Humor e Preconceito. Um estudo sobre o “Politicamente Correto” na criação publicitária.

Humor and Prejudice. A study on “Politically Corection” over advertising creativity. Figueiredo Neto, Celso. Doutor; [email protected], [email protected]

Resumo Existem algumas teorias sobre o funcionamento do humor. Dentre elas a da Superioridade, que explica o humor como uma ferramenta de auto afirmação, como triunfo do humorista sobre o objeto de sua piada. Esse tipo de humor é especialmente presente em chistes de ridicularização, sexualização, agressividade ou de demonstração de inadequação social da pessoa objeto do chiste. Do outro lado observamos a magnificação do discurso politicamente correto na sociedade como forma de proteger minorias e deficientes do preconceito social. Entre essas duas forças, encontramos os criativos publicitários que sempre se apoiaram no humor como ferramenta retórico persuasiva de grande efetividade e que, diante da pressão social, veem-se manietados dessa opção criativa. O presente estudo visa estabelecer limites entre preconceito e humor e propor uma forma de liberdade criativa com respeito à diversidade. Palavras chave: Humor, criação publicitária, politicamente correto, preconceito, persuasão

Abstract There are some theories on how humor on society. One of them relies on superiority as the main reason for the humor as a form of self realization, or triumph over those who are object of the joke. This type of humor is usually related to jokes based on ridicularization, sexualization, agresiveness, or to show inadequate social behavior. On the other hand, we see the growth of the “politically correct” as a wave of social behavior that limits the use of humor, tool traditionally used by advertising copyrighters as an efficient persuasive rethoric form of reaching the consumer. This paper aims to set some bounds for those themes in order to provide a pacifically convivence beetween them. Key words: Humor, advertising creativity, politically correct, prejudice, persuasion

Humor e Preconceito. Um estudo sobre o “Politicamente Correto” na criação publicitária1. Figueiredo Neto, Celso. Doutor; [email protected], [email protected]

Por que rimos?

A vida sem humor não tem graça. Não obstante a tautologia da frase que abre esse texto, o humor tem permeado o cotidiano de um modo que, por vezes, nem nos damos conta de sua presença. É característica do brasileiro transformar em piada os acontecimentos cotidianos, das mais graves tragédias às vicissitudes do dia a dia. Políticos, celebridades, atores, cantores, personas públicas em geral, sem exceção, são vítimas do humor brasileiro que não se curva à autoridade, não reverencia líderes, não respeita códigos de “boas maneiras”. O brasileiro perde o amigo, mas não perde a piada, como assevera uma das expressões mais utilizadas para valorizar a importância do humor na sociedade contemporânea. Humor é um tema que atrai pensadores de todas as correntes em todos os tempos, de Aristóteles, que o enquadra no campo da poética uma vez que serve à representação, ao teatro até os pensadores contemporâneos como o semioticista Umberto Eco em O Nome da Rosa, romance em que o humor é leitmotiv da trama detetivesca em um mosteiro medieval. Smith (1993, p. 51) ressalta que “Aristotle distinction between poetic and rhetorical function seems to be joined in humor, making it one of the more effective means of argument and persuasion in popular culture.”2 Ou seja, segundo o pensador norte-americano, o humor é um daqueles pontos culminantes onde a razão toca a emoção, o logos toca o pathos, a poética toca a retórica e, em nosso entender o motivo seminal para que empreendamos um estudo mais aprofundado do humor na propaganda e as limitações impostas pela sociedade a partir das práticas do comportamento “politicamente correto” passam a ser, no nosso entender, bastante relevantes no universo da persuasão e da criação publicitária.

