulgação”. Esta consiste no ato formal mediante o qual a autoridade competente manifesta sua vontade de obrigar. Pode ou não coincidir com a publicação escrita do texto legal.6 Poderíamos dizer que existe um elemento humano que torne lei um preceito. Pode ser a autoridade de alguém revestido ou mesmo o consenso dos que se comprometem a obedecer ao que foi acertado. Assim, entendemos que a lei é um dos instrumentos do ordenamento jurídico - o direito – que, por sua vez, não se identifica com a justiça, mas a tem como seu fim.

Publius Iuventius Celsus Titus Aufidius Hoenius Severianus, mais conhecido como Juvêncio Celso (67-130), jurisconsulto romano e cônsul nos tempos do imperador Adriano. Foi escritor e desenvolveu seus pensamentos jurídicos, os quais plasmou em vários livros do Digesto. 3 Hans Kelsen (1881-1973) foi um jurista e filósofo austríaco, considerado um dos mais importantes e influentes estudiosos do Direito; teve como sua principal obra Teoria pura do Direito. 4 Cf. MARTINS, Daniele Comin. O conceito de Direito. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/20549/o-conceito-de-direito. Acesso em 12 dez. 2011. 5 Francisco Suárez (1548-1617), foi um jesuíta espanhol, filósofo, jurista e pensador dos séculos XVI e XVII, destacando-se como uma das principais figuras do jusnaturalismo e do Direito Internacional da Idade Moderna. 6 Cf. HORTAL, Jesus. Comentário ao cânon 7. In: JOÃO PAULO II. Código de Direito Canônico. Loyola: São Paulo, 2007, p. 29. 2

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ARTIGOS ARTIGOS 2 A Justiça e a misericórdia divina No marco da concepção metafísica de Deus, os manuais de Teologia sempre abordaram o tema da misericórdia ligado à questão da justiça divina; mais concretamente, da justiça tal como era entendida na filosofia antiga, a saber, como o procedimento que dá a cada qual o que é seu (suum cuique)7. Dela faziam parte a justiça legal (iustitia legalis), a justiça distributiva (iustitia distributiva) e a justiça retributiva (iustitia vindicativa). Em virtude da sua justiça retributiva, Deus recompensa os bons e castiga os maus. O que, por seu turno, não podia senão levar a formular a pergunta de como é possível harmonizar a misericórdia divina e a justiça retributiva. Como pode a justiça de Deus ser compatível com a circunstância de Ele ser misericordioso e não castigar os pecadores? A resposta era: Deus é misericordioso com os pecadores arrependidos e desejosos de se converter, mas castiga aqueles que não se arrependem das suas más ações e não se convertem. Essa resposta torna evidente que, quando se reconhece a justiça retributiva e a justiça punitiva como ponto de vista superior ao qual a misericórdia fica sujeita, passa-se a considerar a misericórdia, por assim dizer, como algo subordinado à justiça retributiva e à justiça punitiva. A misericórdia deve ser entendida como a própria justiça de Deus, como a Sua santidade. Só desse modo poderemos fazer com que resplandeça de novo a imagem do Pai bondoso e compassivo que Jesus anunciou.8 O Papa Francisco, autor do Ano da Misericórdia, faz questão de mostrar que justiça e misericórdia não são opostos: A Sagrada Escritura apresenta-nos Deus como misericórdia infinita, mas também como justiça perfeita. (...) Poderia parecer que são duas realidades que se contradizem; na verdade não é assim, porque é precisamente a misericórdia de Deus que leva ao cumprimento da justiça autêntica.9 (...) A misericórdia não é contrária à justiça, mas exprime o comportamento de Deus para com o pecador, oferecendo-lhe uma nova possibilidade de se arrepender, converter e acreditar.10

Na verdade, a misericórdia é um atributo de Deus em razão do qual perdoa os homens. É um grau excelso de justiça que tem em conta a situação do fiel cristão, com sua natureza humana pecadora e para quem a Igreja busca a salvação. A misericórdia tempera a justiça. Não a destrói; pelo contrário, é sua plenitude e perfeição. São Tiago afirma que a misericórdia triunfa sobre o juízo (Tg 2,13).11

O jurisconsulto Ulpiano entendia Justiça como Justitia est constans et perpetua voluntas jus suum cuique tribuendi (Justiça é a constante e firme vontade de dar a cada um o que é seu), noção inserta no Corpus Juris Civilis. Assim, inicialmente, Justiça seria dar a cada um o que é seu; é o que deve ser atribuído a cada um. 8 Cf. KASPER, Walter. A misericórdia: condição fundamental do Evangelho e chave da vida cristã. São Paulo: Loyola, 2015, p. 25-26. 9 FRANCISCO. Audiência geral: de 03 de fevereiro de 2016. Disponível em: http://w2.vatican.va/ content/francesco/pt/ audiences/2016/documents/papa-rancesco_2016020 3_udienza-generale.html. Acesso em 20 dez. 2016. 10 Id. Bula de proclamação do jubileu extraordinário da misericórdia, Misericordiae Vultus. Disponível em: http://w2.vatican.va/ content/francesco/pt/bulls/docu ments/papa-francesco_bolla_20150411_misericordiae-vultus.html. Acesso em 20 jun. 2016. 11 Cf. DE BOGGIANO, Ana Lía Beçaitz. Verbete Misericórdia In: SEDANO, Joaquín; VIANA, Antonio; OTADUY, Javier (coord.) Diccionario General de Derecho Canónico. Vol. V. Navarra: Aranzadi, 2012, p. 414-417. 7

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ARTIGOS ARTIGOS A Misericórdia não se opõe, mas aperfeiçoa a justiça, constitui um passo a mais. E quem não vai além da justiça humana não chega a conhecer a verdadeira justiça. Na ação misericordiosa de Deus, está a sua própria perfeição. Diz o Papa Francisco: Se Deus Se detivesse na justiça, deixaria de ser Deus; seria como todos os homens que clamam pelo respeito da lei. A justiça por si só não é suficiente, e a experiência mostra que, limitando-se a apelar para ela, corre-se o risco de a destruir. Por isso Deus, com a misericórdia e o perdão, passa além da justiça. Isto não significa desvalorizar a justiça ou torná-la supérflua. Antes pelo contrário! Quem erra deve descontar a pena; só que isto não é o fim, mas o início da conversão, porque se experimenta a ternura do perdão. Deus não rejeita a justiça. Ele engloba-a e supera-a num evento superior onde se experimenta o amor, que está na base duma verdadeira justiça”.12 “Se pensarmos na administração legal da justiça, vemos que quem se considera vítima de um abuso, dirige-se ao juiz no tribunal e pede que seja feita justiça. Trata-se de uma justiça retributiva, que inflige uma pena ao culpado, segundo o princípio que a cada um deve ser dado o que lhe é devido. (...) Contudo, este caminho não leva à verdadeira justiça porque na realidade não vence o mal, simplesmente limita-o. Mas é só respondendo com o bem que o mal pode ser deveras vencido.13

A Bíblia apresenta como via mestra um outro modo de fazer justiça, um procedimento que evita o recurso ao tribunal e prevê que a vítima se dirija diretamente ao culpado para o exortar à conversão, ajudando-o a compreender que está praticando o mal, fazendo apelo à sua consciência. Desse modo, vendo e reconhecendo o próprio erro, ele pode abrir-se ao perdão que a parte lesada lhe está oferecendo. É um caminho difícil. Requer que o ofendido esteja pronto a perdoar e deseje a salvação e o bem de quem o ofendeu. Mas só assim a justiça pode triunfar, porque, se o culpado reconhecer o mal praticado e deixar de o fazer, eis que o mal já não existe, e aquele que era injusto torna-se justo, porque foi perdoado e ajudado a reencontrar a via do bem.14

3 Os instrumentos que tornam possível a misericórdia divina no Direito Canônico

3.1 A Equidade Canônica A assim chamada normatologia legislativa do Código de Direito Canônico, no cânon que trata sobre a maneira de se decidir quando existe uma lacuna na legislação eclesiástica, aponta para um importante conceito que ajuda a não absolutizar o Direito diante da intenção de verdadeiramente vencer o mal: a equidade canônica. Se a respeito de uma determinada matéria falta uma prescrição expressa da lei, universal ou particular, ou um costume, a causa, a não ser que seja penal, deve ser dirimida

FRANCISCO. Bula de proclamação do jubileu extraordinário da misericórdia, Misericordiae Vultus. Disponível em: http:// w2.vatican.va/content/francesco/pt/bulls/docu ments/papa-francesco_bolla_20150411_ misericordiae-vultus.html. Acesso em 20 jun. 2016. 13 Id. Audiência geral: de 03 de fevereiro de 2016. Disponível em: http://w2.vatican.va/ content/francesco/pt/audiences/2016/ documents/papa-rancesco_2016020 3_udienza-generale.html. Acesso em 20 dez. 2016. 14 Ibid. 12

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ARTIGOS ARTIGOS levando-se em conta as leis dadas em casos semelhantes, os princípios gerais do direito aplicados com equidade canônica, a jurisprudência e a praxe da Cúria Romana, a opinião comum e constante dos doutores.15

O vocábulo equidade não é invenção do legislador canônico. Em Ética a Nicômaco, Aristóteles, sobre equidade, disse que é “uma correção da lei quando ela é deficiente em razão da sua universalidade” (apud Paulo Nader). O filósofo da Grécia antiga comparou a equidade à régua de Lesbos, feita de chumbo que se moldava a qualquer superfície: Por isso o equitativo é justo, superior a uma espécie de justiça — não justiça absoluta, mas ao erro proveniente do caráter absoluto da disposição legal. E essa é a natureza do equitativo: uma correção da lei quando ela é deficiente em razão da sua universalidade. E, mesmo, é esse o motivo por que nem todas as coisas são determinadas pela lei: em torno de algumas é impossível legislar, de modo que se faz necessário um decreto. Com efeito, quando a coisa é indefinida, a regra também é indefinida, como a régua de chumbo usada para ajustar as molduras lésbicas: a régua adapta-se à forma da pedra e não é rígida, exatamente como o decreto se adapta aos fatos.16

As leis são regras de caráter geral e abstrato que pretendem abarcar todos os casos possíveis submetendo-os a suas disposições. Entretanto essa circunstância prevista na teoria não se realiza na prática. Sempre existe um resquício que permite que um caso não se adapte plenamente à norma tal como foi dita. Pode acontecer que, em razão da particularidade da questão, a aplicação estrita da lei conduza a uma tremenda injustiça. Daí o aforismo: summum ius, summa iniura (“o máximo do direito, o máximo da injustiça”). A norma torna-se injusta no caso concreto. Para consertar essa iniquidade, recorre-se à interpretação da lei. Ela estende-se até onde medeie a razão idêntica mesmo quando não esteja expressamente escrito no texto da lei. A mens legis (o que o legislador quis) é o ponto de partida da interpretação da lei que permite superar seus termos e a ratio legis (a finalidade perseguida pela lei) serve para precisá-los mesmo quando não surjam expressamente de sua redação. A equidade preenche o vazio legal que não pode ter em conta as situações particulares que reclamam um tratamento distinto. O equitativo, mesmo justo, não o é por sua conformidade ao texto escrito da lei. A equidade é um corretivo da justiça legal: é sua prudente correção no caso concreto, mediante a interpretação da norma. A equidade permite ter em conta as circunstâncias singulares que rodeiam o caso e que a norma, dada para reger as situações como geralmente ocorrem, não previu. No sentido derivado, a equidade é a interpretação de uma lei feita pelos magistrados ou pelas autoridades superiores, tendo em vista um princípio superior de justiça.17 No sentido do cânon 19, como também do cânon 1752, a “equidade” é o espírito de benignidade que deve informar tanto o legislador na elaboração da lei, quanto o governante na sua aplicação. Não é concebível que um bom governante pretenda aplicar sempre automaticamente a norma legal.18 Isso porque o Direito, aplicado no mais alto rigor da lei, pode constituir-se na maior injustiça (summum JOÃO PAULO II. Codex Iuris Canonici, cânon 19. Disponível em: http://www.vatican.va/archive/cod-iuris-canonici/portuguese/ codex-iuris-canonici_po.pdf. Acesso em 21 jan. 2017. 16 Cf. ARISTÓTELES. Ética a Nicômaco. Vol. II. Disponível em: http://portalgens.com.br/portal/ images/stories/pdf/aristoteles_etica_a_nicomaco_poetica.pdf. Acesso em: 12 nov. 2016. 17 Cf. DE BOGGIANO, Ana Lía Beçaitz. Verbete Equidade In: SEDANO, Joaquín; VIANA, Antonio; OTADUY, Javier (coord.) Diccionario General de Derecho Canónico. Vol III. Navarra: Aranzadi, 2012, p. 646-648. 18 Cf. HORTAL, Jesus. Comentário ao cânon 19. In: JOÃO PAULO II. Código de Direito Canônico. Loyola: São Paulo, 2007, p. 32. 15

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ARTIGOS ARTIGOS ius, summa iniura). Costumamos dizer em Direito Canônico que “A equidade canônica é a Justiça temperada com a misericórdia”. No processo de elaboração do Código de Direito Canônico de 1983, uma equipe central de consultores preparou o texto de um documento que, em outubro de 1967, por ordem do Sumo Pontífice, foi submetido ao estudo da Assembleia Geral do Sínodo dos Bispos que, quase por unanimidade, aprovou os princípios que deveriam ser observados na reforma da legislação eclesiástica conforme o Concílio Vaticano II. A respeito da equidade canônica, um dos princípios assim determinava: Para favorecer no máximo a cura pastoral das almas, no novo direito levem-se em conta, além da virtude da justiça, também a caridade, a temperança, a humanidade, a moderação. Por essas virtudes, busque-se a equidade, não somente na aplicação das leis por parte dos pastores de almas, mas também na própria legislação. Excluam-se, pois, as normas demasiadamente rígidas, e onde não haja necessidade de observar o estrito direito por causa do bem público e da disciplina eclesiástica geral, se recorra também, de preferência, a exortações e à persuasão.19

3.2 A salvação das almas Além da equidade canônica, o atual Código de Direito Canônico também traz um outro princípio, que no último cânon do Código, além de mencionar a equidade canônica, chama de Lei suprema da Igreja a salvação das almas (salute animarum, quae in Ecclesia suprema lex esse debet). O mencionado cânon assim dispõe: “Nas causas de transferência, apliquem-se as prescrições do cân. 1747, respeitando-se a equidade canônica e tendo diante dos olhos a salvação das almas que, na Igreja, deve ser sempre a lei suprema”.20 Também a esse respeito havia um dos princípios orientadores da revisão do Código que, expressamente falando da índole jurídica do novo Código, determinava a consideração à salvação das almas assim estabelecendo: Na renovação do direito, deve-se absolutamente conservar a índole jurídica do novo Código, exigida pela própria natureza social da Igreja. Cabe, pois, ao Código propor normas para que os fiéis, em sua vivência cristã, participem dos bens que, a eles oferecidos pela Igreja, os conduzam à salvação eterna. Por conseguinte, em vista dessa finalidade, o Código deve definir e proteger os direitos e obrigações de todos e cada um em relação aos outros e à sociedade eclesiástica, enquanto se refiram ao culto de Deus e à salvação das almas.21

CONSIDERAÇÕES FINAIS O Código de Direito Canônico é permeado de um espírito de benevolência, qual seja a equidade canônica e da consciência de uma condição de instrumentalidade do próprio ordenamento jurídico, tendo-se em vista que a lei suprema não é o Código, mas a finalidade perseguida por ele, a salvação das almas. JOÃO PAULO II. Código de Direito Canônico. Loyola: São Paulo, 2001, p. 16. Ibid., cânon 1752. 21 Ibid., p. 16. 19 20

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ARTIGOS ARTIGOS Muitas outras considerações poderiam ser feitas, tanto na reflexão sobre o Direito e a Justiça, quanto na identificação da Misericórdia como norteadora da atual Lei Canônica, mas o espaço disponível seria muito escasso, além do que, esperamos que os pontos tratados sirvam de provocação e reflexão. Tememos que o acento de uma determinada dimensão dos juízos possa arriscar-se a encobrir totalmente outras dimensões que não podem ser desconsideradas. Em nosso ponto de vista, Justiça e Misericórdia se abraçam, para ser muito mais do que a justiça humana é capaz de produzir, para ser Justiça Divina, aquela que odeia o pecado e ama o pecador, que veio buscar e salvar o que estava já perdido.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ARISTÓTELES. Ética a Nicômaco. Vol. II. Disponível em: http://portalgens.com.br/portal/ images/stories/pdf/ aristoteles_etica_a_nicomaco_poetica.pdf. FRANCISCO. Audiência geral: de 03 de fevereiro de 2016. Disponível em: http://w2.vatican.va/content/francesco/ pt/audiences/2016/documents/papa-rancesco_2016020 3_udienza-generale.html. ______. Bula de proclamação do jubileu extraordinário da misericórdia, Misericordiae Vultus. Disponível em: http:// w2.vatican.va/content/francesco/pt/bulls/documents/papa-francesco_bolla_20150411_misericordiae-vultus.html. JOÃO PAULO II. Codex Iuris Canonici. Disponível em: http://www.vatican.va/archive/cod-iuris-canonici/portuguese/ codex-iuris-canonici_po.pdf. Acesso em 21 jan. 2017. ______. Código de Direito Canônico. Loyola: São Paulo, 2001. KASPER, Walter. A misericórdia: condição fundamental do Evangelho e chave da vida cristã. São Paulo: Loyola, 2015. MARTINS, Daniele Comum. O conceito de Direito. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/20549/o-conceitode-direito. MONTORO, André Franco. Introdução à ciência do direito. São Paulo: Livraria Martins, 1972. SEDANO, Joaquín; VIANA, Antonio; OTADUY, Javier (coord.) Diccionario General de Derecho Canónico. Navarra: Aranzadi, 2012 (7 volumes).

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ARTIGOS ARTIGOS LIBERDADE HUMANA: POSSIBILIDADE OU VOCAÇÃO? HUMAN FREEDOM: POSSIBILITY OR VOCATION?

Antonio de Lisboa Lustosa Lopes* RESUMO: O ser humano é inteiramente marcado pela imanência e pela transcendência. Na contingência de sua vida está a finitude tanto quanto a vocação para a liberdade. Por isso é importante ter presente os desafios do mundo em que se vive para empreender esforços de atualização da própria liberdade, raiz e sentido na vida. Palavras-chave: Humanidade. Vocação. Liberdade. Transcendência. Globalização. ABSTRACT: The human being is marked by immanence and transcendence. In the contingency of life, one experiences finitude as well as human freedom. That is why it is important to keep in mind the challenges of the world in which one lives so as to undertake efforts to realize of one’s own freedom, along with the origins and meaning of one’s own life. Keywords: Humanity. Vocation. Freedom. Transcendence. Globalization.

