EUS, PERSONAE E GRUPOS

A CRIAÇÃO DE UMA NOVA FORMA DE REPLICADOR; OU, DO PROBLEMA DA LIBERDADE HUMANA

R. Sá-Saraiva EUS E PERSONAE

Nos capítulos anteriores temos vindo a desenvolver a ideia de que o Eu-sujeito corresponde ao ponto de referência interno, sendo por isso muito antigo em termos filogenéticos. Esse eu é instável, sempre sujeito a alterações motivacionais e emocionais e, não fora o facto de termos memória episódica, não teríamos necessariamente uma ideia estável de que somos sempre o mesmo Eu. A única coisa comum nesse eu, além de que as nossas motivações se repetem (sentimo-nos zangados ou ternos sempre da mesma maneira) é o facto de ser o espaço da subjectividade. Quer dizer, é um plano da experiência diferente de tudo o resto: o que nos sentimos num determinado momento é diferente daquilo que percepcionamos fora de nós porque tem a qualidade de ser subjectivo, de ser o espaço em que sinto. Como essa qualidade está sempre presente, independentemente da motivação activada, há uma sensação de continuidade do Eu. Que esse Eu sujeito é instável provam-no vários exemplos que sentimos quotidianamente: podemos, em dois contextos diferentes, ter sentimentos e opiniões diferentes relativamente ao mesmo objecto. Por exemplo, em todas as relações continuadas no tempo há momentos em que gostamos muito do outro e momentos em que o detestamos; nas relações amorosas essa oscilação é, naturalmente, maior, porque é maior a intimidade. Mas sentimos o mesmo relativamente a coisas muito menos importantes: se tivermos muita fome comeremos alimento que em condições normais acharíamos intragável. E se tivermos fastio («falta de fome») nem os pratos que normalmente nos agradam são apetitosos: tudo parece repelente. É certo que a maior parte das pessoas não tem consciência desta oscilação permanente das motivações e emoções do Eu sujeito. Sabe-se (Markus, Reff ) que há um mecanismo de auto-congruência que nos faz projectar os nossos sentimentos presentes no passado e no futuro. Daí vem a situação muito curiosa de duas pessoas amigas que se zangam, dizerem que na realidade nunca gostaram uma da outra, e depois se reconciliam, afirmando que «estavam fora de si» quando se zangaram. «Fora de si» quer, literalmente, dizer: «eu estava num estado motivacional diferente do presente, estado esse que não reconheço agora como meu». Não poderia haver uma demonstração mais clara de que o Eu-sujeito está constantemente a alterar-se. Opusémos, nos capítulos anteriores, dois conceitos: o eu sujeito e o eu objecto, aquilo que eu penso de mim. Esse eu objecto não ocorre, que saibamos, em mais nenhuma espécie e deriva, como defendi, da capacidade de o meu eu sujeito tomar uma posição de espectador relativamente ao meu comportamento e ao meu corpo. É dessa maneira que se vai construir uma persona, isto é, uma espécie de apresentação de nós próprios. Essa persona é muito mais fácil de conhecer do que o Eu sujeito. De facto, o eu sujeito é apenas um puro espaço de representação, é o espaço do Eu Verbo—tenho

frio, tenho sede, detesto A, adoro B. Não é fácil, se é que é sequer possível, o eu sujeito ter como objecto o próprio eu sujeito—como já vimos, exactamente da mesma maneira que o olho não se vê a si próprio. De maneira que, a não ser por exame detalhado dos nossos estados emocionais e motivacionais e das memórias desses estados (o que é, normalmente, considerado malsão pelo menos desde Kant), não nos conhecemos bem como sujeito. É-nos, contudo, muito fácil conhecer-nos como objectos. Temos aparência física, pertencemos a uma classe de outros objectos, somos objectos agentes, temos várias propriedades de acção e temos um nome. Em suma, somos um objecto – daí o nome, Eu-objecto. Como já vimos, um objecto tem de ter certas características: é uma coisa que se destaca contra um fundo e tem várias propriedades relacionais (as relações anafóricas de que falámos antes). Dado que funcionamos num mundo predominantemente social, conhecemos sobretudo as nossas propriedades relacionais em contexto social. AS PERSONAE

Aquilo que somos ou pensamos ser (persona) é determinado por muitos factores diferentes: as nossas próprias características motivacionais e emocionais, os reforços que recbemos durante o nosso desenvolvimento e, o que é novo em termos evolutivos, os modelos de conduta. O desenvolvimento psicológico foi tratado por muitos autores e há, actualmente, uma boa base para afirmar que as crianças (como os animais) diferem entre si em reactividade. Qualquer que seja essa reactividade, há processos de reforço diferencial que dirigem o comportamento, tal como nos outros animais. Dando um exemplo simples, os mamíferos, quando jovens, têm de aprender a moderar as dentadas que dão (o processo ocorre por condicionamento operante simples: se a cria der uma dentada mais forte é ameaçada por um adulto, ou mesmo mordida sem violência; aprende assim a inibir as dentadas com mais força). Da mesma maneira, uma criança tem de aprender a moderar a satisfação dos seus desejos: ainda que queira brincar, terá de fazer os trabalhos de casa, e receberá reforços positivos por isso (da parte dos adultos) e negativos se não inibir esses impulsos. Contudo, este período de condicionamento simples dura relativamente pouco tempo: muito cedo as crianças começam activamente a imitar modelos mentais de como se deve proceder. Sem entrar nos detalhes da psicologia do desenvolvimento, que não nos interessam aqui, será esta fase de modelagem comportamental e emocional que nos interessará agora.