1

UPM – Universidade Presbiteriana Mackenzie

Para Aristóteles a distinção entre função poética e retórica parece estar reunida no humor, tornando-o um dos meios mais eficazes de argumentação e persuasão na cultura popular. [trad. Nossa] 2

Em busca das origens do humor é possível encontrar diversas proposições com nomes e recortes variados. Em literatura Berger (1976) e depois Buijzen e Valkenburg (2004) afirmam “... three humor theories show up repeatedly: relief theory, superiority theory and incongruity theory.”3 Resumidamente, a teoria do alívio, assentada nos escritos de Freud (1995), entende o humor como uma maneira de aliviar os interlocutores das tensões decorrentes das narrativas ou das situações vividas cotidianamente. Nessa linha, o riso seria uma comporta a ser aberta para liberação de tensões. Seria também a fonte de piadas agressivas, de conteúdo sexual, ligadas a inibições sociais. O segundo tipo de teoria que passaremos resumidamente, pois não corresponde ao fulcro do presente artigo é a teoria da incongruência. Nessa, o humor está associado ao rompimento do esperado de relação entre as pessoas e as coisas, assim objetos absurdamente grandes ou pequenos são fontes constantes desse tipo de humor (típico do personagem Mr. Beam interpretado pelo humorista Rowan Atkinson). Trata-se de um humor cognitivo, ligado diretamente à experiência das coisas, por isso mais simples, popular, infantil até. Esse modelo de humor não pressupõe ambigüidades, duplo-sentidos, ironias ou os demais recursos retóricos próprios de construções comunicacionais mais sofisticadas que podem servir melhor a tipos de humor como o objeto desse artigo, o humor baseado na superioridade. A idéia de que o humor pode ter sua fonte extraída da superioridade de uns perante outros pode ser encontrada nos escritos de Platão e Aristóteles. Segundo Ferguson e Ford (2004) Platão sugeriu que nós achamos ridículo aqueles que não têm auto-conhecimento (por exemplo, aqueles que pensam que são melhores do que realmente são), e daí derivase diversões em sua

a

partir

alusão ao

de tais

humor

infortúnios ou absurdos.

na Poética, Aristóteles

Da

sugeria

mesma

maneira,

que as pessoas

derivam diversões dos pontos fracos ou desgraças alheias, enquanto eles não são muito doloroso ou destrutivos. Atkinson (2007, p. 31) brinca com a ideia de que “The Athenians may have had jokes about how many Spartans it takes to light a torch”4. Desde os fundadores do pensamento ocidental, portanto, temos a expressão da superioridade de uns sobre outros externada de maneira humorada, para que possa ser socialmente aceita,

3

três teorias humor aparecem repetidas vezes: teoria do alívio, a teoria da superioridade e teoria da incongruência [trad. Nossa] 4 Os atenienses podem ter tido piadas sobre quantos espartanos são necessários para acender uma tocha [trad nossa]

diminuindo o potencial de empáfia e prepotência daquele que verbaliza sua condição superior. Aristóteles faz uma curiosa menção sugerindo que a distinção entre comédia e tragédia seria que a comédia representa pessoas como piores do que realmente são, enquanto a tragédia representa as pessoas como melhores do que realmente são. Portanto, ambos Platão