INTRODUÇÃO A Liberdade Humana é apenas uma possibilidade, ou se trata de algo mais profundo? Esta é a questão de fundo em que se radica esta breve reflexão, tentando articular algumas reflexões ligadas à religião e educação, naquilo que concerne ao tema da liberdade e do sentido para a vida do ser humano de hoje. Na primeira parte, busca-se problematizar em termos contextuais o ser humano moderno, sobretudo a partir da questão da globalização e os seus desdobramentos ligados a problemas que ele enfrenta com o espaço, o desejo e o consumo em seu cotidiano comum. Na segunda, procura-se compreender a situação de desencantamento bem presente na vida humana, articulando concepções de liberdade, desejo, esperança e educação, para aceder a uma organização do sentido da existência nas experiências educacionais e religiosas. Finalmente, tecem-se algumas considerações que se encaminham para a confirmação de que viver é uma arte atravessada por contradições que explicitam a imperfeição peculiar à humanidade. No entanto, apesar disso, é valioso desenvolver práticas que ajudem o homem e a mulher hodiernos a compreenderem o próprio universo, apreendendo as nuances mais significativas, com o intuito de dar sustentação a um movimento de reencantamento da vida por meio da educação e da religião. Presbítero da Arquidiocese de São Paulo; mestre em Teologia Prática pela Pontifícia Faculdade de Teologia Nossa Senhora da Assunção de São Paulo e doutor em Ciências da Religião pela UMESP; professor do UNISAL; capelão do Colégio Marista Arquidiocesano de São Paulo e pároco da Paróquia São João Clímaco (SP).

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ARTIGOS ARTIGOS 1 A liberdade humana e seus cruzamentos no mundo globalizado Tematizar a liberdade implica enfrentar questões desafiadoras evidenciadas pela globalização. A produção de sentido, o próprio processo de humanização do homem nessa tarefa, a educação e a religião como mediações importantes são temas que não podem prescindir deste contexto, pois seria bem difícil, senão impossível, encontrar um homem ou uma mulher que estejam completamente isentos dos cruzamentos do mundo globalizado. Na base dessa reflexão estão elementos da crítica do sociólogo polonês ZygmuntBauman à globalização. Segundo ele, a questão da globalização é irreversível, pois trata-se de um caminho percorrido pelo mundo de forma irremediável, que “afeta a todos na mesma medida e da mesma maneira”.1Ao mesmo tempo em que ela une as pessoas, provoca também divisões no que concerne à usabilidade do espaço e do tempo.2 Existe uma implicação recíproca entre o fenômeno da globalização e da localização. A contração do tempo produz a fixação num espaço.3A fabulosa vivência do frêmito globalizante de uns constitui-se numa condenação indesejada e sofrida para outros. Dentro do universo globalizado, a compreensão do âmbito local dá-se no âmbito da “privação e degradação social”, pois “com os espaços públicos removidos para além do alcance da vida localizada, as localidades estão perdendo a capacidade de gerar e negociar sentidos e se tornam cada vez mais dependentes de ações que dão e interpretam sentidos”.4 Ou seja, os processos globalizantes são, em grandíssima parte, “progressiva segregação espacial”, “progressiva separação e exclusão”.5 Essa situação faz emergir o fato de que existe fortemente no ser humano moderno-globalizado, sobretudo naqueles que experimentam a positividade dos processos, certa ausência do auto-questionamento.6 Isso pode ser grave, pois envolve aquilo que pode produzir a própria humanidade do homem. Segundo John Gray7, é justamente a autoconsciência que diferencia radicalmente o humano doutras BAUMAN, Zygmunt. Globalização: As consequências humanas. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1999, p. 7. Ibid., p. 8 3 Boaventura de Souza Santos chama a atenção para esse problema que, segundo ele, é causado por um modo de compreender totalizador, que torna instantâneo o presente, por isso fugidio, e amplia o futuro de forma indefinida, com a concepção linear de tempo. Cf. SANTOS, Boaventura de Sousa. Para uma sociologia das ausências e uma sociologia das emergências. In: SUSIN, Luiz Carlos (Org.). Teologia para Outro Mundo Possível. São Paulo: Paulinas, 2006, p. 171. 4 BAUMAN, Zygmunt. Globalização, p. 8. 5 Ibid., p. 11. 6 Ibid., p. 11. 7 Embora a perspectiva de Gray difira da adotada nesta pesquisa, sua análise ajuda muito a compreensão do humano e sua autoconsciência. O diferencial de seu pensamento radica-se no pressuposto de que Cristianismo/Humanismo são portadores de utopias vazias de sentido, meras “crenças irracionais” em Deus e no humano. Segundo ele, se o ser humano não pode escolher o que ser ao nascer, então em que momento existe o livrearbítrio? É provável que se trate apenas de um “truque de perspectiva”, às vezes como ator e às vezes como espectador. Vivemos com a sensação de “um self imperecível”, mas o fato de interagirmos deve-se ao ser fragmentado. Então, a noção de si-mesmo é uma ilusão e esta é a naturalidade da vida. Pensar que a verdade é um conceito fixo é pura ilusão. A vida é muito mais do que aquilo que o humano vive, pois ele é um fragmento que participa do fluir natural da vida. Concretamente, viver consiste em buscar a verdade no confronto com a ilusão irredutível. Não é possível viver sem ilusão, pois isso é uma pretensão ridícula. É preciso saber quais são as ilusões e as inverdades que não abandonarão a humanidade. Para viver não é necessário ter ideais como o humanismo e o cristianismo, pois a vida flui naturalmente. O ser humano precisa somente esforçar-se para lidar com, e em meio as, situações cotidianas. Cf. GRAY, John. Cachorros de palha: reflexões sobre humanos e outros animais. 2. ed. Rio de Janeiro: Record, 2006, p. 84. 1 2

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ARTIGOS ARTIGOS formas de vida que não dispõem da sensação de si mesmos.8 Essa capacidade eminentemente humana corrobora a existência do mundo como universo de significados.9 Para ele, não é necessário haver consciência para que a sensação e a percepção sejam efetivas,10 pois a vida é dinâmica de cognição em todos os níveis. A maior parte da percepção humana não é consciente, mas subliminar11, a que o autor chama de “escaneamento inconsciente”12. O que vemos não passa de fragmentos. Não obstante isso, ele afirma que o ser humano é responsável por encontrar um significado decente para a vida humana. Felicidade é um juízo sobre a vida; significa viver a vida feliz. Por isso a educação consiste no processo de lidar com a busca humana por sentido existencial. Hoje se vê um grandioso “processo de reestratificação mundial, no qual se constrói uma nova hierarquia sociocultural em escala planetária”.13 O sistema de mercado respalda uma cultura de consumo, que incita nos seres humanos a não-saciedade dos próprios desejos e a absolutização do tempo presente14, pois “o desejo não deseja satisfação. Ao contrário, o desejo deseja o desejo”15. Sobre isso, Bauman afirma que: Todo mundo pode ser lançado na moda do consumo; todo mundo pode desejar ser um consumidor e aproveitar as oportunidades que esse modo de vida oferece. Mas nem todo mundo pode ser um consumidor. Desejar não basta; para tornar o desejo realmente desejável e assim extrair prazer do desejo, deve-se ter uma esperança racional de chegar mais perto do objeto desejado. Essa esperança, racionalmente alimentada por alguns, é fútil para muitos outros. Todos nós estamos condenados à vida de opções, mas nem todos temos os meios de ser optantes.16

De quem é a empresa: dos que trabalham nela, do local que a situa, ou dos seus investidores? A resposta do teórico da empresa moderna Albert J. Dunlap é que os efetivos donos são os investidores, pois eles “têm o direito de descartar, de declarar irrelevante e inválido qualquer postulado que os demais possam fazer sobre a maneira como elas dirigem a companhia.”17 Os centros decisionais são liquefeitos com o fluxo de deslocamento. Daí que a liberdade, numa empresa, não é fato para todos, mas de modo efetivo para os que possuem ações de investimentos. Esses investidores, conforme a análise baumiana: Podem comprar qualquer participação em qualquer bolsa de valores e através de qualquer corretor, e a proximidade ou distância geográfica da companhia será com toda a probabilidade a consideração menos importante na sua decisão de comprar ou vender.18[...] quem for livre para fugir da localidade é livre para escapar das consequências.19[...]O espaço tornou-se ...processado/centrado/organizado/normalizadoe, acima de tudo, emancipado das restrições naturais do corpo humano.20 Cf. GRAY, John. Cachorros de palha, p. 84. Ibid., p. 69. 10 Ibid., p. 75. 11 Ibid., p. 76-77. 12 Id. Cachorros de palha, p. 79. 13 BAUMAN, Zygmunt. Globalização, p. 78. 14 Ibid., p. 99. 15 TAYLOR, Mark apud BAUMAN, Zygmunt. Globalização, p. 91. 16 BAUMAN, Zygmunt. Globalização, p. 94. 17 Ibid. ,p. 13. 18 Ibid., p. 15. 19 Ibid., p. 16. 20 Ibid., p. 24. 8 9

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ARTIGOS ARTIGOS Trata-se de uma neurose da ordem e da lei nos centros urbanos, que se mostra como Suspeita em relação aos outros, a intolerância face à diferença, o ressentimento com estranhos e a exigência de isolá-los e bani-los, assim como a preocupação histérica, paranóica com a “lei e a ordem”, tudo isso tende a atingir o mais alto grau nas comunidades locais mais uniformes,mais segregados dos pontos de vista racial, étnico e de classe.21 [...] A uniformidade alimenta a conformidade e a outra face da conformidade é a intolerância.22

No contexto urbano, o maior inimigo interior das pessoas são os medos contemporâneos, típicos desse contexto.23 Entretanto o mercado possui forças de controles de natureza panóptica, que manipulam a vida das pessoas na invisibilidade, pois são anônimas, não identificáveis.24 A nossa sociedade parece não ter, em seu conjunto, embasamento que suporte a liberdade; vive-se uma real carência de libertação tanto no plano objetivo, quanto no subjetivo.25 Como se emancipar é algo difícil para o ser humano hoje. É bem mais fácil acomodar-se em não querer ser livre, porque exercer a liberdade é uma situação onerosa, que demanda esforço e coragem para enfrentar as dificuldades.26 O contexto cultural hodierno é, do ponto de vista do cérebro humano, lesado, débil, porque fez com que o gosto pelo bem cedesse lugar a um afã ingente por diversão e entretenimento.27 Disso emerge uma questão: qual é a força da rotina na sustentação do sentido para a vida? Deparamos no contexto do humano de hoje uma carência de universais diante da qual possa irromper a contestação.28 Cada vez mais a chegada da satisfação vem sendo protelada, até mesmo impossibilitada. Diz Bauman: O horizonte da satisfação, a linha de chegada do esforço e o momento da autocongratulação tranquila movem-se rápido demais. A consumação está sempre no futuro, e os objetivos perdem sua atração e potencial de satisfação no momento de sua realização, se não antes. Ser moderno significa estar sempre à frente de si mesmo, num Estado de constante transgressão (...); também significa ter uma identidade que só pode existir como projeto não-realizado.29

Grassa, segundo esse sociólogo, um combate entre o indivíduo e o cidadão, um anacronismo entre a autonomia de direito e a autonomia de fato, ou seja: A “individualização” consiste em transformar a “identidade” humana de um “dado” em uma “tarefa” e encarregar os atores da responsabilidade de realizar essa tarefa e das consequências (assim como dos efeitos colaterais) de sua realização.30 O indivíduo é o pior inimigo do cidadão [...]. O “cidadão” é uma pessoa que tende a buscar seu próprio bem-estar através do bem-estar da cidade – enquanto o indivíduo tende a ser morno, cético ou prudente em relação à “causa comum”, ao “bem comum”, à “boa sociedade” ou à sociedade justa”.31 Aqui ele apresenta o pensamento de Richard Sennett. BAUMAN, Zygmunt. Globalização, p. 54. BAUMAN, Zygmunt. Globalização, p. 55. 23 Ibid., p. 55. 24 Ibid., p. 65. 25 Id. Modernidade Líquida. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2001, p. 25. 26 Ibid., p. 25. 27 Ibid., p. 26. 28 Ibid., p. 30. 29 Ibid., p. 37. 30 Ibid., p. 41. 31 Ibid., p. 45. 21 22

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ARTIGOS ARTIGOS Neste ponto é importante considerar a abordagem sobre liberdade e neurobiologia feita por J. Searle32. Ele aduz a polarização entre o determinismo, realidades inevitáveis no conjunto da vida e nas suas particularidades, e os intervalos que existem para o homem e a mulher, que se situam entre a decisão de agir e o agir como tal. Para esse autor, a “liberdade total” existe no plano conceitual sendo, portanto, não factível. O ser humano torna-se um “eu” como tal na medida em que tem uma história limitada pelo determinismo. Em sentido completo, absoluto, a liberdade é impossível. O processo de complexificação faz parte da própria dinâmica dos sistemas. Não há liberdade absoluta porque não existe puro determinismo, nem puro acaso. Sistemas perfeitamente ordenados são sistemas mortos. Bem mais importante do que o modelo é a base humana que dá sustentação a ele. Fronteiras são sempre construções sociais. Quebrá-las é um passo importante para o diálogo que ajude a não cair no dualismo de reprodução das opressões. Por que, então, não é fácil querer e buscar a emancipação? Segundo Bauman é devido a uma substancial relevância da ingenuidade.33 O que ele propõe, no âmbito da emancipação, é uma recoletivização das “utopias privatizadas”.34 Configura-se uma nova compreensão de potencial humano, pois, embora a aptidão seja um dado subjetivo, Bauman assegura que ela significa a possibilidade de expansão diante de propostas que não sejam comuns, nem habituais e, por isso, extraordinárias e surpreendentes para o indivíduo.35 Como ele mesmo afirma, na “longa busca pela aptidão não há tempo para descanso, e toda celebração de sucessos momentâneos não passa de um intervalo antes de outra rodada de trabalho duro”.36A fluidez dos tempos hodiernos configura uma flexibilização universal, que anula perspectivas; é a força do papel da “exequibilidade do progresso”.37 É imprescindível para o homem e para a mulher viventes um horizonte de sentido que dê sustentabilidade ao dinamismo próprio da existência. Daí a necessidade de uma utopia que possibilite o deslanchar da prática humanizadora. No entanto é importante não perder de vista que esse processo não é linear, uniforme e não garante sucesso permanente, isto é, o ser humano vive o seu cotidiano lidando com êxitos e frustrações. Nesse ponto, emergem a educação e a religião como elementos disponíveis no nível simbólico-existencial da práxis humana para ajudar o ser humano a reconhecer os limites de suas possibilidades, acolher o alcance de suas práticas e sustentar a esperança e o reencantamento da vida.

2 A Educação e a Religião como variáveis de reencantamento da vida O ser humano contemporâneo vive um processo profundo de desencantamento da vida, não no sentido de secularização, mas na perspectiva weberiana de perda do elã religioso que encanta a vida e favorece a existência com graça para viver, atravessada por símbolos que evocam o mistério invisível, Cf. SEARLE, John. Libertad y neurobiologia. Barcelona: Paidós, 2005. Cf. BAUMAN, Zygmunt. Modernidade Líquida, p. 53. 34 Ibid., p. 63. 35 Ibid., p. 92. 36 Ibid., p. 92. 37 Ibid., p. 157. 32 33

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ARTIGOS ARTIGOS mas efetivamente presente. No seu estudo sobre economia e sociedade, Max Weber assevera que o modo de conceber o mundo exige um sentido.38 Aqui vale a distinção que o teólogo Richard Niebuhr faz entre a Igreja Cristã como instituição que defende o Evangelho e, por isso, arroga-se o direito de apropriação, de domínio e a instituição que testemunha no interior da cultura os valores enunciados pelo Cristo.39 Para esse autor, a cultura moderna ocasionou a “desintegração da religião”, devido ao processo de burocratização institucional que identificou a fé com a cultura, prescindindo da necessária distinção entre ambas. Por isso uma questão permanece aberta: por que Jesus de Nazaré foi execrado pela sociedade de seu tempo? Segundo Niebuhr, um elemento marcante é o fato de que Ele apresentou uma ética que destoava daquilo preconizado pelas instituições religiosas, políticas e sociais vigentes.40 Sua experiência religiosa não era alheia à vida cotidiana do povo. Com isso acede-se à questão de que viver implica sempre ação e, no âmbito humano, carece sempre da educação como mediação da ação que constitui, modifica, cria e recria o ambiente.41 Jung MoSung afirma que: Quando um processo educacional não ajuda o educando a conhecer ou construir um sentido que faça valer a pena lutar pela vida e pelo processo de humanização, esse mesmo processo educacional acaba por não oferecer o sentido da sua própria ação educativa. Estabelece-se assim uma circularidade dialética: educação tem sentido dentro de um horizonte de sentido que deve ser aprendido e/ou construído pelo processo educacional. Se um processo educacional não é capaz de gerar o conhecimento desse sentido mais profundo e amplo da vida – que vai além do mero “passar de ano” -, a própria educação perde o sentido e passa a ser uma mera obrigação sem sentido.42

Parece perceptível que, hoje, o que gera encanto na vida é o desmedido movimento das pessoas em busca de consumo. A pessoa define-se como tal pelo nível de consumo que consegue sustentar.43 E, ainda, “com a produção massiva, há uma tendência de homogeneização do consumo”.44 Isso aliado à ilusão de ausência de limites intransponíveis no campo material. Porém, para um efetivo processo de reencantamento, é importante superar o hábito comum de alijar das nossas mentes os elementos que indicam a nossa própria finitude.45Sung afirma: A única forma de nos referirmos ao que está além do nosso limite é com a linguagem simbólica. A linguagem religiosa, por exemplo, é um bom exemplo das linguagens simbólicas que fazem referência ao nosso desejo e à nossa possibilidade de pensarmos o infinito e a plenitude. O perigo está em tratarmos essa linguagem simbólica como sendo uma linguagem descritiva de uma realidade ao alcance das nossas mãos ou das nossas ações.46 Ele afirma: Quanto mais o intelectualismo reprime a crença na magia, “desencantando” assim os fenômenos do mundo, e estes perdem seu sentido mágico, somente “são” e “acontecem”, mas nada “significam”, tanto mais cresce a urgência com que se exige do mundo e da “condução de vida”, como um todo, que tenham uma significação e estejam ordenados segundo um “sentido”. WEBER, Max. Economia e Sociedade: fundamentos da sociologia compreensiva .Vol 1. Brasília: UNB, 1991, p. 344. 39 Cf. NIEBUHR, H. Richard. Cristo e cultura. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1967, p. 17. 40 Ibid., p. 23. 41 Cf. SUNG, Jung Mo.Educar para Reencantar a Vida. Petrópolis: Vozes, 2006, p. 23. 42 Ibid., p. 43. 43 Ibid., p. 72. 44 Ibid., p. 95. 45 Ibid., p. 142. 46 Ibid., p. 143. 38

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ARTIGOS ARTIGOS O que se pode dizer na perspectiva cristã é que a maturidade espiritual consiste em viver os desejos, consciente dos limites, alimentando a esperança. Entre as grandes religiões da humanidade, parece que é somente o cristianismo que apresenta um Deus como vencido. Sua carta-magna, o Evangelho de Jesus Cristo, não prometeu solução para os problemas nem mesmo o Enviado foi poupado do terror. A novidade é que o Crucificado ressuscitou; por isso Jesus é o Messias. O que salva, portanto, é a fé, que não é nenhuma certeza; ademais, a incerteza constitui o humano radicalmente. Por definição, o essencial do desejo é irrealizável. O ser humano deseja de forma ilimitada. Todo desejo implica frustração. O aquém do desejo não é todo o desejo, porque o todo transcende. MusimbiKanyoro afirma que ter esperança é uma forma de resistência vivida de modo ativo. Conforme sua leitura, é muito importante a coletivização da esperança. Assim ela afirma: A tarefa de comunicar esperança implica ajudar pessoas a viver com esperança à medida que resolvem suas questões e aprendem a conviver, positivamente, com condições que não podem mudar. Sempre de novo, estamos aprendendo, de pessoas que convivem positivamente com Aids, que a esperança nem sempre muda a condição, mas deve mudar a psique.47

O Deus dos cristãos é morto por seres humanos. O Cristo-Deus é morto por seres inferiores. Esta não é uma religião mistérica. Aqui Deus interpela o ser humano, sem intervir diretamente com uma ação. A primeira interpelação que aparece é a de quem sofre; basta recordar a experiência de Moisés (Ex 3), que lembra o povo dele que ficou para trás (fogo que queima sem se consumir... Cf. Ex 3, 2). O “além do pasto” para Moisés implica a saída do cotidiano, sempre a partir da figura do outro e não só pela própria vontade. Quando o outro assume espaço na vida, emerge o problema que interpela. Para Paulo de Tarso vem a pergunta “Por que tu me persegues? ” (Cf. At 9, 4). Em Estevão,48 estão representados todos os perseguidos por Paulo. Diante disso, qual o significado da cruz para os cristãos de hoje? A missão cristã consiste em descer da cruz os pobres (Jon Sobrino). Quem fez isso com o Cristo Crucificado em Jerusalém? Não foram os apóstolos e muito menos as autoridades religiosas. Um Deus para todos só o será se antes for do fraco. Numa situação de conflito, a universalidade de Deus só se realiza na parcialidade que defende as vítimas.49 O cristão não surge pronto de uma vez, pois se trata de um chamado à liberdade, como afirma Paulo aos Gálatas, que não pode servir como pretexto para insanidades, mas para um serviço de amor de uns pelos outros (Cf. Gl 5, 13). É alguém que vive o extraordinário da liberdade para torná-lo ordinário, cotidiano. Segundo J. Comblin, a liberdade é uma forma de viver, é algo que se conquista enquanto luta. Ela se expressa concretamente na solidariedade com os pobres.50 Esperança é diferente de otimismo. Apesar do mal, o cristão continua na esperança. É importante ter presente que, “por KANYORO, Musimbi. A Forma de Deus por vir e o futuro da humanidade. In. SUSIN, Luiz Carlos (Org.). Teologia para Outro Mundo Possível, p. 258. 48 Nos Atos dos Apóstolos, na narrativa do apedrejamento de Estevão, aparece a menção de que Paulo, então Saulo, estava presente e consentindo com aquela execução. Cf.: At 8,1. 49 Este é um pensamento visceral na cristologia de Jon Sobrino, cujos pontos fundamentais são retomados na obra que teólogos comprometidos com a transformação do mundo escreveram em solidariedade e homenagem a esse missionário. Cf. VIGIL, José Maria (Org.). Descer da Cruz os Pobres: Cristologia da Libertação. São Paulo: Paulinas, 2007. 50 Esta abordagem é apresentada nos textos: COMBLIN, José. Vocação para a liberdade. São Paulo: Paulus, 1998; COMBLIN, José. Perplexidades de quem ensina. Vida Pastoral 198 (1998), p. 7-12. 47

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ARTIGOS ARTIGOS sua natureza, as utopias nunca vão realizar-se totalmente. Mas, elas nos mantêm no caminho. São como as estrelas. Nunca as alcançaremos. Mas elas encantam a noite e orientam os navegantes”.51 Qual é a diferença entre a liberdade como possibilidade e a liberdade como vocação? O caminho é bom, mas gera insegurança, evidencia os riscos. O que ajuda é a comunidade: grupo de pessoas que compartilham a mesma fé. Por que Jesus enviou os discípulos dois a dois (Lc 10,1)? Talvez para um apoiar o outro na hora da frustração. A comunidade de fé é importante para compartilhar o sonho, falar das próprias experiências, mesmo que não entendam. Considerando a metáfora de Letty Russel, a comunidade de fé é como uma roda que circula envolvendo todos num movimento “de fé e luta que trabalha para antecipar a nova criação de Deus, tornando-se parceira das pessoas que estão à margem” das instituições religiosas e sociais.52 A Espiritualidade e a Religião devem ajudar a discernir os desejos. O que é fundamental, na perspectiva paulina, é a fé traduzida em ações de amorosidade (Gl 5, 6), pois “é para a liberdade que Cristo nos libertou” (Gl 5,1). Então como é que a espiritualidade ajuda a lidar com a frustração? O que faz permanecer na luta? Pois bem, efetivamente, a razão principal da luta não é a vitória. Lutar vale a pena por si mesma. A espiritualidade dá sentido à luta. Na base de toda escolha/decisão na vida, está a opção fundamental. No atual contexto de grandes e incômodas iniquidades, com deslocamento de prioridades essenciais53, constata-se, com base no alerta de Boaventura dos Santos, que existe um colossal desperdício das riquezas das experiências sociais dos povos e um intencional ocultamento delas pela vigente ciência da sociedade.54 E, nesse caso, não são suficientes as boas intenções, como afirma Jung MoSung, uma vez que: A economia de mercado, como um subsistema complexo, possui uma dinâmica própria bastante autônoma em relação às intenções dos agentes econômicos – que fazem parte desse mesmo subsistema -, por mais poderosos que sejam eles no interior desse subsistema.[...] é preciso que as propostas de solidariedade e de justiça social levem em consideração os mecanismos sociais e econômicos complexos e que lutemos por transformações profundas na estrutura econômico-social-política.55

Considerando, com Juan Luis Segundo, que a revelação divina é um processo efetivamente pedagógico que possibilita ao humano engajar-se num processo de aprendizagem, o qual o proporciona humanizar-se cada vez mais, então é fundamental ter no permanente esforço do caminho espiritual um referencial de humanidade que apresente um horizonte de sentido último para a existência.56 É no interior da ação, na constância da luta cotidiana, atento às novas intuições que emergem na liminaridade das práticas locais, que se pode tornar mais humano. BOFF, Leonardo. Duas utopias urgentes para o século XXI. In. SUSIN, Luiz Carlos (Org.). Teologia para Outro Mundo Possível, p. 239. 52 KANYORO, Musimbi. A Forma de Deus por vir e o futuro da humanidade. In. SUSIN, Luiz Carlos (Org.). Teologia para Outro Mundo Possível, p. 253. 53 Ibid., p. 254. 54 Cf. SANTOS, Boaventura de Sousa. Para uma sociologia das ausências e uma sociologia das emergências. In. SUSIN, Luiz Carlos (Org.). Teologia para Outro Mundo Possível, p. 170. 55 SUNG, Jung Mo. Teologia, Espiritualidade e Mercado. In. SUSIN, Luiz Carlos (Org.). Teologia para Outro Mundo Possível, p. 341. 56 Este pensamento de Juan Luis Segundo é recorrente na teologia elaborada por Jung MoSung, tanto em seus escritos quanto em suas conferências. Cf. SUNG, Jung Mo. Teologia, Espiritualidade e Mercado. In SUSIN, Luiz Carlos (Org.). Teologia para Outro Mundo Possível, p. 347. Cf. também SUNG, Jung Mo. Sujeito e Sociedades Complexas: Para repensar os horizontes utópicos. Petrópolis: Vozes, 2002. 51

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ARTIGOS ARTIGOS Considerações Finais A experiência religiosa é uma experiência mística que se funda num modo de ser humano que tem um horizonte de sentido que o transcende. Na abordagem do fenômeno religioso é imprescindível não prescindir de uma gama de aspectos que o atravessam; entre eles, o aspecto educacional. Para definir uma realidade, é necessário conhecer a organização específica interna e que, portanto, é relevante considerar que “sistemas vivos” são realidades complexas. A humanidade, conforme reflete-se aqui, é um sistema complexo, daí a escolha do constituinte humano da liberdade e a projeção de uma problematização a partir das mediações da educação e da religião. Este texto é o ensaio de um caminho de análise da questão da liberdade humana em alguns de seus caminhos possíveis e na sua essencialidade vocacional. Isso fez chegar à constatação de que não é suficiente perceber e compreender os limites próprios do processo de viver a liberdade, mas é muito importante tentar superar esses limites, com a consciência de que o choque com a intransponibilidade de alguns não é justificativa para a fixação no desencanto, uma vez que a imperfeição é condição necessária para a replicação de organismos vivos, que se desviam e se adaptam ao ambiente. Considerou-se que o desejo é patente e a utopia é condição necessária para conhecer e agir sobre a realidade. A capacidade de formular projetos, de sonhar, é uma das fontes do reencantamento da vida humana. Tudo isso marcado pela esperança que brota da inconformidade com os limites comuns (e incomuns) da existência. Referências Bibliográficas BAUMAN, Zygmunt. Globalização: As consequências humanas.Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1999. _____. Modernidade Líquida.Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2001. BOFF, Leonardo. Duas utopias urgentes para o século XXI. In. SUSIN, Luiz Carlos (Org.). Teologia para Outro Mundo Possível. São Paulo: Paulinas, 2006. COMBLIN, José. Perplexidades de quem ensina. Vida Pastoral 198 (1998). _____. Vocação para a liberdade. São Paulo: Paulus, 1998. GRAY, John. Cachorros de palha: reflexões sobre humanos e outros animais. 2. ed.Rio de Janeiro: Record, 2006. KANYORO, Musimbi. A Forma de Deus por vir e o futuro da humanidade. In. SUSIN, Luiz Carlos (org.). Teologia para Outro Mundo Possível. São Paulo: Paulinas, 2006. NIEBUHR, H. Richard. Cristo e cultura. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1967. SANTOS, Boaventura de Sousa. Para uma sociologia das ausências e uma sociologia das emergências. In. SUSIN, Luiz Carlos (Org.). Teologia para Outro Mundo Possível. São Paulo: Paulinas, 2006. SEARLE, John. Libertad y neurobiología. Barcelona: Paidós, 2005. SUNG, Jung Mo. Sujeito e Sociedades Complexas: Para repensar os horizontes utópicos. Petrópolis: Vozes, 2002. _____. Educar para Reencantar a Vida.Petrópolis: Vozes, 2006. _____. Teologia, Espiritualidade e Mercado. In. SUSIN, Luiz Carlos (Org.). Teologia para Outro Mundo Possível. São Paulo: Paulinas, 2006. SUSIN, Luiz Carlos (Org.). Teologia para Outro Mundo Possível. São Paulo: Paulinas, 2006. VIGIL, José Maria (Org.). Descer da Cruz os Pobres: Cristologia da Libertação. São Paulo: Paulinas, 2007. WEBER, Max. Economia e Sociedade: fundamentos da sociologia compreensiva.Vol 1. Brasília: UNB, 1991. ano 39, n. 148, jan./jun. jul./dez. 2017. 2016. São Paulo,São ano Paulo, 40, n. 149, p. 97-105,

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ARTIGOS ARTIGOS AS RELAÇÕES ENTRE CRISTÃOS E JUDEUS SOB O PONTIFICADO DE INOCÊNCIO III: UMA VOZ PELA TOLERÂNCIA RELIGIOSA? THE RELATIONS BETWEEN CHRISTIANS AND JEWS UNDER THE PONTIFICAL OF INNOCENCE III: A VOICE FOR RELIGIOUS TOLERANCE? Cesar Almeida Siqueira* José Rodolfo Galvão dos Santos**

RESUMO: A partir da realidade histórico-social-religiosa do final do século XII e início do XIII, analisar-se-á a figura de Inocêncio III e sua política em relação aos judeus. As diversas cartas e escritos do pontífice permitem entrever a mentalidade que constitui os inícios da tolerância religiosa. Os cristãos perpetraram diversas perseguições aos seus “irmãos mais velhos”, contudo o santo padre parece ter iniciado de modo mais sistemático um apelo à civilização ocidental de respeito à fé judaica. O artigo articula-se na história de Inocêncio III e na análise da Constituição Licet Perfidia Iudaeorum, sobre a proteção aos judeus por parte do Papa, e das cartas Maiores Ecclesiae Causas e Debitum Oficii Pontificalis, sobre o efeito do batismo e seu desejo, exemplificando os problemas de coação dos judeus ao sacramento. Palavras-chave: Inocêncio III. Tolerância Religiosa. Cristãos. Judeus. Batismo. ABSTRACT: Beginning with the historical-social-religious reality of the late twelfth and early thirteenth centuries, this article analyzes the figure of Pope Innocent III and his policies towards the Jews. An examination of the various letters and writings of the Pontiff allow readers to get a glimpse of a mentality that contributed to the beginnings of religious tolerance. Christians had perpetuated diverse forms of persecution against their “elder brothers,” yet the holy pope seems to have introduced a more systematic way of appealing to Western civilization to show respect for the Jewish faith. The article traces the history of Innocent III and provides an analysis of the Constitution Licet Perfidia Iudaeorum, On the Protection of the Jews by the Pope, and of the letters Maiores Ecclesiae Causes and Debitum Oficii Pontificalis, dealing with the effect of Baptism and the desire for Baptism, thereby identifying the problems associated with the coercion of the Jews to receive the sacrament. Keywords: Innocent III. Religious Tolerance. Christians. Jews. Baptism.

Introdução A Declaração Nostra Aetate, do Concílio Vaticano II, sobre a relação da Igreja com as religiões não-cristãs, recomenda o conhecimento e a estima mútua entre cristãos e judeus e o cultivo do seu imenso patrimônio espiritual comum, por meio dos estudos bíblicos, teológicos e diálogo fraterno. O Salesiano de Dom Bosco. Pós-graduando em Estudos Judaicos pelo Centro Universitário Salesiano de São Paulo com o apoio do Seminário Rabínico Latino-Americano Marshall T. Meyer (Buenos Aires). Contato: [email protected] ** Salesiano de Dom Bosco. Pós-graduando em Estudos Judaicos pelo Centro Universitário Salesiano de São Paulo com o apoio do Seminário Rabínico Latino-Americano Marshall T. Meyer (Buenos Aires). Contato: [email protected] *

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ARTIGOS ARTIGOS texto, ainda, lamenta profundamente todo o ódio e perseguição ao longo da história de que os judeus foram objeto.1 O patrimônio espiritual comum sempre nos colocou em relação uns com os outros, embora esta nem sempre tenha sido dialógica e muito menos fraterna. O período da cristandade, particularmente, caracteriza-se por esse distanciamento, por relações quebradas, perseguições injustas. Um patrimônio tão profundo quanto o do nascimento do judaísmo rabínico e do cristianismo, entretanto, exigirá constantemente o reconhecimento de nossas origens. O relacionamento entre judeus e cristãos faz parte da nossa identidade religiosa. Nesse sentido, procuramos estudar nesta pesquisa a relação entre judeus e cristãos no pontificado de Inocêncio III. O jovem Papa Lotário de Segni escreveu uma Constituição e ao menos duas cartas, em que tratou especificamente desse aspecto. Embora tenha embasado sua constituição nos seus predecessores, Inocêncio destaca-se por ser o ápice da monarquia papal. Analisaremos, neste texto, esses documentos. Em primeiro lugar, traçaremos uma breve biografia de Inocêncio finalizando com o IV Concílio de Latrão e suas definições em relação aos judeus. Em segundo lugar, explanaremos a Constituição Licet Perfidia Iudaeorum e as cartas Maiores Ecclesiae Causas e Debitum Oficii Pontificalis.