e

Aristóteles argumentaram

que as

pessoas

baseiam

seu

humor

nas enfermidades, fraquezas, sofrimentos e desditas alheios e que o riso é uma expressão de escárnio dirigido ao menos afortunados. Hobbes (1996) ressalta um ponto crucial em relação à teoria da superioridade: a questão da comparação. Segundo o autor, o prazer aferido no sofrimento alheio é resultado de uma comparação interna, na qual o sujeito ratifica que sua situação é melhor da do coitado, objeto da gozação. Essa comparação positiva para o gozador é fonte de prazer e alívio, esse prazer se manifesta no escárnio perante o outro. Talvez seja uma ancestral confirmação de superioridade de um animal sobre o outro, digamos, de um macho sobre seu oponente, o comportamento de superioridade que pode ser observado no mundo animal pela forçada submissão do inferior ao superior na organização hierárquica do bando poderia, eventualmente, ser transportada no mundo dos signos e das significações complexas da civilização humana para o sistema de humor. Assim, ao invés de submeter física e moralmente o inferior do grupo, comportamento que não seria socialmente aceitável, o superior busca reforçar sua preeminência sobre o inferior por meio do humor, uma forma que seria socialmente aceita. Uma variação aceita da teoria da superioridade é a formulada por Wolff ET. AL (1934) que envolve a idéia de pertença. Segundo o autor, uma rica fonte de piadas de superioridade seria o universo dos grupos sociais, grupos de referência, as chamadas “panelinhas” e seus códigos não ditos de pertença e exclusão. Daí as fontes de piadas que enxovalham negros, nordestinos, loiras, judeus, portugueses, caipiras e assim por diante. Existem também as ‘panelas’ cuja seleção se dá por critérios menos óbvios. São os grupos de ‘populares’ no colégio, as turmas de amigos com este ou aquele interesse em comum. Nesses, o humor se tornar mais sutil e talvez mais ferino, porque trafega menos pelo dito e mais pelo não dito, ou ainda que dito, pela ambigüidade dos termos, seus duplo-sentidos, as variadas interpretações possíveis deixando a pessoa, objeto da piada em situação às vezes, duplamente constrangedora, pois foi gozada e, em alguns casos, nem entendeu a piada...

A questão da superioridade, nesses casos se expressa intelectual ou psiquicamente e diante da “piada privada” da qual a pessoa objeto da piada não tem como se defender ou reagir, o agressor, o humorista, coloca-se na confortável situação de “atirar das trincheiras” pois pode atacar sem correr o risco de ser atacado. Piadas com minorias, negros, loiras, portugueses, nordestinos, são clássicos do repertório de piadas “de salão”, ou seja, daquelas piadas consideradas inofensivas entre aqueles que, claro, não pertencem ao grupo dos gozados. É inclusive comum ver uma mesma piada transformada, tendo seu grupo agredido modificado ou para preservar os presentes em uma determinada situação social ou para certos fins comerciais como é o caso da publicidade. É bastante comum o uso da piada, do humor de superioridade, na publicidade brasileira e mundial.

Os dois anúncios acima, de uma empresa de segurança, utilizam-se do sistema de humor por superioridade, brincando com a imagem do cão deprimido por ter sido “dispensado” de suas funções de guarda e estar em situações tipicamente humanas, bebendo solitariamente em um bar ou em uma sessão e terapia. Obviamente há um quê de incongruência que contribui para a construção do humor da mensagem, mas a idéia de fazer rir a partir da situação miserável que vive o cão é o condutor do humor nesse anúncio.

Outro exemplo perfeitamente adequado para o humor de superioridade é a série de anúncios da escola de inglês InLíngua que adorna seu protagonista como se fosse um palhaço no intuito de demonstrar a baixa qualidade de seu inglês.

Convém observar, em especial nessa série a expressão dos antagonistas em relação ao protagonista. Há uma expressão entre séria e risonha, um sorriso no olhar – bastante perceptível no segundo anúncio – que enseja a interpretação da “piada privada” aquela em que o gozado não compreende o significado por não fazer parte do grupo que a formulou, uma expressão à prova de contra-ataque do humor de superioridade.

Humor X ‘Politicamente Correto’ Humor tem sido, na história da propaganda, uma ferramenta de uso constante e de efeito garantido. Vemos em peças publicitárias do século XX o mesmo uso do humor de superioridade expresso com grande liberdade e até com certa ingenuidade. Observado

pelo olhar decodificador sofisticado dos dias atuais, anúncios como os abaixo, são de um humor de superioridade bastante óbvio, mas não menos eficazes.

A questão do machismo que subjaz aos dois anúncios acima faria com que ambos os anúncios fossem prontamente rechaçados nos dias de hoje. Um dos argumentos para tanto seria de que não é “politicamente correto” tratar a mulher como alguém inferior (no caso do das gravatas Van Heusen) ou como mera cozinheira (no caso das batedeiras Kenwood). Haveria, portanto uma sobreposição entre o conceito de humor de superioridade e a noção do que chamamos “politicamente correto”. Para compreendermos melhor a questão, vamos aprofundar o entendimento deste conceito tão difundido, mas tão pouco explicado.

Politicamente Correto5 Etimologicamente, o primeiro uso do termo politicamente correto pode ser localizado em 1793 em uma decisão da Suprema Corte dos Estados Unidos, segundo o Oxford English Dictionary. A mesma publicação também informa que o uso da expressão passa a ser usada cotidianamente6 a partir dos anos 1970. [. . .] the early 1970s, spec. conforming to a body of liberal or radical opinion, esp. on social matters, characterized by the advocacy of approved causes or views, and often by the rejection of language, behaviour, etc., considered discriminatory or offensive. (O.E.D. 335)

Em oposição, aqueles que defendem o politicamente correto [PC] do ponto de vista ideológico, costume que eclodiu nos anos 80, advogam que a prática do PC é

5

No presente texto utilizamos PC como sigla de Politicamente Correto. Essa sigla será utilizada livremente, no masculino ou no feminino, como substantivo ou adjetivo para maior fluidez no texto. 6 início dos anos 1970, esp. em conformidade com uma linha de opinião liberal ou radical, esp. em matéria social, caracterizada pela defesa de causas ou pontos de vista, e muitas vezes pela rejeição do comportamento, linguagem, etc,considerado discriminatório ou ofensivo [trad. Nossa]

anterior, remete ao discurso marxista-leninista, início do século XX, portanto, que já adotava um discurso PC, ao qual filiavam-se aqueles que apoiavam a causa operária. Contudo, se tomado por esse ângulo, poderíamos dizer que a cada época corresponde um modo de falar, de expressar-se e mesmo que haverá termos que claramente designam os prós e contras dos políticos da situação ou da oposição em todas as épocas. Se na Rússia revolucionária os indivíduos se tratavam por camaradas, cento e vinte anos antes, na França revolucionária os indivíduos tratavam-se por cidadão. Os gestos, trejeitos e afetações tão valorizados na corte de Luis XVI poderiam selar o destino de um homem que, por distração, fora gentil com uma dama e por essa razão tenha sido associado com a nobreza e mandado para a guilhotina. Haveria, como nesse exemplo hipotético, comportamento PC em todos os tempos, sob todos os pensamentos políticos e orientações religiosas. O estudioso do tema Jim Stockton, parece sintetizar as questões relativas a essa mobilidade própria da PC e mesmo de sua crescente relevância na sociedade atual no trecho abaixo: contemporary political correctness [PC] has become consumed by our culture's misguided romance with the paltry resolutions of moral relativism, and in the process has all too often proved to be the propaganda vehicle for moral particularism. As a moral phenomena, the evolution of this process finds both expression and acceptance in the media; especially so in what has been loosely christened the "new media." 7(Stockton 2005, p. 179)

Nesses termos adiciono contribuições recentes veiculadas na mídia nacional. A revista Veja de 22 de junho de 2011 traz uma entrevista com a eterna diva do cinema francês, Catherine Deneuve que, em certa altura diz: ele [o PC] é simplesmente ridículo. Estamos vivendo um período terrível na França, com as pessoas usando as menores coisas para acusar as outras de preconceituosas. Daqui a pouco não poderemos mais ter humor, polêmicas,

7 O ‘politicamente correto’ contemporâneo [PC] tornou-se consumido pela visão equivocada da nossa cultura com as resoluções superficiais do relativismo moral, que no processo tem muitas vezes provado ser o veículo de propaganda para o particularismo moral. Como um fenômeno moral, a evolução deste processo encontra tanto a expressão e aceitação nos meios de comunicação; especialmente no que tem sido vagamente batizado a "nova” mídia. [trad. Nossa]

controvérsias. As pessoas estão começando a se autocensurar, e isso não é bom. (Veja 2222 p.35) [grifo nosso]