1 Inocêncio III: uma breve biografia O Papa Inocêncio III é considerado o ápice do papado não só no século XIII, como também de todo o período denominado monarquia papal, quando o Papa não governava somente a Igreja, mas figurava ou se autocompreendia como o chefe e centro de todo o poder monárquico do mundo conhecido. Com a morte de Celestino III em 1198, o jovem cardeal Lotário de Segni foi eleito pontífice no mesmo dia por unanimidade2. Nasceu no castelo de Gavignano, próximo de Anagni (península itálica), em fins de 1160 ou início de 1161, e falecido em Perugia em 16 de julho de 1216. Filho de uma família da nobreza italiana, esta logo o enviou a estudar Teologia em Paris e Direito Canônico em Bolonha. Por meio dos estudos, bem como das influências de sua família na Igreja, galgou um cargo na Cúria Romana, em que, mesmo mergulhado em diversos trabalhos curiais, escreveu livros sobre teologia e espiritualidade, os quais ficaram muito populares entre teólogos e o clero3. Dentre seus escritos destaca-se De sacrossancto altares mysterium, pelo qual definiu e ordenou as cores litúrgicas, mudadas de acordo com os tempos e das festas celebradas na liturgia romana. Logo no início de seu pontificado, enfrentou a vacância repentina do trono do Sacro Império Romano Germânico. Seu legítimo sucessor estava com apenas quatro anos e teria direito também ao reino da Sicília. Instaurou-se, então, uma guerra pelos que reclamavam tanto o trono do Sacro Império, quanto do reino siciliano. Inocêncio, mesmo com intempéries e revoltas, conseguiu garantir que, aos catorze anos, Frederico II assumisse ambos os tronos. Com isso, já despontava a figura diplomática Cf. Declaração Nostra aetate sobre a relação da Igreja com as religiões não-cristãs. In: Concílio Vaticano II. 1962-1965. Vaticano II: mensagens, discursos, documentos. São Paulo: Paulinas, 2013, n. 4. 2 Lotário tornou-se Papa em 08 de janeiro de 1198 e recebeu o nome de Inocêncio III por imposição do cardeal-decano, a fim de se rechaçar o antipapa homônimo exilado em 1180. 3 Cf. Mondin, Battista. Dizionario enciclopedico dei papi: storia e insegnamenti. Roma: Città Nuova, 2006, p. 251. 1

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ARTIGOS ARTIGOS importante de Lotário. Em toda questão que exigisse o seu juízo, em administração ou jurisprudência, revelava-se sua superioridade em resolver magistralmente os problemas4. Inocêncio construiu uma autocompreensão do papado como monarca de toda a cristandade, donde lhe proveio o apelativo de “papa mais poderoso da história”5. Isso também se tornou explícito na sua relação, um tanto quanto ambivalente, com os judeus, cujo tema abordaremos a partir de três documentos: uma constituição e duas cartas. Num primeiro texto, na constituição de 1199, Inocêncio ofereceu toda a proteção aos judeus e ordenou que ninguém os hostilizasse, sobretudo em suas festas. Escreveu outras duas cartas sobre o batismo forçado de judeus e pronunciou-se contrário a tais práticas. Entretanto, no final de sua vida, nas conclusões do IV Concílio de Latrão, em 1215, universalizou para a cristandade algumas restrições, já existentes em algumas localidades, aos filhos de Israel. Dado que Inocêncio III explicitou a existência de dois poderes, um sobre as almas e outro sobre os corpos, comparou-os ao Sol e à Lua. O poder papal impera sobre as almas e corresponde ao Sol, ao passo que os reis imperam sobre os corpos e, por isso, são análogos à Lua. Como a luz da Lua é apenas reflexo do Sol, de igual modo o poder dos reis corresponde a um reflexo outorgado pela potestade do vigário de Cristo na Terra. Aqui temos a configuração da intenção de uma respublica christiana que tenha o papa por máxima autoridade. A finalidade do “santo padre” era a unidade de toda a cultura ocidental. Os argumentos tomados para tal intento, entretanto, incomodavam os interesses políticos de poder dos monarcas. Instaurou-se, assim, uma situação problemática com o poder temporal e agravou, ainda mais, a cisão com a Igreja Oriental, que via o primado petrino como de honra e não de jurisdição universal. Tal desconfiança por parte dos ortodoxos orientais foi selada na quarta cruzada, em 1204, na qual ocorreu a invasão, sem autorização de Inocêncio, da cidade de Constantinopla. Durante a pilhagem dos tesouros, por três dias, banhou-se com sangue cristão a capital bizantina. Os cruzados forçaram a eleição de um Patriarca Latino e retiraram a Igreja Ortodoxa de sua sede, bem como o Imperador, de modo que, por quase 60 anos, foi estabelecido um reino latino em Bizâncio.6 Por conta desse incidente lamentável da história, a relação entre as duas igrejas só seria reiniciada em 1965. Além de sua figura de monarca e diplomata, Lotário permitiu e conduziu uma grande reforma na Igreja, aprovando as duas ordens mendicantes surgidas em sua época: os franciscanos, aprovados em 1209, e os dominicanos, em 1215. Foi também ele que se preocupou com a difusão da cultura, unificada na construção do ideal cristão. Não apenas fundou as universidades, de modo especial as de Paris, Nápoles e Oxford, como também ordenou que em cada Catedral houvesse um professor de gramática e, em cada Igreja Metropolita, dois professores de Teologia, encarregados da formação do clero7. Cf. Seppelt, F. X. Storia dei papi. Vol. II. Roma: Edizione Mediterranee, 1983, p. 233-283. (Inoccenzo III). Powell, J. M. Innocent III: Vicar of Christ or Lord of the World? 2. ed. Washington: Catholic University of American Press, 1994.  6 Cf. IRVIN, D. T.; SUNQUIST, S. W. História do movimento cristão mundial. Vol. I: do cristianismo primitivo a 1453. Trad. José Raimundo Vidigal. São Paulo: Paulus, 2004, p. 491-504. 7 Vale destacar que até o Concílio de Trento em 1545 não havia a obrigação dos seminários eclesiásticos para o estudo e formação do clero. 4 5

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ARTIGOS ARTIGOS Enviou missionários para a região dos Albigenses, adeptos da heresia cátara, que se denominavam “os puros”, com a tentativa de convertê-los. Contudo, não obtendo o êxito imaginado, enviou uma Cruzada que duraria mais de trinta anos. Já no fim de sua vida, o Papa Lotário convocou o 12.º Concílio Ecumênico, por meio da carta Vineam Domini Sabaoht, o Quarto Concílio de Latrão. Foi o maior da história, que contou com a presença de 73 patriarcas, 412 bispos, 900 abades e priores, além de embaixadores representando os reis da Inglaterra, França, Hungria, Jerusalém, Chipre, Aragão e os Impérios Romano-Germânico e Bizantino.8 No final dos cânones conclusivos do referido Concílio, há quatro números que tratam especificamente dos judeus. O n.º 67 versa sobre usura, encoraja os cristãos a evitarem fazer negócios com os judeus, e impõe-lhes não cobrarem juros abusivos dos cristãos. O n.º 68, seguindo o cânone 14 do Sínodo de Toledo9, em 581, ordena que judeus e sarracenos usem roupas diferentes das dos cristãos10. No mesmo cânone, há uma disposição que ordena aos judeus o uso de roupas mais sóbrias e que nas Sextas-feiras Santas11, ou durante toda a Semana Santa em alguns lugares, estavam proibidos de saírem de casa. O penúltimo cânone, o 69, impedia que os judeus ocupassem cargos públicos; por fim, o n.º 70 indicava que os judeus que fossem batizados deveriam abandonar as práticas próprias de seu povo.12 Ao final das decisões conciliares, com a carta de conclamação para a Quinta Cruzada tentaria retomar a Terra Santa. Tal intento, porém, só se realizaria em 1217, um ano após a morte de Inocêncio, em 16 de julho de 1216 em Perugia. Analisaremos agora os três escritos do Papa Inocêncio III que têm relações diretas com o encontro cultural, presente no século XIII, entre judeus e cristãos. É nesse contexto do pontificado de Lotário, do auge do autoentendimento do papado como Imperator chistianitas, que se insere a Constituição e as duas cartas tratadas.

2 Constituição Licet Perfidia Iudaeorum A presente constituição de Inocêncio III insere-se na esteira de uma tentativa de salvaguardar a legalidade do culto judaico no medievo cristão.13 Inocêncio cita cinco de seus predecessores, a fim de embasar aquilo que dirá na constituição por ele promulgada. Além disso, sabemos que vinte anos Cf. Mondin, Battista. Dizionario enciclopedico dei papi, p. 260. Reunião regional, que não teve abrangência universal. 10 Em 637 temos o Pacto de Omar, que dispunha uma medida semelhante para os judeus. Contudo, pela informação advinda do comentário do IV Concílio de Latrão, isto é, da decisão do sínodo de Toledo em 581, essa decisão aparece como uma iniciativa cristã, dada a antecedência do Sínodo ao Pacto. Se os maometanos se basearam na decisão cristã, não temos certeza, já que a expansão islâmica só alcançou a Espanha em 661. Caberia uma pesquisa mais específica sobre o assunto, embora essa distinção não seja de todo original em se tratando da história dos grandes impérios. 11 No texto afirma-se que alguns judeus usavam roupas vistosas como provocação aos cristãos, mas seria mesmo provocação, ou eram vistosas porque era dia do Shabbat ou em alguns anos coincidisse com o Seder de Pessach? 12 Cf. HEFELE, C. J. Histoire des Conciles. Trad. H. Leclercq. Vol. V. Parisj: Letouzey et Ané, 1913, p. 1316-1397. 13 Antes de prosseguir, precisamos elucidar a diferença entre o tratamento dado aos não cristãos e aos cristãos que cometiam heresias, como foram acusados alguns judeus que, após a conversão, continuavam a praticar os ritos judaicos. Antes de tudo, cabe-nos compreender que a sociedade se embasava na intrínseca unidade entre a autoridade religiosa e civil. E, embora a força tenha sido utilizada várias vezes a fim de converter os não cristãos, tais como os reis visigodos na Espanha 8 9

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ARTIGOS ARTIGOS antes (1179), no III Concílio de Latrão, o cânone 26 estabelecera que os cristãos deveriam “suportar os judeus, pro sola humanitate foveri.”14 Tal atitude de tolerância foi mantida também pelos papas posteriores, por meio de cartas e declarações, como Honório III (07.11.1217), Gregório IX (03.05.1235), Inocêncio IV (22.10.1246 e 05.08.1247), entre outros.15 Lotário escreveu a Licet perfidia Iudaeorum em 15 de setembro de 1199, um ano e meio antes de sua eleição ao sólio pontifício. Tal constituição é endereçada a toda a Igreja, dado que não se tratasse de uma carta nominal a um bispo ou a uma situação particular, como feito pelos pontífices anteriores. Temos, então, como que uma Magna Charta da tolerância com os judeus, escrita na passagem do século XII para o XIII.16 Inicialmente queremos compreender bem o título da constituição. Licet perfidia iudaeorum17 são as primeiras palavras do escrito que, conforme o costume pontifício, intitulam seus documentos. A palavra perfidia não possui ainda a carga amplamente negativa que adquiriu nas línguas latinas, tornando-se sinônimo de traidor ou daquele que falta com a palavra. Aqui se refere, do ponto de vista cristão, àqueles que professam uma fé diferente. Embora reconhecesse que a fé judaica não se coadunasse plenamente com a fides cristã, Inocêncio ensinará que devem ser respeitados, não somente pela simples razão da humanidade, como concluíra o III Concílio de Latrão (1179), mas porque confirma e embasa a fé cristã. Somente temos acesso às interpretações cristãs sobre o Primeiro Testamento porque existe a fé dos judeus. Note-se aqui um avanço significativo no campo da tolerância e do diálogo religioso. Não se considera somente a humanidade, mas se reconhece a importância da própria fé judaica. Lotário, ao citar seus predecessores, pretende evidenciar o caráter da continuidade do magistério que não condena os judeus por professarem sua fé, iluminando o caráter da liberdade religiosa. Citamos textualmente: Ainda que eles prefiram permanecer na sua dureza a reconhecer os oráculos dos profetas [...] seguindo as pegadas dos Romanos Pontífices nossos predecessores [cita aqui alguns dos papas anteriores], acolhemos o seu pedido e concedemos a eles o escudo da nossa proteção.18 e Carlos Magno contra os saxões, a hierarquia sempre desaprovou tais atitudes. A partir dos séculos XII e XIII, todavia, a atitude contra os hereges passa a ser oposta, isto é, utiliza-se a força para que retornem à ortodoxia da fé cristã. Mostra-se importante notar que, na França e Alemanha, hereges haviam sido linchados pela multidão enraivecida. Era preciso pôr fim a tais arbitrariedades, regulamentando os processos contra os heréticos cátaros. Esse é o motivo principal para que se iniciasse em 1184 a Inquisição Medieval (nós a denominamos assim para diferenciá-la da Inquisição Espanhola que, embora contasse com o apoio e respaldo da Igreja, foi mantida muito mais pelos Reis da Espanha, Fernando e Isabel, sobretudo para perseguir a heresia judaizante). A partir do século XIII, Inocêncio IV permite o uso de tortura para que o herege confesse seu crime, técnica comum na justiça laica da época. O acusado poderia ser absolvido ou condenado às penas como a prisão, a romaria, o uso de um distintivo, fazer obras de caridade ou, em casos mais graves, ser relaxado ao braço secular e morto. Oficialmente, as mortes na Inquisição Medieval correspondem a 5% do total de processos conclusos. A intolerância era muito mais patente com os hereges do que com os que não se convertiam ao cristianismo. Compreender isso não significa, contudo, absolver ou justificar os erros crassos da Igreja nesse período. Cf. MARTINA, G. A gênese da ideia de tolerância – a Idade Média. In: MARTINA, G. História da Igreja de Lutero aos nossos dias. Vol. II: A era do absolutismo. Trad. Orlando S. Moreira. 2.ed. São Paulo: Loyola, 2003, p. 151-157. 14 “Por mera razão de humanidade” (tradução nossa) cf. Denzinger, H. Compêndio dos símbolos, definições e declarações de fé e moral. 3 ed. São Paulo: Paulinas; Loyola, 2015, p. 268. 15 Denzinger, H. Compêndio dos símbolos, definições e declarações de fé e moral, p. 268. 16 Claro que Magna Charta da tolerância, levando-se em consideração o contexto e as limitações próprias desse período. 17 “Embora a fé equivocada dos judeus (deva ser reprovada de muitos modos...)”. (Tradução nossa). 18 Denzinger, op. cit., p. 269. 110

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ARTIGOS ARTIGOS Ora, a proteção de Inocêncio é ofertada ainda que permaneçam na própria fé, o que na ótica cristã desse período era considerada uma dureza de coração. Com isso, o Papa dá passos na salvaguarda de pessoas que, estando em reinos cristãos, não compartilhavam da sua fé, mas nem por isso precisavam ser forçados à conversão ou privados da sua liberdade. No excerto que ora pesquisamos, Lotário já inclui o tema do batismo por coação, isto é, daqueles cristãos que, imbuídos de um espírito equivocado, forçam judeus ao batismo. Inocêncio não crê que alguém que seja assim batizado venha a possuir a fé cristã; antes só cumpre, por medo ou pressão, uma prescrição ritual. Desse tema, especificamente, trataremos nas duas próximas cartas que comentaremos abaixo. Por fim, o Pontífice proíbe que cristãos zombem de judeus ou de suas festas, e que os agridam ou lhes subtraiam os bens. Possivelmente aqui o Papa se refira a uma queixa dos filhos de Israel que se sentiram gravemente lesados com a passagem dos cruzados As palavras do Papa indicam que os judeus eram amplamente ofendidos por esses cruzados, talvez imbuídos do espírito da conversão dos não fiéis – entenda-se não católicos – ou por qualquer cristão que se entendesse no direito de ofender ou lesar um judeu. A conclusão da Constituição é fortíssima: “ficam excomungados os que violarem este decreto”19. Com isso, Inocêncio III pretendia sanar as violências perpetradas contra os judeus, a fim de que lhes fossem garantidos tudo e tão- somente o que se prevê na lei. Todavia podemos ainda questionar qual a justiça presente nessas leis por ele citadas. Caberia um amplo estudo sobre as leis vigentes nos vários principados e reinos em relação aos judeus, os quais possivelmente não eram considerados cidadãos com direitos. Embora se constate um pontífice, no início de seu ministério, interessado na proteção dos judeus, não podemos descontextualizá-lo. Os membros do povo eleito eram tolerados pelos cristãos e já começava a surgir, ainda que de maneira muito rudimentar, o conceito de tolerância. Ao analisarmos outras duas cartas, pretendemos compreender melhor a posição contrária de Inocêncio III ao batismo de judeus por coação, desvelando também sua concepção da tolerância religiosa entre judeus e cristãos.

3 Cartas Maiores Ecclesiae causas e Debitum Oficii Pontificalis Nas cartas Maiores Ecclesiae Causas20, ao arcebispo Imberto de Arles no fim de 1201, sobre o efeito do batismo, especialmente sobre o caráter, e Debitum Oficii Pontificalis21, ao bispo Bartoldo de Metz em 28 de agosto de 1206, sobre o ministro do batismo e o batismo de desejo, encontramos um contexto histórico particularmente interessante. Estamos no período das Cruzadas. As buscas pela retomada da Terra Santa dos mulçumanos é um desejo muito arraigado no coração da cristandade, de tal forma que os poderes religioso e civil, sempre determinados por seus jogos políticos, busquem unidade para tal intento. Vale recordar a já citada Denzinger, H. Compêndio dos símbolos, definições e declarações de fé e moral, p. 269. Ibid., p. 274. 21 Ibid., p. 278. 19 20

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ARTIGOS ARTIGOS quarta Cruzada, entre 1202-1204, que, por dificuldades financeiras, vai primeiramente a Zara, na atual Croácia, e chega a invadir Constantinopla, causando a morte de muitos cristãos, ainda que pertencentes ao Império Bizantino, e a “cruzada das crianças”, em 1212, na qual milhares de jovens, partindo da França e da Alemanha, chegam a ser vendidos pelos navegantes como escravos em Alexandria22. Em relação aos judeus, as situações são ainda mais complicadas. Muitos sofriam hostilidades por não pertencerem à fé cristã. A mentalidade da Cruzada, para a libertação da Terra Santa das mãos dos seguidores de Maomé, invadiu os burgos causando a perseguição de grupos religiosos distintos do cristianismo, de tal modo que havia conversões em massa, ou a imposição da fé cristã. Como vimos na Constituição Licet perfidia Iudaeorum, Inocêncio III sentiu essa falta de controle e pediu que se protegessem os judeus e não se levasse ninguém à conversão com violência. Nessas duas cartas, Inocêncio ocupa-se com a questão do batismo e sua validade, a impressão de caráter23 no batizado. E, por isso mesmo, são muito interessantes, porque tocam diretamente no tema da conversão e sua real intenção. O batismo sem a reta intenção ocorreria de fato? Imprimiria caráter, ou seja, haveria mudança ontológica, sem o consentimento? Lotário de Segni discute nesses dois textos a importância da intenção daquele que se aproxima do batismo, desconstruindo, de certo modo, uma compreensão objetivista do sacramento, demonstrando que sem o consentimento interior o batismo não acontece. Na primeira carta Maiores Ecclesiae Causas, Inocêncio compara o batizado com a circuncisão para o perdão do pecado original. Do mesmo modo que o ser humano adquiriu o pecado original sem o consentimento, Lotário argumenta que, sem esse mesmo consentimento, ele recebe pela graça batismal o perdão do pecado. Faz tal argumentação para demonstrar a validade e o efeito do batismo para os pequeninos (parvulis), criancinhas, mesmo que não possam dar conscientemente o seu consentimento. Distingue pecado original de atual. Inocêncio entra, então, na questão da aproximação do batismo de forma hipócrita, ou por imposição, afirmando que recebem o sacramento de modo condicional e não absoluto. Está em contradição com a religião cristã que seja obrigado a receber e a observar o cristianismo alguém que constantemente não quer e se opõe de todo. A este propósito, alguns distinguem, não sem razão, entre contrário e contrário, entre constrangido e constrangido, porque aquele que com terrores e suplícios é arrastado de modo violento e que, para não se expor a dano, acolhe assim o sacramento do batismo, recebe impresso o caráter de cristão de igual modo como aquele que vai ao batismo com hipocrisia, e, assim como quem quer de modo condicional, se bem que não queira de modo absoluto, deve ser obrigado à observância da fé cristã.24

O texto está um tanto quanto confuso porque se não o recebem em absoluto, por que nele se afirma que devem ser obrigados à observância da fé cristã? Não temos o documento completo, por isso não conseguimos fazer uma análise mais aprofundada, mas fica-nos a impressão de certa independência da observância da fé, em relação ao efeito do batismo, por causa do contexto de cristandade. Tal conclusão, porém, seria de certo modo contraditória à constituição analisada anteriormente e à carta Cf. Fröhlich, Roland. Curso básico de história da Igreja. São Paulo: Paulus, 2012, p. 97. ‘Impressão de caráter’ significa que o sacramento do batismo causa uma mudança ontológica em quem o recebe, tornando-o, em Cristo, filho de Deus. 24 Denzinger, H. Compêndio dos símbolos, definições e declarações de fé e moral, p. 274. 22

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ARTIGOS ARTIGOS seguinte, com sua compreensão sobre a importância da intenção. No parágrafo seguinte, o texto é claríssimo. Aquele que jamais dá o seu consentimento e ainda se opõe radicalmente não recebe o sacramento, nem sua realidade, nem seu caráter. Aquele, ao invés, que não dá jamais o seu consentimento, mas se opõe radicalmente, não recebe nem a realidade, nem o caráter do sacramento, pois opor-se expressamente é ainda mais que não consentir de modo algum; assim como não se mancha de culpabilidade alguma aquele que é constrangido com violência a oferecer incenso aos ídolos embora radicalmente se opondo e protestando.25

O texto continua com a afirmação de que àqueles não mais capazes de consentir, pela privação do juízo, leve-se em consideração sua intenção expressa anteriormente. O documento é muito significativo porque nos revela essa situação de aproximação do sacramento por medo, violência ou hipocrisia, justamente por ser o rito de passagem, de conversão, em que publicamente se reconhece a aceitação ou não da fé. Essas situações eram geradas pelo próprio contexto de descontrole social de defesa ou de vivência da fé. Na segunda carta, Debitum Officii Pontificalis, Inocêncio responde ao questionamento do bispo de Metz, sobre a realização ou não do batismo num judeu que por impossibilidade de se aproximar da comunidade cristã26 se “autobatizou”. Lotário demonstra claramente a importância da intenção e da realização ou não do sacramento. O batismo não existiu, porque há a necessidade de que outro o batize, pois um é o batizando e outro quem batiza. Contudo, pela sua reta intenção “para Deus” é como se tivesse acontecido o batismo, pois assim o queria interiormente o convertido, por isso, o Papa afirma que, se ele morresse antes de receber de fato o sacramento, teria ido para a pátria, morrido “como cristão”: O judeu acima mencionado deve ser batizado de novo por outrem, para que seja evidenciado que um é quem é batizado e outro quem batiza… Todavia se este tal tivesse morrido logo depois, teria ido diretamente para a pátria, pela fé do sacramento, ainda que não pelo sacramento da fé.27

Os textos são muito significativos, pois expressam uma realidade interior, subjetiva, diante de uma cristandade eminentemente objetiva, em que, realizando o ato em si, este teria acontecido de fato, não importando se foi violenta ou hipocritamente realizado. Assim, já encontramos nessas cartas indícios do paradigma de compreensão moderna. A intenção tem grande importância na mudança ontológica. Num contexto de imposição da fé, o Papa desconstrói certa visão de conjuntura social, e dá margem à tolerância religiosa.