O redator cômico Marcelo Zorzanelli, um dos responsáveis pelo roteiro do programa Comédia MTV, apresentado pelo humorista Marcelo Adnet, relata em matéria de sua lavra na revista Alfa de junho de 2011, caso ocorrido nos bastidores do programa e que gerou grande revolta pública. Trata-se do esquete Casa dos Autistas. Relata o redator: Ainda naquele ano [2010], Casa dos Autistas era discutido em reuniões de criação de roteiro. O esquete foi descartado incontáveis vezes – e, lembro-me bem, Marcelo Adnet, astro do programa, foi terminantemente contra sua execução – porque não havia nele nenhuma graça além do trocadilho do nome (...) tratava-se apenas de uma idéia boba que ninguém achava que poderia vingar. Mas o quadro foi produzido e levado ao ar. Nele, atores interpretando jovens com autismo gritam, babam, olham para as paredes, fazem caras e bocas estranhas. Tudo dolorosamente sem graça. Meus ex-colegas perceberam o erro e se desculparam publicamente.

Mais adiante o redator prossegue em sua argumentação atacando outros humoristas que não tem pejo de provocar minorias para delas extrair humor a quem refere como humoristas franco-atiradores que dizem (ou tuitam) o que vem à mente, sem qualquer tipo de freio. E continua, citando uma entrevista de Rafinha Bastos que teria dito que os Trapalhões eram “humoristas à frente de seu tempo” e que “não tinham intenção de ferir ninguém” mas que “trocava ofensas com a intimidade de amigos, como uma brincadeira de colégio”. Que Renato Aragão chamava Mussum de “criolo cachaceiro” e recebia em retorno “cabeça chata”. Bem, temos no texto do ex-redator do Comédia MTV uma síntese do debate que a sociedade encerra. De um lado, os que defendem o PC como uma maneira polida de estar socialmente sem desagradar, ou ofender os outros preservando o direto das minorias de serem diferentes do padrão. Especialmente no humor (cinema, teatro, TV, e publicidade) esse comportamento será uma imensa limitação na hora de criar as piadas. De outro lado temos diversos grupos, entre os quais os humoristas do Stand up que, contrários ao PC, estão dispostos a correr o risco de ofender alguns para divertir muitos. Naturalmente há momentos em que piadas não dão certo, e o que pareceria engraçado sai pela culatra e se torna apenas grosseria como foi o caso da Casa dos Autistas e um dos Tuites de Rafinha Bastos que ficou famoso, no dia das mães ele publicou: “Ae órfãos! dia triste hj, hein?”.

Em reflexão mais detida sobre o tema, poderíamos então supor que a linguagem PC pode ter sua origem escavada até as mais remotas situações políticas, em que o uso correto dos termos indicaria, então, a filiação partidária do falante a este ou aquele grupo na competição pelo poder. Desse ponto de vista, importa menos a busca da origem dessa questão, mas, em nosso entender, sua intensidade. Nossa hipótese é de que haveria uma estreita ligação entre controle social e linguagem PC, ou seja, quanto mais livre uma sociedade, menor a preocupação com a PC, e em oposição, quanto mais controlada, maior o rigor da sua PC. Antes de aprofundar o raciocínio aqui proposto, convém fazer um comentário. Utilizamos aqui o termo Politicamente Correto (PC) até porque este é o utilizado nos tempos que correm, mas o mesmo sentido pode ser aferido a outros termos que ocuparam a mesma posição em outros tempos, como por exemplo a ‘patrulha ideológica’ que foi muito utilizada no Brasil da ditadura entre outras designações que podem ser encontradas em todos os países em todos os tempos e sob diversos ventos políticos. Considerando então a questão da intensidade, poderíamos afirmar que quanto mais livre a sociedade, menor a PC sobre ela. Entendemos essa liberdade de modo amplo, por mais chocante que isso possa parecer, ou seja, não nos referimos apenas ao aspecto político da questão, mas a toda gama de liberdades que o PC possa restringir, dentre as quais àquelas ligadas ao humor de superioridade associado às piadas chauvinistas, racistas e assim por diante. Desse modo, entendemos que sociedade livre é aquela em que as pessoas tem o direito de expressarem-se livremente, mas também, e principalmente, aquela em que o nível cultural e de desapego ideológico-emocional for tal que as pessoas aceitem sem ofenderem-se as expressões de humor de superioridade de alguns grupos sobre outros. É natural que se questione essa posição com o argumento de que em uma sociedade, os afãs de um indivíduo ou de um grupo devam ser contidos em nome da harmonia do conjunto, ou que não se pode conceber como uma sociedade melhor aquela que ofenda um grupo ou outro. Nossa visão é um tanto distinta. Sua raiz está questão da ofensa. Ela parte de duas hipóteses: a) os grupos sociais não se ofenderem por brincadeiras baseadas em humor de

superioridade e; b) as piadas não forem efetivamente ofensivas. Naturalmente há um imenso campo interpretativo nessa concepção, mas além do bom senso assentaríamos nossa bússola para definir até onde é humor e a partir de onde pode ser entendido como ofensa nas sábias palavras de Aristóteles, já citadas acima, que reproduzo para maior clareza: as pessoas derivam diversões dos pontos fracos ou desgraças alheias, enquanto eles não são muito doloroso ou destrutivos.

Em publicidade tivemos vários exemplos de uso de humor de superioridade livre dos grilhões da linguagem PC para promover marcas e produtos no passado. Como nos exemplos abaixo.

Nos três casos, temos humor extraído de uma posição de superioridade do homem em relação à mulher. Naturalmente a distância histórica, e as diferenças comportamentais entre a época da publicação desses anúncios e os dias atuais tornam terrivelmente claras as ‘ofensas’ às mulheres que, em outros contextos sociais, eram bem aceitas e consideradas divertidas. Mais recentemente, tivemos momentos de ousadia bancados pela marca de roupas íntimas norte-americana Hanes que veiculou na Índia campanha chauvinista depreciando negros, gays e paquistaneses como demonstram os anúncios abaixo. Desnecessário dizer que a referida marca de roupas sofreu grande campanha de boicote mundial como resultado de uma campanha publicitária veiculada apenas na Índia onde, supõe-se, a referência aos grupos minoritários faz sentido.

A ânsia de controle social derivada da PC levou a fabricante de micro chips Intel a desculpar-se publicamente por ter publicado o anúncio abaixo em que, tentando promover a rapidez – alta performance – de seu chip acabou sendo interpretada pela patrulha PC como um branco com um grupo de negros se curvando para ele.

Igualmente, a Dove teve que retirar de circulação o anúncio com antes e depois, em que a imagem do antes continha uma negra e o depois uma branca. Pergunta-se em ambos os casos, haverá mesmo uma tendência a ridicularizar uma minoria ou não passaria de uma paranóia PC?

Criação com Humor sem PC O Brasil é um país mundialmente famoso por sua publicidade bem humorada, irreverente, alegre. Essa irreverência tangencia o humor de superioridade que, como se viu, encontrase em situação complicada diante da pressão social por uma linguagem PC. Algumas soluções tem sido adotadas. Uma técnica muito utilizada é a hipérbole visual. Nesse caso, mantém-se o sistema de superioridade mas a situação de ridicularização é tão exagerada que o consumidor não se projeta naquela posição, não se ofendendo portanto.

Nesse exemplo de pomada para espinhas, trata-se de um público especialmente sensível ao escárnio público, o adolescente. Contudo, o uso de soluções desproporcionadas para espremer a espinha “desprojeta” o adolescente da situação, deixando-o livre para apreciar a piada, e, quem sabe, adquirir o produto. Outra maneira possível de evitar a linguagem politicamente incorreta é a substituição dos indivíduos por coisas ou animais. Nesse caso, também o afastamento da realidade objetiva por meio da metaforização da piada de superioridade transformada em animais ou coisas, permite que o consumidor possa rir sem a preocupação com a correção social, ou implicações relativas a discriminações de minorias.