CONSIDERAÇÕES FINAIS O pontificado de Inocêncio III foi marcado por contradições próprias de um grande poder monárquico. O jovem Lotário de Segni, eleito com apenas 37 anos e no dia da morte de seu predecessor, sentiu Denzinger, H. Compêndio dos símbolos, definições e declarações de fé e moral, p. 275. O que nos faz recordar as distinções de bairros, roupas e regras para os judeus. 27 Denzinger, H. op. cit., p. 278. 25 26

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ARTIGOS ARTIGOS todo o peso de ser o vigário de Cristo diante de um contexto em que este se compreendia como o senhor do mundo. Inocêncio III iniciou uma reforma eclesial ao aceitar as ordens mendicantes, mas ao mesmo tempo assumiu uma posição muito mais monárquica que seus antecessores, sendo reconhecido, inclusive, como o papa mais poderoso da história. Os documentos estudados são muito significativos, pois expressam a necessidade da abertura à tolerância religiosa dentro da própria cristandade. Lotário, responsável pelas almas de seu reino terreno, procurou, de certo modo, equilibrar as distâncias entre judeus e cristãos. A constituição Licet perfidia Iudaeorum concedeu sua proteção aos filhos de Israel, e as cartas Maiores Ecclesiae Causas e Debitum Oficii Pontificalis questionaram a validade dos batismos realizados pro forma ou por imposição. Inocêncio refletiu, com isso, sobre a importância da intenção daqueles que se aproximam do sacramento. Num contexto de imposição da fé, numa sociedade culturalmente unívoca, os textos são particularmente interessantes. Contrastam, no entanto, com as definições sobre os judeus do IV Concílio de Latrão - embora valha recordar que, até então, esse fora o maior concílio já realizado, sendo impossível a imposição, mesmo do Papa, de um ponto de vista muito diverso do seu contexto e de compreensão de mundo. Podemos perceber em Inocêncio III o início, ainda como um sussurro, da voz institucional a favor da tolerância religiosa, não somente pelo respeito à humanidade, mas também à própria religião, expressa nas relações entre judeus e cristãos.

Referências BIBLIOGRÁFICAS Declaração Nostra aetate sobre a relação da Igreja com as religiões não-cristãs. In: Concílio Vaticano II. 1962-1965. Vaticano II: mensagens, discursos, documentos. São Paulo: Paulinas, 2013. Denzinger, H. Compêndio dos símbolos, definições e declarações de fé e moral. 3 ed. São Paulo: Paulinas; Loyola, 2015. Fröhlich, Roland. Curso básico de história da Igreja. São Paulo: Paulus, 2012. HEFELE C. J. (org.) Histoire des Conciles. Trad. H. Leclercq. Vol. V. Paris: Letouzey et Ané, 1913. IRVIN, D. T.; SUNQUIST, S. W. História do movimento cristão mundial. Vol. I: do cristianismo primitivo a 1453. Trad. José Raimundo Vidigal. São Paulo: Paulus, 2004. MARTINA, G. A gênese da ideia de tolerância – a Idade Média. In: MARTINA, G. História da Igreja de Lutero aos nossos dias. Vol. II: A era do absolutismo. Trad. Orlando S. Moreira. 2.ed. São Paulo: Edições Loyola, 2003. MIGNE, J. P. Innocentii III, romani pontificis: Opera Omnia in tomis quatuor distributa. In: MIGNE, J. P. Patrologiae cursus completus: series Latina. Vol. CCXVII. Paris : Garnier Fratres, 1890. Mondin, Battista. Dizionario enciclopedico dei papi: storia e insegnamenti. Roma: Città Nuova, 2006. Powell, J. M. Innocent III: Vicar of Christ or Lord of the World? 2. ed. Washington: Catholic University of American Press, 1994.  Seppelt, F. X. Storia dei papi. Vol. II. Roma: Edizione Mediterranee, 1983.

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ARTIGOS VIVÊNCIAS ARTIGOS VIVÊNCIAS NOVO DOCUMENTO DA CNBB SOBRE A INICIAÇÃO À VIDA CRISTÃ Seus antecedentes e crônica da 55ª. Assembleia Geral da cnbb

Luiz Alves de Lima*

Em 03 de maio de 2017, no transcurso da 55ª. Assembleia Geral (AG) da CNBB, em Aparecida (SP), propriamente foi aprovado por unanimidade, pelo episcopado brasileiro, um novo documento sobre um dos temas mais urgentes da atualidade eclesial: a Iniciação à Vida Cristã (IVC). O documento, que durante a Assembleia teve o status de Tema Central (numa pauta carregadíssima de 10 dias), será publicado na série azul da Conferência Episcopal. Recebeu o título de: Iniciação à Vida Cristã: itinerário para formar discípulos missionários.

1 ANTECEDENTES REMOTOS O tema da IVC, tão ligado à missão evangelizadora da Igreja hoje, não é tão novo em nossa recente história eclesial.1 Na Europa, ele vem sendo tratado desde o fim da segunda guerra mundial, desembocando na grande reforma empreendida pelo Concílio Vaticano II (1961-1965), que pediu a restauração do catecumenato em vários de seus importantes documentos: Christus Dominus (nº 13 e sobretudo 14), sobre o ministério pastoral dos Bispos, Sacrosanctum Concilium (nº 64), sobre a reforma litúrgica, Ad Gentes (nºs 14 e 17) sobre a atividade missionária da Igreja (cf. também: Lumen Gentium 14 e Código de Direito Canônico: legislação sobre os catecúmenos nos cânones 206, 788, § 1-3, 851, 1170 e 1183). Por mandato do mesmo Concílio, em 06 de janeiro 1972 foi publicado o Ritual da Iniciação Cristã de Adultos (RICA), ou seja, o rito de batismo de adultos diferente do ritual de batismo de crianças, único até então vigente (para o batismo de um adulto recorria-se ao de crianças, adaptando-o...!). Esse importante livro litúrgico, restabeleceu na Igreja moderna aquela instituição, uma das maiores da longa história da Igreja, chamado catecumenato, como a profunda e eficaz forma de iniciar verdadeiramente adultos que se apresentam para o batismo, e consequentemente, serem iniciados na fé. O catecumenato floresceu nos primeiros séculos do cristianismo (II – V), entrando posteriormente em crise, desaparecendo e P. Luiz Alves de Lima, sdb, é doutor em Teologia Pastoral Catequética, assessor de catequese na CNBB e CELAN, membro fundador da SCALA (Sociedade de Catequetas Latino-Americanos) e do SBCat (Sociedade Brasileira de Catequetas), conferencista, professor do UNISAL, Campus Pio XI, nas PUCS de Curitiba e Goiânia, e no Instituto Teológico Latino-Americano (ITEPAL) de Bogotá; editor adjunto da Revista de Catequese, coordenador de Redação do Diretório Nacional de Catequese. P. Lima participou da redação desse documento, escrevendo o cap. III; também, participou da 55a A. G. da CNBB como assessor. 1 Para uma visão ampliada dos poucos dados aqui apresentados, pode-se consultar Lima, Luiz Alves de. A catequese do Vaticano II aos nossos dias. São Paulo: Paulus, 2016. *

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VIVÊNCIAS ARTIGOS VIVÊNCIAS ARTIGOS sobrevivendo em países chamados de missão. A grande cristandade se instaurou gloriosamente no ocidente cristão durante toda a Idade Média e Moderna (apesar também de suas sombras) e, em clima de cristandade não mais é necessário o catecumenato. Aliás, a própria sociedade chamada cristã, exerce as funções da iniciação cristã (“catecumenato social”, como chamam alguns historiadores). A catequese, tal como a conhecemos, em geral de feição doutrinal nasceu dentro do catecumenato antigo; era o seu mais longo e importante tempo, porém, envolvida num clima mistagógico que, ao longo dos se perdeu. E assim chegou até nós, com característica quase que só doutrinal e, em geral, voltada apenas a crianças e adolescentes.

2 O CRESCENTE INTERESSE PELA INICIAÇÃO CRISTÃ Já desde o final do século XIX, e mais ainda no século XX a catequese, sobretudo pelo movimento catequético mundial, que precedeu e se seguiu ao Vaticano II, renovou-se em diversas maneiras, tanto em seu conteúdo, grandemente influenciada pelos documentos do Vaticano II, como na metodologia, aperfeiçoando sempre mais as maneiras de transmissão da fé. Uma dessas conquistas, por exemplo, foi o interesse pelos adultos e jovens, e não mais somente pelas crianças e adolescentes. Ou ainda, o despertar e assumir a Palavra de Deus, como o centro da catequese e a Bíblia como o livro por excelência da atividade catequética. Mas, apesar de toda sua evolução e aperfeiçoamento, a catequese, tal como recebemos da tradição e profundamente renovada no pós-concílio, já não responde mais aos graves desafios de um mundo em profundas transformações. A iniciação cristã, proposta e conduzida pela catequese, com gloriosas exceções, já não alcançava seus objetivos. O Documento de Aparecida chegou a afirmar, contundentemente, que, apesar de todo esforço, o modelo atual de transmissão da fé é precário; a Iniciação Cristã é pobre e fragmentada (cf. DAp 287). Daí o grande interesse de retorno aos processos catecumenais, sempre naturalmente adaptados à realidade hodierna. Com isso, nasceu também um movimento de redescoberta e uso, nos processos de iniciação cristã, do RICA. De fato: esse livro litúrgico, descrevendo os diversos momentos, passos, graus, leituras bíblicas, rituais e orações que se realizam no longo percurso de um adulto que quer verdadeiramente ser iniciado no seguimento de Jesus e ser seu discípulo, tornou-se então, o roteiro ou itinerário de transmissão da fé também aos jovens, adolescentes e crianças. Podemos assinalar também a publicação, pela Sé Apostólica, do Diretório Geral para a Catequese (DGC), em agosto de 1997, um dos momentos dessa redescoberta e proposta para os dias de hoje, para toda a Igreja, dos processos de Iniciação Cristã, nos moldes descritos pelo RICA, como livro litúrgico. A seu lado, foi também assumido pela catequese o Catecismo da Igreja Católica (1992; edição definitiva em 1997), como fonte de educação na fé, ensino da doutrina cristã, conversão, crescimento como discípulo missionário de Jesus. E, pairando sobre tudo, como fonte principal da fé, as Sagradas Escrituras. Vários outros documentos, surgiram, após o DGC, explorando e aprofundando uma de suas mais solenes afirmações, ou seja: “A catequese está a serviço da Iniciação Cristã” (65-68). Só para citar documentos mais próximos de nós, assim o afirmam também o nosso Diretório Nacional de Catequese, o Documento de Aparecida, o recente documento do CELAM A Alegria de Iniciar Discípulos Missionários, e vários outros diretórios nacionais, como o de Costa Rica, Argentina, Chile, etc. Essa afirmação do 116

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ARTIGOS VIVÊNCIAS ARTIGOS VIVÊNCIAS DGC significa que a Iniciação Cristã, em seu conjunto e na complexidade de seus tempos e etapas, rituais, dimensão mistagógica, é maior do que catequese, que tradicionalmente está liga mais ao ensino e assimilação da doutrina cristã, sem esquecer, é claro, a inserção na comunidade, o crescimento da conversão e aprofundamento do querigma. Por outro lado, a expressão significa também que a catequese é menor do que Iniciação Cristã, e ela mesma está a seu serviço como objetivo final a ser alcançado, o que implica também a recepção dos Sacramentos da Iniciação Cristã.

3 INICIAÇÃO CRISTÃ NO BRASIL No Brasil esta onda sobre a Iniciação cristã foi assumida pela Igreja em geral, e impulsionou muito a reflexão e sobretudo a prática da Iniciação. Isso levou à II Semana Brasileira de Catequese (Com adultos, catequese adulta), e, sobretudo à III (2009) que tratou da IVC, quando foi publicado o Estudo 97 da CNBB intitulado: A Iniciação à Vida Cristã: um processo de Inspiração Catecumenal. Foi a partir dele que se acrescentou à tradicional expressão “iniciação cristã”, o adendo: “à vida”, para reforçar um processo de iniciação que não esteja apenas firmado nos aspectos místicos e mistagógicos da fé, mas que tenham ressonância na vida concreta das pessoas em seu dia a dia, tanto individual, como comunitariamente, na dimensão social, política, cultural, econômica etc. Ainda, no Brasil, também deu e está dando muito impulso à dimensão catecumenal da catequese e de todos os processos de transmissão da fé, o subsídio publicado pela Comissão Pastoral para a Animação Bíblico-Catequética, intitulado Itinerário Catequético: iniciação à vida cristã, um processo de inspiração catecumenal. Ele apresenta, após longa introdução iluminadora dos processos catecumenais, quatro esquemas para quatro distintas e diferentes idades: adultos não batizados, adultos batizados, jovens/adolescentes e crianças. São apenas esquemas, sem os respectivos conteúdos (só indicações e citações), num esforço de misturar e mesclar num único e eficaz processo catequético, os três livros da transmissão da fé, acima referidos, ou seja: Sagradas Escrituras, RICA e Catecismo da Igreja Católica. No meio de tudo isso, outra tomada de posição de nossa Igreja Católica, através de seu episcopado, veio colocar no centro das preocupações eclesiais, o tema da Iniciação. E isso, através do documento mais importante da CNBB, que são as Diretrizes Gerais. Essa plataforma pastoral que, de 4 em 4 anos indica os grandes objetivos e caminhos da pastoral no Brasil, tem uma longa história que remete ao próprio Concílio Vaticano II durante o qual teve sua origem. De fato, em 1962, sob os apelos e premência do Papa São João XXIII, os Bispos do Brasil, em pleno Concílio Vaticano II, elaboraram o documento conhecido como Plano de Emergência,2 para atender, como diz o título, a problemas urgentíssimos da pastoral, inclusive às ameaças de cubanização ou avanço do comunismo no Brasil, via revolução cubana que medrava na ilha caribenha no final dos anos 50 e início nos anos 60. Anos depois, em 1966, já terminado o Concílio e à luz de suas grandes orientações para o aggiornamento da Igreja, a CNBB elaborou o importantíssimo documento Plano de Pastoral de Conjunto.3 E daí por diante, sempre de 4 em Para um seu maior conhecimento, pode-se usar a reedição feita pela CNBB nos Cadernos da CNBB 1, com o título Plano de Emergência para a Igreja do Brasil. 2ª. Ed. São Paulo: Paulinas 2004. (Documentos da CNBB 76). 3 Também foi reeditado com o mesmo título: CNBB, Plano Pastoral de Conjunto. São Paulo: Paulinas 2004. Em sua apresentação, Dom Odilo Pedro Scherer, Secretário-Geral da CNBB, afirmou: “O Plano de Pastoral de Conjunto, 1966-1970, continua despertando interesse, sendo citado com frequência, por causa da importância histórica que tem para o caminho pastoral da 2

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VIVÊNCIAS ARTIGOS VIVÊNCIAS ARTIGOS 4 anos, renova-se esse planejamento pastoral adaptando sempre às circunstâncias do momento e respondendo aos desafios da época. Passou a ser conhecido como Diretrizes Gerais da Ação pastoral da Igreja no Brasil até 1994. A partir de aí, assumindo a dinâmica evangelizadora que a Evangelii Nuntiandi do Bem-aventurado Papa Paulo VI havia despertado na Igreja (1975), esse Planejamento quadrienal da CNBB passou a intitular-se Diretrizes Gerais da Ação Evangelizadora da Igreja no Brasil e assim é conhecido até hoje. Na edição do quadriênio 2011-2014 destas Diretrizes Gerais foram apresentadas cinco ações prioritárias que toda a Igreja do Brasil deveria atender, como muita urgência, como são chamadas. Essas as urgências para a Igreja hoje são: 1. Estado permanente de Missão; 2. Casa de Iniciação à vida cristã; 3. Lugar de animação bíblica da vida e da pastoral; 4. Comunidade de Comunidades, e 5. A serviço da vida plena para todos. E o mais interessante é que elas permaneceram, renovadas, para o atual quadriênio 2015-2019. Tendo já desdobrado em reflexão e indicações pastorais algumas dessas urgências, a segunda delas: Iniciação à Vida Cristã foi escolhida como Tema Central da AG da CNBB de 2017.