A coisificação de uma situação bastante conhecida, que pode ser interpretada ou como uma surra, ou como um estupro coletivo, ganha ares bem humorados e perde seu contexto de agressão social, ainda que esse humor de superioridade carregue em seu bojo a semente da agressão. Ao projetar a situação nas latinhas de refrigerante, o consumidor afasta a situação de si, permitindo-se divertir-se com a imagem. Da mesma maneira, o ridículo gato pelado do segundo exemplo, utilizado para anunciar um salão de depilação, usa do humor de superioridade ao expor desavergonhadamente o o animal em uma posição humanizada representando a pessoa que freqüenta o tal salão e dali sairá sem pelo algum. A ridicularização continua existindo, mas distanciada do consumidor, seja o gato pelado do exemplo acima seja o assaltante amassado do exemplo abaixo. Em ambos os casos o verdadeiro usuário do produto que está sendo ofertado não é o personagem do anúncio. Igualmente, a solução de enfocar a gravata em uma expressiva ilustração para incentivar o

obeso a fazer ginástica também se configura como um caminho interessante, pois trata com humor uma questão bastante sensível, a coragem para enfrentar a balança. Ao substituir por animais ou objetos pelo consumidor, que fica protegido, o medo de ser ridicularizado não afeta o consumidor ou seu grupo social, preservando a criação da ação funesta da patrulha PC.

Como se vê, o humor de superioridade não está condenado pelo PC, mas está sim bastante limitado uma vez que as opções mais ousadas para uns, grosseiras para outros, vão, aos poucos sendo limitadas pelo discurso PC. Há também que debitar um tanto dessa limitação aos departamentos de marketing das empresas que, em sua maioria, rejeitam estratégias de comunicação mais ousadas ou que abracem claramente um público alvo descartando descaradamente outro. Em uma época de forte segmentação de mercado, seria mais que natural que marcas escolhessem os grupos aos quais se associarem e dispensassem outros, é o que na anglicista linguagem do marketing se costuma chamar de trade off. Entretanto os gestores das marcas nacionais não tem sido firmes o suficiente para cortar grupos de consumidores em troca da fidelidade de outros. Exemplo claro disso é o novo veículo da Fiat, o 500, que na Europa foi deliberadamente associado ao público gay. No Brasil, as vésperas da Parada do Orgulho Gay, época em que escrevo este artigo, não se vê absolutamente nenhuma ação da empresa em favor de seu

carro. Abaixo a série de anúncios criados na Espanha para o público gay segmentado, inclusive, por estilo.

Humor de superioridade, com ridicularização. Feito com bom gosto mostra que não é agressivo, não é politicamente incorreto, não deve ser proibido nem evitado. Tabus são criados no ambiente publicitário e passa-se a eliminar hipóteses criativas sem que essas sejam devidamente examinadas. Há uma limitação auto-imposta, tamanha a pressão social do PC, e muitos criativos e gestores de marketing incorporam essas limitações impedindo a si próprios e às marcas que gerenciam de expressarem com adequação e bom humor sua segmentação de mercado.

A premiada campanha Be Stupid da marca Diesel de jeans é um exemplo desse trade off no qual descarta-se um grupo de consumidores, no caso aqueles racionais que planejam sua vida de modo lógico e sem emoções. Estes certamente irão achar esta campanha ‘imbecil’ e rejeitar a marca de jeans. Esta escolha deliberada irá agradar o grupo das pessoas mais emocionais, que gostam de viver a vida intensamente, de fazer maluquices, de rir, de divertir-se. Mais uma vez, nota-se a presença do humor de superioridade com ridicularização e, contudo, sem demérito algum.