4 PREPARAÇÃO PRÓXIMA DA 55ª. ASSEMBLEIA GERAL DE 2017 Durante a AG do ano anterior, a IVC foi escolhida como tema central para 2017. Foram 255 votos a favor dessa opção, mostrando o interesse que o episcopado mantém sobre tal tema. Como se disse acima, em 2009 já havia sido publicado, na coleção verde, um Estudo 97 da CNBB sobre a Iniciação, documento que tem, por natureza, um caráter apenas oficioso. A grande aspiração de boa parte da Igreja era que esse Estudo fosse transformado em documento azul, ou seja, um texto com muito mais autoridade, um pronunciamento de maior vigor e de maior incidência na ação pastoral. Numa entrevista ao final da 55ª. Assembleia da CNBB, em 04 de maio de 2017, respondendo à pergunta: “porque de novo o tema da iniciação?”, assim afirmava o presidente da Comissão que elaborou o documento ora aprovado, D. José A. Peruzzo, arcebispo de Curitiba: “Este é um tema tão abrangente, empenhativo e de um potencial transformador tal que é preciso mudar estruturas, mentalidades, pensamento, reflexões e sobretudo nossa prática: por isso era necessário colocá-lo em pauta novamente na AG dos Bispos”. Essa decisão da AG de 2016 foi depois ratificada nas instâncias organizativas subsequentes e, logo foram tomadas as primeiras providências rumo à preparação e desenvolvimento do tema em vista da AG de 2017, marcada para final de abril e início de maio. A primeira providência por parte da da CNBB foi a nomeação de uma Comissão própria para elaborar o Instrumento de Trabalho que seria a base das discussões durante a Assembleia. Tal nomeação foi feita no dia 15 de julho de 2016 através do Protocolo nº 0508/16, assinado pelo Presidente da CNBB, Dom Sérgio Rocha, Arcebispo de Brasília – DF e Presidente da CNBB, e por Dom Leonardo Ulrich Steiner, Bispo Auxiliar de Brasília – DF, seu Secretário-Geral. Em fins de julho, o subsecretário da CNBB Pe. Antonio Paixão, enviava essa carta de nomeação aos membros da Comissão. Igreja no Brasil. Por isso, o Secretariado Geral da CNBB decidiu publicá-lo novamente, na série “azul” dos Documentos da CNBB, para facilitar o seu acesso na atualidade. Seu conhecimento ainda poderá trazer frutos para a ação evangelizadora e pastoral dos nossos dias” (p. 2). 118

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ARTIGOS VIVÊNCIAS ARTIGOS VIVÊNCIAS A Comissão de preparação do Instrumento de Trabalho era inicialmente composta, conforme esse protocolo de nomeação, de cinco bispos e quatro sacerdotes teólogos e um religioso pastoralista. Tanto uns como outros são especialistas nos temas da Bíblia, Catequética, Liturgia e Pastoral, justamente as disciplinas ou áreas que mais convergem nos processos de IVC, de que o futuro documento deveria tratar. São eles: Dom José Antônio Peruzzo, Arcebispo de Curitiba e Presidente da Comissão, Dom Edmar Peron, Bispo de Paranaguá (PR), Dom Eugène Lambert Adrian Rixen, Bispo de Goiás (GO), Dom Giovanni Crippa, IMC, Bispo de Estância (SE) e Dom Leomar Antonio Brustolin, Bispo Auxiliar da Arquidiocese de Porto Alegre. Os teólogos-pastoralistas são: Pe. Antônio Marcos Depizzoli, Secretário da Comissão, Pe. Abimar Oliveira de Moraes, Pe. Guilhermo Micheletti, Pe. Luiz Alves de Lima, sdb e Irmão Israel José Nery, fsc. Posteriormente foram nomeadas para essa Comissão preparatória, também três catequetas teólogas e liturgistas: Profa. Lucimara Trevisan, Profa. Rosemary Costa e Ir. Penha Campanedo.

5 SEMINÁRIO: PRIMEIRAS REFLEXÕES E PROPOSTAS PARA INSTRUMENTO DE TRABALHO Entretanto, antes da Comissão propriamente dita se reunir, seu presidente, Dom J. Peruzzo, convocou um Seminário de estudos que reuniria os membros da Comissão acima referida, outros membros do GREBICAT (Grupo de Reflexão Bíblico-Catequética), alguns membros da equipe de Liturgistas e outros assessores da CNBB. Em e-mail de 28 de julho de 2016 o Pe. Antônio Marcos Depizzoli, secretário, escrevia: “venho, por meio deste, informar-lhe que o encontro de agosto será em forma de Seminário de propostas para a redação do Tema Central da AG dos Bispos de 2017”. Na mesma ocasião enviava a Pauta desse Seminário feita por seus colegas assessores da CNBB em Brasília, com data 28 de junho de 2016, assinadas por Mons. Antonio Luiz Catelan Ferreira, Frei Faustino Paludo e Pe. A. M. Depizzoli. A data do Seminário foi marcada para 13 e 14 de agosto de 2016, a ser realizada no Centro de Formação Sagrada Família, em São Paulo.4 O Seminário de propostas, além dos membros da Comissão, acima referida, contou com a participação dos seguintes estudiosos de diversas procedências, sempre relacionadas com a Iniciação Cristã: Dom Mário Antônio Silva, bispo de Roraima (RR), Dom Carlo Verseletti, bispo de Castanhal (PA), Mons. A. L. Catelan F., Frei Faustino P., ofm, Pe. Edinei da Rosa Cândido, Pe. Jânison Sá Santos, Pe. Domingos Coelho Ormonde Filho, Pe. Antonio Francisco Lelo, Pe.Thiago Aparecido Faccini Paro, Frei Hildo Perondi, ofmcap, Ir.Penha Carpanedo, pddm, Prof. Valmor Silva, Ir. Denilson Mariano, sdn. Justificara a ausência Dom J. Peruzzo, presidente da Comissão e Dom Edmar Peron. Faltaram também, com justificativas, outros membros do GREBICAT que haviam sido convidados.

Situa-se à Rua Padre Marchetti 241, no bairro Ipiranga, São Paulo (SP). É uma grande casa religiosa pertencente à Congregação das Irmãzinhas da Imaculada Conceição, fundada por Santa Paulina, cujo corpo repousa em mausoléu dentro da espaçosa igreja local; nesse centro de formação e encontros serão realizadas outras reuniões dessa Comissão.

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VIVÊNCIAS ARTIGOS VIVÊNCIAS ARTIGOS 6 DEBATE SOBRE A INICIAÇÃO NO CRISTIANISMO PRIMITIVO E PROPOSTAS DE CONTEÚDO PARA O INSTRUMENTO DE TRABALHO Reunidos os participantes do Seminário, no dia 13 de agosto, pela manhã, houve uma palestra do Pe. Ednei da Rosa Cândido;5 discorreu sobre o sentido da Iniciação nas culturas antigas e nas primeiras comunidades cristãs: aí estão as raízes da iniciação que perdurou nos primeiros séculos do cristianismo, esmaecendo-se a seguir por causa do advento da cristandade; na época da Reforma era ponto de discussão e foi retomado no Vaticano II. Nesse início do século XXI torna-se a característica da nova evangelização. Desenvolveu o tema da iniciação abordando tanto o Antigo como o Novo Testamento, as tradições pagãs e judaicas (essênios e joaneus), concluindo: “o processo de IVC é fruto das viagens apostólicas e inculturação nos povos”. O Ir. Nery interveio: ““ao longo da história se perdeu o liame com o judaísmo onde estão nossas raízes; depois: prendemonos à cultura grega e romana que acentuam o conhecimento, a gnosis; séculos depois houve uma demasiada racionalização da fé através da escolástica e do racionalismo... e perdeu-se outros aspectos importantes da iniciação”. Resumo da palestra do Pe. Edinei: O processo de iniciação provém da inculturação nas várias regiões do mediterrâneo, marcadas também pelo helenismo. O cristianismo é um grupo vitorioso entre os greco-romanos e por isso é uma religio nova; criou feições muito diferentes, medrado na Palestina e no helenismo. O final do Antigo e todo Novo Testamento são marcados pelo helenismo; a iniciação cristã gestou-se dentro do judaísmo bem predominante, marcado pela diáspora. Todas grandes cidades respiravam a cultura helenista. Sua interferência na religiosidade pode ser considerada sob o prisma filosófico: a novidade cristã atrai pensadores da época: Justino aceita o cristianismo, Celso o rejeita e Orígenes entra em polêmica com ele. Recebe influência do estoicismo; há cristãos estoicos, como Tertuliano; Virgílio não conheceu os escritos de Isaias, mas retrata suas ideias via estoicismo. Sêneca e o mesmo Paulo recebem influência estoica. A empatia entre o cristianismo e a filosofia da época é tanta que parece ser um fio condutor de tudo... Entretanto, o cristianismo é originalíssimo, como a formulação do Logos spermatikós de Justino. Dentre as correntes existentes, uma marca muito o cristianismo: o platonismo em suas variantes. O primeiro gênero patrístico é a apologia: defesa do cristianismo como religião legítima diante do mundo pagão. Os filósofos consideravam o cristianismo como uma nova filosofia, vinda da Palestina periférica. Abraçar o cristianismo, às vezes significava no IV século abraçar uma filosofia, sobretudo platônica; por outro lado, diante do cristianismo a filosofia não é mais necessária (um imperador chega a fechar escolas filosóficas em Atenas). Tertuliano faz esforços para separar paganismo e filosofia diante do cristianismo, considerado como uma nova religio. O que o cristianismo ganhou e perdeu? Perdeu a matriz judaica por se deixar encantar pelo helenismo; ganhou, integrando várias correntes religiosas mediterrâneas em si mesmo: aí estão as raízes da Iniciação Cristã. Breve diálogo entre os participantes refletiu que o segundo momento do antigo catecumenato era filosófico, doutrinal, ou seja, a catequese... que, séculos depois, reduziu-se ao catecismo doutrinal. Por outro lado, tal catequese, nascida no catecumenato propriamente dito, era muito impregnada de Doutor em teologia e ciências patrísticas pelo Instituto Patrístico Augustinianum, Roma e diretor da Faculdade Católica de Santa Catarina (FACASC). É o fundador da revista Estudos Patrísticos, com 14 tomos já publicados, como também da Associação Brasileira de Estudos Patrísticos (ABEPATRI).

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ARTIGOS VIVÊNCIAS ARTIGOS VIVÊNCIAS liturgia, era mistagógica; posteriormente ficou restringida à vida religiosa nos mosteiros; a mesma liturgia em muitas partes degenerou-se em devocionismo tocando as raias da superstição. Na segunda parte da manhã, Pe. Ednei desenvolveu alguns elementos antropológicos dos povos mediterrâneos, começando antes de Cristo, pois as religiões mistéricas são pré-cristãs. Com Paulo e suas viagens termina a demarcação do cristianismo no Mediterrâneo; um segundo eixo básico, que influenciará toda a história, vai de 800 a 1200 DC. Em diversas partes do mundo, e não só no Mediterrâneo, há uma primavera religiosa: Buda, Confúcio, Zaratrusta..., grandes mestres. Na Palestina começa uma reflexão filosófica sobre a História da Salvação, seguindo a orientação do movimento profético e sapiencial. No helenismo florescem poetas e escritores tragediógrafos. É a humanidade pensante e produtiva: são cinco ou seis séculos que levam a humanidade a um salto qualitativo: na raiz estão as relações humanas. No mediterrâneo o pensamento persa helenista e romano tornam-se movimentos globais. Por volta do séc. II transferiu-se o dualismo ético da consciência para o social. Nesse contexto aparecem as religiões de mistério de origem sobretudo helenista, com influencias do Oriente Médio e se espalha por todo mediterrâneo. Sua origem são ritos agrários que trabalham com as forças da natureza para dominá-las através de um rito: como as forças ocultas da natureza ressurgem, assim também a natureza humana... Isso se impõe até nas esferas oficiais das religiões... Os ritos iniciáticos se consolidam no império romano. A própria Roma se vê invadida por eles: conquistam a simpatia da população e torna-se modismo, como a pietas (dever ou devoção para com as divindades e com a família). Os ritos são os sacrifícios animais, ofertas agrárias, orações, descida aos infernos (Ulisses)...: era exigida uma preparação especial, iniciática, com ritos secretos mistéricos... só assim era possível participar dessas promessas, realidades por eles simbolizados. Saídos da Palestina os cristãos se deslocaram para outros espaços e foi inevitável o choque urbano: politeísmo, ritos iniciáticos... Com as grandes conquistas surge o Império Romano, após a República: a proposta do cristianismo era tímida e desconhecida: monoteísta e nova. A primeira comunidade cristã romana era do núcleo judeu-cristão, formada de leigos. No império a religião pagã tinha um enorme peso: imperador sacerdote, as vestais, os cultos mistéricos, etc., e diante disso o cristianismo aproximou-se e se afastou. Não sabemos muito dos ritos iniciáticos: era tudo muito secreto, de caráter reservado, somente permitido aos iniciados. Três deles sobressaíram mais: Isis, Elêusis e Mitra. Não há muita clareza sobre as experiências iniciáticas, mas os cristãos sentiram-se influenciados por todas elas. Tudo isso acabou por levar o cristianismo a optar por processos semelhantes aos ritos iniciáticos, por exigi-los dos que se apresentavam para assumir o seguimento de Cristo. Havia gente com boa intenção, mas também curiosos e aventureiros. Elementos convincentes para provar que o cristianismo não prescindiu totalmente do paganismo, são dois: 1. O modo reservado, em segredo, como acontecia o culto cristão; tão secreto que coisas estranhas se espalhavam entre o povo: em seus cultos os cristãos comeriam carne humana, cometeriam incesto, canibalismo, não tinham religião pois tinham um deus único... Os mesmos catecúmenos tinham acesso à Palavra, mas não à Eucaristia. Clemente de Alexandria e Orígenes exploram o vocabulário e o simbolismo das religiões mistéricas, empregados nos cultos cristãos. Tertuliano evita a palavra mistério e a traduz por sacramentum. 2. Argumento filológico: a terminologia que chega até nós permeia o cristianismo: iniciação tem sua raiz no vocábulo que designa iniciar nos mistérios: mys, ou myo, ou seja, o fato de esconder; daí provém a palavra mystérion. O latim São Paulo, ano São40, Paulo, n. 149, anop.39, 115-131, n. 148, jan./jun. jul./dez. 2017. 2016.

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VIVÊNCIAS ARTIGOS VIVÊNCIAS ARTIGOS traduziu por mistérium, mas Tertuliano, como vimos, adota o termo sacramentum para traduzi-lo. Sacramento pode ser sinônimo ou não de mistério. Num sentido os dois se correspondem: o modo distinto como entendemos hoje é porque o termo sacramento evoluiu muito... Mistério é muito mais que o sacramento da escolástica. Termina sua exposição, o diálogo continua entre os participantes sobre a realidade do mistério cristão ao qual a pessoa deve ser iniciada. Ulteriores dados históricos são acrescentados como o surgimento de um cristianismo eivado de imperialismo no séc. IV com o advento da cristandade no oriente, e no ocidente o recrudescimento das perseguições. O cristianismo incorporou e usou o gnosticismo, religiões mistéricas como instrumental e domesticaram o gnosticismo, como S. Tomás fez com o aristotelismo. Esclarece-se também a “disciplina do arcano”.

7 ENCAMINHAMENTOS Na parte da tarde o Pe. A. L. Catelan F., assessor para a Comissão Episcopal da Doutrina da Fé, orienta os trabalhos em vista da compreensão mais profunda do futuro Instrumento de trabalho como subsídio da AG. O texto não será para teólogos nem acadêmicos e precisa ser breve. Não deverá ser também só para catequistas, mas para toda a Igreja. Chamou-se a atenção sobre a resistência de algumas dioceses para a Iniciação, pois confundem com o Caminho neocatecumenal. Para superar tal dificuldade, seria melhor falar só de inspiração catecumenal. Pe. Catalán indicou que nos próximos 40 minutos ouviremos pequenas exposições sobre esses temas: O que significa inspiração catecumenal? (Pe. A. Depizzoli), Como a Liturgia tem tratado a IVC? (Frei Faustino P.), Como a Catequese tem tratado a IVC? (Pe. Jânison Sá) e Tarefas e prazos sobre o Tema Central (Pe. A. Catelan). Em sua exposição, o frei Faustino P. mostrou como a Liturgia, ultimamente, tem tratado a IVC. Fez uma apresentação histórica partindo da Sacrosanctum Concilium. A CNBB, a partir da 11ª. Assembleia, iniciou uma série de estudos sobre a IVC e que chegaram até a elaboração do DNC. Foi feita uma memória das iniciativas que no campo prático a Dimensão Litúrgica realizou. A Revista de Liturgia publicou sistematicamente artigos sobre o RICA, o que mostra como a temática está muito presente entre os liturgistas. Pe. Jânison S., por sua vez, apresentou como al Dimensão Catequética tem tratado a IVC. Partiu dos principais documentos Vaticano II, sobre o tema e fez uma memória das iniciativas realizadas no campo prático pela Dimensão Bíblico-Catequética. Ela tem tratado a IVC como caminho de encontro com Jesus Cristo e descoberta do discipulado e da missão. Tem havido um esforço de adaptação do RICA à realidade local e estímulo à prática da Leitura Orante. Em muitas dioceses e paróquias criaram-se Comissões de IVC. A Revista de Catequese publicou sistematicamente artigos sobre IVC, como também multiplicaram-se os cursos de Pós Graduação e Especialização em Catequese ou similares. O cenário é de grandes conquistas. É importante pensar a IVC articulando Animação Bíblico-Catequética e Liturgia. Houve, então, debate para esclarecer a natureza do Instrumento de Trabalho. Acordou-se que o texto seria aberto com um ícone bíblico e muito se discutiu sobre a escolha da perícope; seria muito próprio para nossas finalidades, o texto de Emaus, porém já foi muito trabalhado e refletido nesses últimos tempos, sobretudo durante o Ano Catequético Nacional (2009). Por 122

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ARTIGOS VIVÊNCIAS ARTIGOS VIVÊNCIAS votação ficou escolhido o tema da Samaritana (Evangelho de João). Tal debate continuou à noite, já com levantamento de ideias importantes para cada um das 4 partes do futuro documento, assim estabelecidas: Introdução sobre o ícone da Samaritana, a Realidade da Iniciação na História e seus desafios hoje (ver), o discernimento bíblico-teológico-pastoral sobre a Iniciação (Iluminar) e as Propostas de Ação (agir). Na manhã do dia 14 de agosto, os participantes do Seminário foram divididos em grupos para tratar das quatro partes, com seus objetivos e um primeiro esquema de ideias. Ficou acordado que, introduzindo a III parte (Iluminar), haveria um texto mostrando, que, ao redor da segunda urgência: “Igreja, casa da Iniciação à Vida Cristã” se poderiam articular as outras quatro. Esse último trabalho do Seminário realizou-se primeiramente em grupos e depois em plenário. Assim ficaram constituídos os grupos: 1) Introdução, sobre o encontro de Jesus com a samaritana: Prof. Valmor Silva, Pe. Jânison Sá, Frei Hildo Perondi; 2) Realidade histórica e atual da Iniciação (ver): Pe. Abimar Oliveira, Dom Eugênio Rixen, Lucimara Trevisan e Pe. A. Marcos Deppizoli; 3) Reflexão bíblico-teológico-pastoralcatequética (iluminar): Pe. Luiz A. Lima, Ir. I. Nery e Dom G. Crippa; 4) Propostas de ação (agir): Dom L. Brustolin, Pe. Guilhermo Micheletti e Pe. Domingos Ormonde. Outras pessoas foram distribuídas entre esses grupos. Posteriormente, o resultado das discussões e anotações foram enviadas aos membros da Comissão, responsáveis por dar continuidade ao trabalho. Elas se juntam também às reflexões e sugestões que, dias antes desse Seminário, foram apresentadas pelos participantes da reunião, em Brasília, do GREBICAT (Grupo de Reflexão Bíblico-catequética). O Relatório do Seminário, feito pelo secretário Pe. Abimar O., juntamente com a Lista de ideias e sugestões foi enviado em 16 de agosto para todos os participantes.