O remédio mata mais que a doença. Após essa jornada pelo universo do humor, em específico do humor de superioridade e de enfocar a contraposição da tendência politicamente correta de controle social que restringe o uso do humor de superioridade porque torna a todos extremamente ofensíveis, chegamos a algumas conclusões que entendemos dignas de nota. Em primeiro lugar, nossa pesquisa nos levou a concluir que humor de superioridade é próprio da espécie humana. Não cabe discutir se devemos ou não tê-lo. Ele substitui comportamentos mais agressivos de determinação de dominância do grupo. Verificamos que o controle social exercido pela prática do PC é uma questão que pode ter existido em qualquer época, e consideramos fundamental a questão da intensidade desse controle. Entendemos que mais livre é a sociedade com menor controle PC. Em pesquisa à publicidade antiga verificamos que peças hoje entendidas como profundamente ofensivas às mulheres eram vistas como engraçadas há 50 anos e notamos como a publicidade se utilizou, ao longo do tempo do humor de superioridade, mas que foi diminuindo seu uso na medida em que foi sofrendo a perseguição PC. Descobrimos que uma das maneiras de fugir à PC é substituir pessoas por animais, coisas ou mesmo outras pessoas que não os verdadeiros usuários do produto anunciado, esses são passiveis de ridicularização. Finalmente notamos que é necessário segmentar públicos alvo, e ao fazê-lo, é possível ridicularizar o público escolhido, com bom senso, de modo que este não se sinta ofendido. O curioso é que com medo de assumir posturas ousadas como essa a maioria das marcas simplesmente rejeitam o uso do humor de superioridade por medo da patrulha PC, e, nesse caso o remédio acaba matando mais que a doença, pelo menos criativamente, as travas impostas aos criativos são tantas que muitos deles nem aventam a hipótese de criar por este caminho. É preciso lembrar que todo processo criativo, e a criação publicitária aí incluída, é um processo de experimentação, é um constante arriscar-se, é uma sambar na corda bamba. Trabalhar sob censura prévia, mesmo que essa censura seja social, ou gerencial, exarada pelo departamento jurídico, ou mesmo o marketing das empresas só irá levar as agências de propaganda a desempenhos medíocres. Em uma época em que exige-se performances sempre superiores, é importante lembrar que para que se obtenha resultados superiores é também necessário arriscar, e esse risco não está apenas na distribuição da verba de

marketing. O risco inteligente está na estratégia de comunicação. Ela começa com a liberdade criativa, a possibilidade de ousar, de seguir caminhos que os outros não tem coragem de trilhar. O humor de superioridade é um excelente exemplo disso.

..... Bibliografia ARISTÓTELES. Arte Retórica e Arte Poética. 15a ed. Rio de Janeiro: Ediouro, 2002. ATKINSON, Camille. Three Philosophers Walk Into a Bar. Wilson Quarterly [serial online]. Summer2007 2007;31(3):76. Available from: Humanities International Complete, Ipswich, MA. Accessed June 27, 2011 BERGER, Arthur A. Anatomy of the Joke. Journal of Communication, 26: 113–115. 1976. Buijzen, M.A. and Valkenburg, P.M. Developing a typology of humor in audiovisual media. Publications of the Universiteit van Amsterdam. Netherlands. 2004. ECO, Umberto. O Nome da Rosa. Ed. Record 2ª Ed. São Paulo 2009. FORD, Thomas E. and FERGUSON, Mark A. Social Consequences of Disparagement Humor: A Prejudiced Norm Theory Pers Soc Psychol Rev February 2004 8: 79-94 FREUD, Sigmund. Os Chistes e sua Relação com o Inconsciente. 2ª ed. Imago, Rio de Janeiro, 1995. HOBBES, Thomas. Levithan. New York: Oxford University Press. 1996 Oxford English Dictionary. Oxford University Press. Oxford 1989. SMITH, Stephen A. Journal of American Culture (01911813), Summer93, Vol. 16 Issue 2, p51, 13p STOCKTON, Jim. The History Of Political Correctness. International Journal of the Humanities, Feb2008, Vol. 5 Issue 11, p159-162, 4p TRIFONAS, Peter Pericles. The aesthetics of textual production: reading and writing with Umberto Eco. Studies in Philosophy & Education; May2007, Vol. 26 Issue 3, p267277, 11p WOLFF, H. A., C. E. Smith, and H. A. Murray 1934 The psychology of humor: A study of responses to race-disparagement jokes. Journal of Abnormal and Social Psychology 28, 341–365.

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