8 PRIMEIRA REUNIÃO DA COMISSÃO: 07 DE SETEMBRO DE 2016 Dia 24 de Agosto Pe. A. M. Depizzoli comunica que D. J. Peruzzo convocava uma reunião da Comissão para o dia 07 de setembro, na mesma Casa de Formação Sagrada Família. Nela compareceram todos os membros da Comissão, menos Dom Eugène L. Rixen, Dom Edmar Peron e Pe. Abimar Oliveira de Moraes que justificaram ausência. Para assessorar o grupo compareceu novamente o Pe. L. A. Catelan F., que fez uma memória do Seminário passado (13-14 de agosto) e outros passos até agora realizados. Novamente se reviu o esquema a ser utilizado para o texto, em 4 partes. Com o relatório do Seminário em mãos, todos puderam reexaminar as sugestões apresentadas naquela ocasião. Foram discutidas algumas questões: não partimos do zero, mas muito já se escreveu e se praticou sobre Iniciação Cristã no Brasil. É preciso levar em consideração o tempo secularizado que vivemos e demais elementos do contexto eclesial desde Aparecida em 2007. Seria importante que a Comissão de Liturgia oferecesse subsídios para adaptar melhor à nossa realidade o RICA. A teologia dos Sacramentos de Iniciação precisaria ser mais aprofundada para recuperar a unicidade dos três sacramentos da Iniciação. Sobre a metodologia de trabalho: para quem é o texto? Qual o estilo? Quem escreve são os Bispos! O enfoque é sempre pastoral! Não podemos trair o aspecto histórico e outros preciosos elementos do Estudo 97 da CNBB, sobre a IVC (2009). São Paulo, ano São40, Paulo, n. 149, anop.39, 115-131, n. 148, jan./jun. jul./dez. 2017. 2016.

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VIVÊNCIAS ARTIGOS VIVÊNCIAS ARTIGOS Ainda: o documento é dirigido à Igreja como um todo, às comunidades cristãs, uma vez que IVC é bem maior que catequese; daí envolver a comunidade como um todo como destinatária, interlocutora, em sintonia com a 2ª urgência das Diretrizes Gerais; propor desconstrução de uma mentalidade caduca e seus desdobramentos no novo contexto de nossa época de mudanças, para que o novo paradigma seja implantado. Nunca perder o foco que é a IVC. Discutiu-se ainda os objetivos, o estilo redacional, a terminologia, as fontes, a unidade dos três sacramentos da Iniciação e sua sequencia pastoral hoje, a urgente necessidade de Liturgia e Catequese caminharem juntas nos processos de IVC, etc. Após trocas de ideias e consultas mútuas, foram indicados os primeiros redatores de cada uma das quatro partes, baseando-se no seguinte esquema já aprovado: 1) Encontrar Jesus Cristo: o ícone da Samaritana desenvolvido como introdução e que deverá perpassar todo o documento, como uma “trilha sonora”. Redator: Dom J. Peruzzo. 2) Olhar a realidade da IVC com duas seções: a) avanços – parte histórica; do Vaticano II até hoje; o que está sendo feito atualmente; b) desafios: antropologia, que tipo de ser humano temos hoje para iniciar; linearidade na abordagem: antropológica-cultural-social, religiosa (trânsito religioso), eclesial e pastoral (considerar a piedade popular); considerar o desafio que a Iniciação põe à família. Fio condutor: transmissão integral da fé. Redator: Pe. Abimar O. Moraes. 3) Discernir como Igreja: Iniciação ou instrução? O que entendemos por catequese e iniciação? Iniciar em quê (elemento antropológico)? Fio condutor: Iniciar ao mistério de Jesus Cristo (encontro pessoal e conversão), da Igreja-Comunidade (vivenciar a alegria de ser Igreja) e dos Sacramentos. A unicidade dos sacramentos da iniciação, apresentando-os na ordem teológica. Paradigma: Inspiração Catecumenal; considerar a centralidade do querigma, a participação da família na Iniciação. Alguns desdobramentos: Iniciação e Liturgia (mistagogia); Iniciação e Leitura Orante da Palavra; Iniciação e Doutrina; Iniciação e Discipulado Missionário. Apresentar o novo paradigma: seus quatro tempos e três etapas, conforme o RICA. Redator: Pe. Luiz Alves de Lima, sdb. 4) Propor caminhos. a) Querigma e transmissão da fé: como fazer o pré-catecumenato e as muitas formas de anunciar o querigma, a transmissão da fé em família. Sugestões concretas de operacionalização: refletir e aprofundar o querigma nos diversos níveis e com os mais diversos agentes; ir ao encontro dos afastados da comunidade; oferecer o anúncio a quem nos procura para casamento, batismo, exéquias, sétimo dia; criar estruturas de acolhimento. b) Iniciar na comunidade e conversão pastoral (a comunidade precisa rever sua forma de ser). Sugestões concretas: avaliar o que no nosso trabalho cotidiano realmente transmite a fé, desenvolver processos onde toda comunidade se compreenda como catequizadora; nas atividades cotidianas promover o sentido de pertença à comunidade; em que medida os recursos da comunidade são aplicados à transmissão da fé. c) Aspectos de iniciação litúrgica: integração das entregas do Creio e do Pai-nosso. Sugestões concretas: estudo do RICA nas dioceses, visando adaptá-lo; repensar as formas de preparação ao Batismo; homilias querigmáticas e mistagógicas; atenção às novas linguagens. d) Iniciação, Missão e Caridade. Sugestões concretas: no processo de IVC contemplar as mais diversas experiências missionárias; aproximação aos pobres; conversão ecológica (ecologia integral); estimular presença pública na sociedade em vista do bem comum. Questões metodológicas: leitura orante, psicologia das idades, catequese inclusiva; e) Formação continuada ou permanente. Redator: Dom Leomar A. Brustolin. 124

39, n. 149, 148, p. jul./dez. 2016. São Paulo, ano 40, 115-131, jan./jun. 2017.

ARTIGOS VIVÊNCIAS ARTIGOS VIVÊNCIAS Ficou acordado que o prazo de entrega da primeira versão seria o dia 09 de outubro (depois adiado para 18). Cada um dos 4 capítulos deve ter no máximo 15 páginas; o terceiro poderá conter até 20 páginas, sempre em espaço 1,15 (múltiplos). O título provisório sugerido foi: Iniciação à Vida Cristã na Comunidade dos Discípulos Missionários (foi modificado depois). O Objetivo Geral, também ainda provisório (sugerido por Ir. Nery) foi: “Proporcionar à Igreja no Brasil e, portanto a todos os seus membros, a possibilidade de novos passos em direção à IVC, levando em conta a realidade tão diversa da Igreja e do mundo, tendo como foco a conversão de todos ao discipulado missionário, no dia a dia da vida.” Os quatro redatores entregaram seus textos no prazo estipulado. Além de todas as contribuições acima referidas, outras vieram de várias fontes. O terceiro tema: iluminar, por exemplo, recebeu significativa contribuição de Dom Paulo Jackson Nobrega de Sousa, osb, liturgista do Mosteiro de São Bento de Olinda (e-mail enviado em 26/10/2016), como também, mais ainda da Profa. Rosemary Costa, da PUC do Rio de Janeiro, através de intensa correspondência entre ela e o redator, sobretudo a respeito dos temas relativos à mistagogia. Posteriormente ela foi integrada na Comissão, aportando sempre novas contribuições. Deve-se notar também que o texto enviado a Brasília e analisado pelos Assessores da CNBB, estava repleto de notas, confirmando os diversos temas, como também de abundante bibliografia, que, aos poucos foram sendo tiradas do texto, por exigência do estilo documento oficial. A junção das quatro partes foi considerada a 1ª. versão; essa qualificação não constava do texto distribuído. Ele, naturalmente, ainda não estava numerado. O primeiro texto (ícone da Samaritana) ainda estava incompleto, sendo finalizado, com 9 páginas, durante a segunda reunião da Comissão. O segundo texto (Ver), continha 11 páginas; o terceiro (Iluminar) e o quarto (Propostas) com 28 páginas cada. Foi entregue ao grupo de Assessores de Brasília para apreciação.

9 SEGUNDA REUNIÃO DA COMISSÃO: 28 DE OUTUBRO DE 2016 Pela segunda vez, e no mesmo local (Centro de Espiritualidade Sagrada Família, São Paulo), reuniu-se nessa data a Comissão nomeada pela Presidência da CNBB, agora acrescida com uma presença feminina: Profa. Rosemary Costa, da PUC do Rio e Profa. Lucimara Trevisan, do Regional Leste II. Dom J. Peruzzo introduz os trabalhos: definição da pauta para preparar o tema central da 55ª. AG da CNBB. Será um texto com muitas mãos e mentalidades; não deve ter natureza de estudo acadêmico, mas orientado diretamente à pastoral e que sirva de inspiração para as metas evangelizadoras da Igreja no Brasil. Chama-se também texto mártir pois será submetido a muitos olhares críticos e mudanças. Pe. Catalan, que participa como assessor, resume os passos anteriores; acentua o caráter pastoral e não erudito do texto: nada de “preciosismos”: perífrases, circunlóquios e metáforas... mas linguagem simples e direta. Relembra o esquema aprovado e já desenvolvido na primeira versão pelos quatro membros da Comissão, atribuição essa feita na reunião passada de 07 de setembro; apresenta o resultado da leitura dessa primeira versão feita pelos assessores e técnicos da CNBB em Brasília no período de 19 a 27 de outubro (mais exatamente, no dia 24) cujas contribuições serão partilhadas nessa reunião. Dom J. Peruzzo lembra que, sendo um texto mártir, recebeu muitas críticas e aportes. De fato, Grupo de Assessores de Brasília, fez uma leitura crítica São40, Paulo, anop.39, n. 148, jan./jun. jul./dez. 2017. 2016. São Paulo, ano n. 149, 115-131,

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VIVÊNCIAS ARTIGOS VIVÊNCIAS ARTIGOS dos textos, apresentando inúmeras observações, críticas severas e propondo cortes substanciais, para uma redução dos textos. A seguir o próprio D. Peruzzo, autor do “ícone da Samaritana”, apresentou seu texto ainda incompleto sobre o ícone da Samaritana; foi analisado e recebeu contribuições. Foram lidas algumas críticas escritas sobre as outras partes, relevando sobretudo os drásticos cortes feitos pelos assessores nos textos originais e muitos questionamentos. Formaram-se grupos, coordenados pelos autores, para a continuidade do trabalho: D. Peruzzo ficou encarregado de integrar os novos aportes ao ícone da Samaritana. Grupo 1: Pe. Abimar, Dom Eugène e Pe. Antonio Marcos; Grupo 2: Pe. Lima, Rosemary, Ir. Nery e Dom Giovanni; Grupo 3: Dom Leomar, Mons. Catelan, Lucimara e Pe. Guillermo. Pe. Lima observou que, para maior clareza e memória da gênese desse futuro documento, seria necessário colocar bem claro que esta é a 1ª. Redação ou versão do futuro documento. Após intervalo, os grupos trabalharam o resto da manhã. A partir das 14h00 houve o plenário cujos pormenores estão bem detalhados no Relatório dessa reunião. Nem todos os grupos chegaram até o fim (o segundo, mais longo, não chegou nem na metade). No capítulo do Ver retomou-se o ícone da Samaritana; há dados históricos (catecumenato inicial), mas sentiu-se falta de análise de como hoje se encontra a iniciação cristã no Brasil. Foram sugeridas proposições do Sínodo de 2012 sobre a Nova Evangelização e dados do recente documento 100 (sobre comunidades) quando reflete sobre o mundo atual. Sugere-se contemplar avanços e desafios, não em forma de estatísticas, mas levando em conta, por exemplo, o esvaziamento das Comunidades e, por outro lado, a perseverança de muitos adultos. Quanto ao Iluminar: foi acrescentada uma introdução ao texto fazendo ligação com o ícone da Samaritana. O grupo notou contradições nas observações dos Assessores de Brasília, sobretudo pelo fato de eles não terem levado em consideração as orientações tanto do Seminário quanto da reunião do dia 07 de setembro, que o redator muito utilizou. Pediu-se maior esclarecimento da diferença entre “catequese catecumenal” e “inspiração catecumenal”, e não colocar tanto acento na questão doutrinal, em prejuízo de outras dimensões da renovação da catequese. Outros ponderam que devemos ter sempre presente o leitor, sabendo que conhecer o que a Igreja professa como um grande corpo doutrinal, é o essencial. O que significa hoje conhecimento, ensinamento? O que seria conhecer a partir da Samaritana? Outros apontam para a necessidade de diminuir o volume de textos (o original continha 25 páginas). Ainda: o foco desse capítulo não seria trabalhar os 4 tempos do RICA como inspiração catecumenal para qualquer ação pastoral evangelizadora na Comunidade? Por outro lado, os Assessores de Brasília pediram o seu corte total. As observações e sugestões foram anotadas pelo autor que fará a revisão substancial desse Iluminar, para a 2ª. versão. Quanto às Propostas: foi apresentada a ordem que o grupo 3 considerou as alterações sugeridas. As anotações foram feitas no texto do autor que irá inseri-las na nova versão. O ícone da Samaritana, agora concluído por D. Peruzzo, foi apresentado recebendo aportes e aprovação. Foi pedido que se solicitasse oficialmente junto à Secretariado Geral da CNBB a inclusão dos dois novos membros na Comissão para o Tema Central: Lucimara Trevisan e Rosemary Fernandes Costa. Seria bom reforçar essa Comissão com a presença de mais um liturgista, dada também a pouca participação (por motivos justificados) de Dom Edmar Peron. Ficou também decidido que o Ir. Israel Nery fará uma leitura completa da segunda versão para conferir unidade ao texto, a partir do dia 15 de novembro de 2016, quando o autor de cada uma das quatro partes já terá revisado seu escrito 126

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ARTIGOS VIVÊNCIAS ARTIGOS VIVÊNCIAS a partir das sugestões, seja dos Assessores da CNBB, seja dessa reunião de hoje. Também Mons. Jamil Alves, das Edições CNBB, será convidado a fazer uma revisão gramatical do texto a partir de 28 de novembro. Foram apresentados os próximos passos e calendário subsequente da preparação do texto. Última informação: na reunião de 21 e 22 de fevereiro de 2017 decidiremos se se propõe à AG o pedido de publicar o texto na série azul como Documentos Oficial da CNBB. O texto assim preparado, com o título: INICIAÇÃO À VIDA CRISTÃ no processo formativo do discípulo missionário de Jesus Cristo, com quatro partes, 75 páginas e 285 números, foi enviado em 05 de dezembro de 2016 para todos os bispos do Brasil, para leitura, análise, reações e envio de sugestões. Eles teriam dois meses para isso, pois poderiam enviar contribuições, através de fichas apropriadas, até dia 05 de fevereiro de 2017. E assim foi feito, no meio das solenidades de fim e início de ano, e para muitos, também período de férias.

10 TERCEIRA E QUARTA REUNIÕES: 21-22 FEVEREIRO (S. PAULO) E 03 DE MARÇO DE 2017 (RIO DE JANEIRO) As observações, emendas e sugestões começaram a chegar, totalizando, depois, mais 800 fichas. Os redatores tiveram bom espaço de tempo para rever e reescrever seus textos em base às observações até agora feitas. Conforme calendário já estabelecido, foi convocada a terceira reunião da Comissão nos dias 21-22 de fevereiro, a ser realizada no mesmo Centro de Espiritualidade Sagrada Família, em São Paulo. Nesse encontro faltavam apenas o Ir. Nery, com problemas de saúde e Lucimara Trevisan. Pela primeira vez participa Dom Edmar Peron, liturgista. Pe. A. Depizzoli dá explicações técnicas para o uso do arquivo com inúmeras correções, cortes e sugestões dos Assessores e dos Bispos, que chegaram até hoje. Os participantes são divididos em 4 grupos de 3 cada um para avaliar as propostas feitas sobre a segunda versão, que veio com uma introdução (ícone da Samaritana) e três capítulos (ver, iluminar, propor). O texto, agora apenas com 42 páginas, tantos foram os cortes (a primeira versão continha 57 paginas!) e também recebeu, pela primeira vez, uma numeração sequencial. Há também sugestões impressas e outras em arquivo digital. O trabalho se estende até o almoço. Há discussões variadas, tanto de conteúdo como de redação. Os autores observam que algumas novas propostas de redação pioraram o texto..., por falta de compreensão de quem fez a crítica dos originais. A maioria delas é para cortar, cortar, cortar... diminuir o texto. Alguém observou: “Como é bom ouvir os autores, pois se entende melhor o texto”. Esse trabalho de revisão continua à noite até 21h30. No dia seguinte, após a Eucaristia e café, às 08h15 retomamos os trabalhos em grupos. Dom Peruzzo, uma vez terminada sua parte (ícone da Samaritana) se une ao grupo que trata do Iluminar. Às 10h30 nos reunimos em plenário para partilha . Há o relatório de cada grupo com observações gerais. Ao final, propôs-se eleger alguém do grupo para ler e dar unidade de estilo e cancelar inevitáveis repetições; foi unanimemente eleito o Pe. Abimar. Pe. Lima sugeriu que depois de sua revisão, o texto passasse também pelas mãos da Profa. Teresinha Cruz para uma revisão literária e de linguagem mais moderna e menos “eclesiastiquês” e isso de fato aconteceu depois. Os trabalhos prosseguiram até o almoço e continuaram na parte da tarde no mesmo ritmo de emendas dos textos em vista de uma nova versão. Como o capítulo do Iluminar não ficou concluído, combinamos uma reunião no Rio de Janeiro em 03 de março, da qual São Paulo, ano São40, Paulo, n. 149, anop.39, 115-131, n. 148, jan./jun. jul./dez. 2017. 2016.

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VIVÊNCIAS ARTIGOS VIVÊNCIAS ARTIGOS participariam Dom Peruzzo, Pe. Abimar, Profa. Rosemary e Pe. Lima para conclusão. Essa reunião extraordinária foi em vista do envio do Instrumento de Trabalho para os Bispos e seus assessores, pelo menos um mês antes do início da AG. Também foi decidida, por sugestão de Dom Peruzzo a participação do Pe. Abimar e do Pe. Lima durante a realização da 55ª. AG em Aparecida (SP), como assessores; outros também foram convidados, mas não puderam comparecer. Tal convite viria oficialmente da Presidência da CNBB. Por volta das 17h00 todos retornaram para seus lugares de origem, com os trabalhos já bastante adiantados. A última reunião (parcial) da Comissão realizou-se no Apartamento do Pe. Abimar, na Rua Senador Vergueiro, Flamengo, Rio de Janeiro. Um grupo restrito se reuniu para finalizar o trabalho de redação do Instrumento de Trabalho que há 8 meses a Comissão nomeada para tal já vinha elaborando, recebendo aportes de diversas partes. Estando presentes Pe. Abimar, anfitrião, Dom J. Peruzzo, Profa. Rosemary, Pe. Lima, às 08h40 iniciamos com a leitura do número 122 (antigo 115) da segunda versão, onde havíamos paramos há 10 dias. Pe. Abimar e Pe. Lima faz as anotações e vamos discutindo e revisando o texto em base às contribuições. Os trabalhos são interrompidos às 12h30 para o almoço e pequeno descanso. Retomamos às 14h30 indo até às 18h00 entre discussões, emendas no texto, cancelamentos, redações novas, etc. Assim mesmo não terminamos: ficaram 10 números ainda para serem revistos. Pe. Abimar assumiu a conclusão desses últimos dez números, assim como a revisão final do Instrumento de Trabalho em sua totalidade, enviando, por fim, para a Therezinha Cruz que faria a revisão literária... Com isso ficaram encerrados os trabalhos da Comissão antes da reunião da AG.

11 A 55ª. ASSEMBLEIA GERAL DA CNBB EM APARECIDA DO NORTE (SP), DE 26 DE ABRIL A 05 DE MAIO DE 2017 Na sequência dos trabalhos a revisão do Pe. Abimar foi concluída em 20 de março e a da Profa. Terezinha Cruz dois dias depois. Assim sendo, Pe. A. Depizzoli, juntamente com Dom J. Peruzzo e Pe. Lima, fazem mais uma revisão, aprontando definitivamente o texto para entrar na Assembleia. No dia 31 de março, com 42 paginas, uma longa introdução (ícone da Samaritana), três capítulos (ver, iluminar e propor) e 218 números, o texto é enviado a todos os Bispos brasileiros, Assessores e convidados que participarão da Assembleia no fim de abril e começo de maio. Intitula-se: Iniciação à Vida Cristã: um processo formativo do discípulo missionário de Jesus Cristo. O texto é acompanhado das seguintes indicações de Dom J. A. Peruzzo, Presidente da Comissão Redatora: “Caríssimo irmão, aí segue a versão final do texto [2ª. redação] a ser estudado pela 55ª Assembleia da CNBB prevista para fins de abril de início de maio deste ano. Esta é a segunda versão, mais unificada na sua redação, largamente abreviada, revisada mais de uma vez. Não se pretendeu um documento com todas as completudes que a temática comporta. Afinal não é uma obra para fins acadêmicos. Os redatores trabalharam para elaborar um documento que sirva de estímulo às mais ampliadas lideranças comunitárias e eclesiais, na implementação de caminhos evangelizadores que contemplem experiências consistentes e vivenciais de encontro com o Senhor. Já no documento conciliar Sacrosantum Concilium a Igreja propunha-se a dar passos em direção à IVC com inspiração catecumenal. Em importantes documentos sobre Evangelização e Catequese 128

39, n. 149, 148, p. jul./dez. 2016. São Paulo, ano 40, 115-131, jan./jun. 2017.

ARTIGOS VIVÊNCIAS ARTIGOS VIVÊNCIAS a temática se reapresentou. Passou quase desapercebida nas assembleias do episcopado latinoamericano. Mas, graças a Deus, surgiu com grande força em Aparecida. Com gratidão ao Senhor, há pelo Brasil afora muitas, promissoras e criativas experiências de Iniciação. Mas o caminho é longo. Há que mudar mentalidades, há que crescer na integração entre catequese e liturgia, há que envolver a inteireza das comunidades. Mas o caminho já começou, há muitos sinais. O texto está à sua disposição para seu parecer, sua avaliação, sua contribuição. Pela Comissão para o Tema Central da 55ª AG dos Bispos, Dom José Antonio Peruzzo”. Os bispos tiveram um mês para leitura, anotações e envio de contribuições. Alguns já começaram, logo depois, a enviar para Brasília suas observações e sugestões de mudança em ficha apropriada. Uma vez inaugurada a Assembleia, cujo Tema Central era a IVC, no dia 26 de abril de 2017, nesse mesmo dia à noite reuniu-se mais uma vez a Comissão do Tema Central, agora só com os 5 bispos e os três assessores, Pe. A. Depizzoli, Pe. Abimar O. e Pe. L. A. Lima. Fomos informados da dinâmica da sessão em que nosso tema seria apresentado. O Presidente, D. Peruzzo propôs que, em vez de ele fazer a apresentação de todo o documento, o texto fosse dividido entre os quatro autores que compuseram as várias partes. Discutida a ideia, foi aceita, e retiramo-nos para, cada qual, preparar a própria breve apresentação. No dia seguinte, segundo dia da AG, após a Santa Eucaristia celebrada no grande e belo Santuário de Na. Sa. Aparecida, às 09h35 teve início, no plenário da Assembleia, no grande Centro de Convenções Pe. Vitor Coelho, a apresentação do Tema Central sobre a IVC. Para os que não trouxeram, foi distribuída a cópia impressa da 2ª. versão, ainda com o ícone bíblico como introdução e três capítulos (ver, iluminar, propor) num total de 218 números, sem introdução e conclusão (a conclusão no final se refere apenas ao último capítulo). Todos membros da Comissão sobem à mesa da presidência. D. J. Peruzzo, durante uns 15 minutos, faz uma apresentação geral do tema e como se chegou à redação do atual texto com 42 páginas, bastante enxuto para os padrões dos documentos da CNBB. Insiste no destinatário primeiro, que são os catequistas e outros agentes da IVC; daí sua linguagem mais simples e compreensível e menos teológica. Também, por isso, o texto não é exaustivo, nem pretende tratar todos os temas da IVC, mas permanecer no nível de esclarecimento sobre esse novo, e tão antigo, paradigma de transmissão e crescimento da fé que é o catecumenato ou uma catequese de inspiração catecumenal. Ele pretende, sobretudo, ser um instrumento de animação e impulso para a formação e ação dos agentes da IVC em nossas comunidades. A seguir Pe. Abimar, em poucos minutos traçou o esboço da segunda parte (ver) e o Pe. Lima, com um pouco mais de tempo expôs o Iluminar. Dom Leomar, também sinteticamente, discorreu sobre as Propostas. Sem mais, o Secretário Geral elogia o trabalho realizado pela Comissão e solicita aplausos da Assembleia que acolhe seu pedido. Dom Peruzzo ainda encaminha os 18 grupos, já previamente compostos para a Assembleia, distribuindo entre eles o estudo do texto: grupos 1- 6 estudam as I e II Partes (as menores); os grupos 7-12 a II parte, e 13-18 a III parte. Recomenda não “engordar” muito o documento; mas, todas as fichas serão avaliadas pela Comissão. Nos grupos os bispos leem a própria parte, durante mais de uma hora e contribuem com achegas, acréscimos, substituições de palavras ou frases e outras contribuições anotando tudo em fichas para isso preparadas, também chamadas modos: à medida que leem, também votam, aprovando, recusando ou votando iuxta modum (as observações apresentadas na ficha). Esses modos ou fichas vão sendo entregues durante todo o dia para a Comissão. Ela novamente se reúne e começa a fazer a integração das várias propostas. Tal São40, Paulo, anop.39, n. 148, jan./jun. jul./dez. 2017. 2016. São Paulo, ano n. 149, 115-131,

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VIVÊNCIAS ARTIGOS VIVÊNCIAS ARTIGOS trabalho se prolonga noite a dentro, interrompido apenas para a sessão da tarde. De fato, pelas 17h30, após a oração das Vésperas, tem início a sessão das intervenções em público sobre o documento. O tom geral é de aprovação, mas com muitas observações. Alguns temas discutidos em plenário pelos Bispos: logo de saída contesta-se a “obrigatoriedade” para todo o Brasil de um único modelo de transmissão da fé, o catecumenato...; diante da resistência de muitos frente ao anúncio da Palavra, devemos questionar a qualidade de nossas pregações: olhar antes para nós que para os outros (nº 40). Os aspectos históricos (59-60) precisariam ser ampliados (catecumenato antigo... padroado: 59-60) e aprofundar os quatro tempos e três etapas do catecumenato, apenas nomeadas. Faltam referências de acompanhamento aos já iniciados e à inculturação (populações indígenas, quilombolas). É preciso revisão profunda da pastoral do Batismo. Critica-se, mais de uma vez, o uso negativo do conceito de cristandade (32-35). Diminuir a referência ao ícone da Samaritana. Cancelar a afirmação sobre a “colonização do povo brasileiro” (39). Sobre a ordem dos Sacramentos precisa ser mais aprofundado (213; o 216 está fora de lugar). Pede-se uma pneumatologia mais consistente, tratando-se de IVC. Falta acentuar as falhas morais hoje em dia e não só éticas; sente-se a falta dos 10 mandamentos. Sobre o querigma: falta ampliar seu conteúdo. Não há referências à escatologia. Muitos agradecem o texto propositivo e positivo. Necessidade de a IVC responder aos problemas existenciais das pessoas. Refazer nº 36 sobre “batismo infantil”. Repetições entre os números 34 e 61. Denunciar a forma incisiva com que as seitas nos roubam fiéis. Acentuar mais a centralidade da Eucaristia (Bento XVI) e o valor hoje da Esperança. Pede-se um maior esclarecimento dos conceitos de mistério pagão e mistério cristão (65-76). Todo texto abre para o mundo novo da IVC, mas é preciso antes mudar de mentalidade e respeitar os processos. Acentuar mais a Igreja missionária. Preocupar-se não em produzir novos documentos... mas colocálos em prática. Esse texto é bastante ligado ao Estudo 97 de 2009. Critica-se a expressão “sociedade pós-cristã” (103). O texto valoriza muito bem o RICA; precisaria valorizar mais o Itinerário Catequético. 191: acrescentar o voluntariado civil. Tirar “crianças” dos nºs 192-193. Nos três dias seguintes a Comissão trabalhou empenhadamente para integrar as 467 fichas que chegaram com as várias emendas e/ou sugestões. Todas foram avaliadas e a maioria aceita e integrada na nova versão. Para as que não podiam ser aceitas, sempre se apresentava uma justificativa. Em alguns poucos momentos só os 3 assessores trabalhavam nas emendas, pois os Bispos da Comissão estavam empenhados nos assuntos da Assembleia. Durante esses trabalhos foram produzidos alguns textos novos: a Introdução (atuais nºs 01-10) e a Conclusão (nºs 242-248), como também alguns lindos textos sobre Nossa Senhora; todos da autoria do Pe. Abimar. O Pe. Lima também acrescentou a nota 51 do atual nº 83, esclarecendo melhor o sentido de mistério e sacramento. Atenção especial mereceu a dimensão pneumatológica nos processos de iniciação cristã, assim como a presença da Trindade. Muitos textos foram reescritos. Na última sessão do dia 01 de maio houve a apresentação para a Assembleia da nova e 3ª. versão com todas as emendas feitas. O texto impresso, com o mesmo título da 2ª. versão, e distribuído veio com as correções, mantendo tanto a antiga como a nova versão; daí se explica porque ela está com 53 páginas; igualmente foram mantidas a nova e antiga numeração. Dom Peruzzo, como os outros membros da Comissão, apresentou o novo texto explicando suas principais características, modificações, cortes e acréscimos. Essa 3ª. versão está com 4 capítulos, uma vez que a introdução com o ícone da Samaritana transformou-se no capítulo I. Alguns da Assembleia pedem esclarecimentos. A principal intervenção foi 130

São Paulo, ano 40, 39, n. 149, 148, p. jul./dez. 115-131, 2016. jan./jun. 2017.

ARTIGOS VIVÊNCIAS ARTIGOS VIVÊNCIAS sobre o título: Dom Joaquim Mol propõe alteração para: Iniciação à Vida Cristã: itinerário para viver em Cristo. Dom Leonardo, encaminha a sequência dos trabalhos pedindo especial atenção para a votação, usando sempre os novos números, e não os antigos. Nessa fase do trabalho ainda houve possibilidades de propostas de modificações através dos modos ou fichas. A Comissão trabalhou na noite do dia 01 e todo dia 02 e 03 de maio até à tarde, sobre as fichas recebidas. De novo todas elas foram avaliadas, aceitas, integradas ou rejeitadas, sempre com as devidas justificações. Um dos temas tratados foi a mudança de título: após aceitar a proposta de Dom Joaquim Mol e refletir sobre o conjunto do documento, ficou decidido que o título seria: INICIAÇÃO À VIDA CRISTÃ itinerário para formar discípulos missionários. À tarde do dia 03 de maio houve a última sessão da Comissão. Combinou-se que, se algum questionamento houvesse sobre alguma ficha não aceita ou de alguma formulação não muito clara, seria respondido pelo autor de cada uma das quatro partes. Dom J. Peruzzo finaliza os trabalhos e agradece o esforço de toda a Comissão, principalmente dos três assessores presentes: Pe. A. Marcos, Pe. Abimar e Pe. Lima, pela paixão e dedicação ao trabalho desses dias. O Pe. Abimar, com compromisso para o dia seguinte em Palmas (TO), se retira e retorna ao Rio de Janeiro. Finalmente, no mesmo dia 03 às 18h00 houve a sessão final para apresentação do texto definitivo, já em sua 4ª. versão, com 49 páginas. Dom Leonardo explica que, após a apresentação da Comissão, haverá a possibilidade ainda de destaques: se alguém constatar que a própria sugestão não foi acolhida no novo texto, pode apresentar, nesse momento, um último pedido (destaque) à Comissão. Se ela aceitar, bem; se não aceitar, a Assembleia decide pelo voto. Dom J. Peruzzo esclarece que pequenas falhas redacionais ou erros de digitação serão revistos depois. Diz que a grande maioria das emendas foram aceitas; citou a proposta de D. Valmor que foi plenamente aceita (detalhar mais claramente os passos da iniciação da Samaritana); também justificou o novo título, a partir da sugestão de Dom Joaquim Mol: INICIAÇÃO À VIDA CRISTÃ: itinerário para formar discípulos missionários. A seguir, D. Steiner oferece oportunidade para destaques: apenas um bispo questionou a expressão “pessoas com deficiência”. Foi logo respondido que se trata da expressão oficial usada na Campanha da Fraternidade de 2010. Colocada em votação, a proposta de mudança obteve só 70 votos e foi rejeitada. Acrescentou-se despois que, sendo uma expressão oficial, de legislação federal, não pode ser mudada. Nada mais havendo, o documento foi considerado aprovado, conforme a última votação, com esses resultados: 276 votos positivos, 05 abstenções e 01 negativo. Uma salva de palmas acompanhou essa aprovação episcopal, que, dentro em breve será publicada na coleção Azul da CNBB.

São Paulo, ano São40, Paulo, n. 149, anop.39, 115-131, n. 148, jan./jun. jul./dez. 2017. 2016.

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ARTIGOS ARTIGOS

Orientações para publicação na Revista de Catequese

A Revista de Catequese está aberta para a contribuição de todos os pesquisadores na área de Teologia, particularmente de catequética e teologia pastoral em geral. Os textos podem ser artigos, comunicações, traduções, resenhas, experiências, documentos, entre outros. Os textos, de inteira responsabilidade dos autores, devem ser inéditos, reservando-se à Revista a prioridade de sua publicação. Os autores que tiverem seus textos publicados receberão três exemplares daquela edição da Revista. 1 Os textos deverão ser escritos em português, espanhol, italiano ou inglês. 2 Os textos submetidos receberão a avaliação de dois examinadores (neutros), cabendo ao Conselho da revista o direito de publicação ou rejeição do trabalho. 3 Para a apresentação de artigo, devem ser observadas as seguintes orientações técnicas: formato A4, fonte Times News Roman 12; espaçamento entre linhas 1,5; espaçamento simples entre parágrafos, total de 8 a 10 páginas. Margens: superior e esquerda, 3cm; inferior e direita, 2 cm. 4 As citações diretas no texto, com até três linhas, devem ser contidas entre aspas. As citações diretas no texto com mais de três linhas, devem ser destacadas com recuo de 4 cm da margem esquerda com fonte 11, sem aspas. 5 As referências bibliográficas deverão ser colocadas em notas de rodapé (fonte 10), com dados bibliográficos completos das obras citadas (inclusive com numeração das páginas), isso em cada nova obra. 5.1 Citação de livros CODA, Piero. O evento pascal: Trindade e história. São Paulo: Cidade Nova, 1987, p. 10. 5.2 Citação de periódicos (revistas, jornais, etc.): Alves de Lima, Luiz. A situação da catequese hoje no Brasil. Revista de Catequese 37 (2014)143. [37 é o volume da Revista; 143 é o número]. Forma Alternativa: NERY, José Israel. Formação de catequistas: uma urgência no Brasil. Revista de Catequese 121 (2008), p. 2. [121 é o número da revista]. 5.3 citação de monografia, livros e afins: CALIMAN, Cleto. A eclisiologia do Concílio Vaticano II e a Igreja no Brasil. In: GONÇALVES, Paulo Sérgio Lopes; BOMBANATTO, Vera Ivanise (org.). Concílio Vaticano II: análise e prospectivas. São Paulo: Paulinas, 2004, p. 229-248. 6 A numeração das seções segue o sistema decimal, em algarismos arábicos (como na descrição destas normas). 7 Os artigos deverão apresentar, obrigatoriamente: título, resumo (de 100 a 150 palavras), palavras-chave (no total de 5), introdução, corpo (com subdivisões), considerações finais e referências bibliográficas. 8 Os seguintes dados do autor deverão ser enviados: a última titulação (com indicação da instituição), bem como, atualmente, em qual área atua e onde (instituição ou organização). 9 Os autores serão avisados por e-mail da decisão dos membros da comissão editorial sobre a publicação do texto proposto. 10 Os textos devem ser enviados ao seguinte endereço: [email protected] UNISAL Centro Universitário Salesiano de São Paulo Unidade São Paulo, Campus Pio XI Rua Pio XI, 1.100 - Alto da Lapa - São Paulo - SP. - 05060-001 [email protected] 132

São Paulo, ano 39, n. 148, jul./dez. 2016.

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