modelos de conduta e ciclos funcionais aprendidos Todos aprendemos modelos de conduta: creio que Kohlberg não tinha razão quando dizia que há um estádio 1 em que as pessoas se orientam apenas por condicionamentos; esses casos correspondem provavelmente a raridades associadas a patologias sociais, cognitivas e emocionais. É muito mais frequente que se copiem modelos de conduta e até de expressão de emoções. É assim que todos nós, num determinado momento, quisemos «ser como A». Nesse caso, examinamos o nosso comportamento e comparamo-lo com o comportamento dos nossos modelos. Além do comportamento, comparamos, parece-me, o que sentimos com o que pensamos que o nosso modelo sentiria. Como vimos em capítulos precedentes, quando observamos um comportamento inferimos, por teoria da mente,

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estados mentais que lhes estão a montante. Assim, se verificamos que estamos a «agir mentalmente», quer dizer, a sentir de maneira diferente da que esperaríamos que o nosso modelo sentiria em condições semelhantes, tentaremos inibir esse sentimento por exemplo, ter medo numa situação perigosa quando o nosso modelo nunca mostra medo nessas situações. Dessa maneira criamos traços que desejamos em nós: no exemplo, «ser corajoso», mas poderia ser qualquer coisa: ser honesto, ser espertalhão, ser frontal, ser maquiavélico. Tudo depende dos modelos que tomamos como exemplo. Não é apenas isso que aprendemos dos modelos e dos processos de condicionamento referidos antes. A não ser que nos limitemos a fazer pose, teremos de funcionar com os outros agentes, com as outras pessoas. Aprendemos, assim, como agir com os outros. Veremos que estas aprendizagens determinam a socialização das pessoas e o funcionamento social. Por agora é suficiente dizer que numa sociedade de caçadores, por exemplo, os vários caçadores têm de aprender a modelar as motivações e emoções dos modelos mas também a sua competência nas actividades que fazem. Isto é, têm de adquirir as formas de interacção com o ambiente dos seus modelos; são essas formas de interacção que fazem que os modelos o sejam, na medida em que se toma como modelo, principalmente, pessoas dominantes no grupo (Reff ). Em todas as sociedades humanas, mesmo as mais simples em termos tecnológicos, há uma série de sequências de comportamento que devem ser aprendidas: como cumprimentar o outro, como se comportar perante um irmão e um inimigo, como fazer uma faca, como apanhar bagas, como fazer um arco, como matar uma presa. Na nossa cultura essa fase de aprendizagem é excepcionalmente longa porque as pessoas têm de aprender muitas coisas que são cumulativas: assim, é preciso aprender a ler e a escrever e a pensar para poder estudar filosofia; é preciso compreender Platão para depois compreender o idealismo; ou, na mesma ordem de ideias mas com um exemplo diferente, é preciso aprender a ler para aprender matemática que é necessária para se aprender química. Como o estatuto dos adultos tende a ser proporcional àquilo que sabem fazer (ou pelo menos é assim nas sociedades em que o estatuto não é herdado) a fase de educação demora muitos anos, para lá até da altura em que os indivíduos se tornam biologicamente adultos (depois da puberdade). Em resumo, temos de aprender ciclos funcionais novos: como fazer pão, como dar aulas, como construir pontes. A identidade Além de tudo isso, e num plano talvez mais central, um indivíduo tem de aprender a localizar-se socialmente, isto é, a «saber quem é» em termos das interacções que mantém com outros membros. Em várias sociedades que conhecemos essa identidade funciona através de um princípio muito simples, que pode ser ilustrado com um provérbio árabe: eu contra o meu irmão; eu e o meu irmão contra o meu primo; eu, o meu irmão e o meu primo contra o estrangeiro (o processo é bem capturado em vários estudos de antropologia cultural, de que saliento o de Evans-Pritchard, sobre os Nuer, REFF). O que se passa é que julgamos mais próximas de nós as pessoas mais próximas dos nossos modelos e, portanto, da nossa persona. Admitindo que havia ainda uma sociedade dividida em clero, nobreza e povo, um membro de cada um dos grupos sentir-se-ia mais próximo da classe social a que pertence (de onde a ideia da luta de classes: cada um identifica-se com a classe a que pertence e faz jogo por essa classe). Essa iden-

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tidade traduz-se, portanto, num grupo de pertença que tem nome, e numa identidade pessoal que tem nome também (o nosso nome). Associados a essas identidades nominais está uma série de competências que devemos ter se quisermos ser merecedores da nossa identidade como vimos acima com a aquisição dos ciclos funcionais aprendidos (em outras culturas há rituais de iniciação precisamente para criar identidades; nós também os temos: a formatura, o doutoramento, a licença de actividade profissional). Temos assim que a Persona é uma entidade complexa que corresponde àquilo que sabemos e que mostramos de nós: nome, características pessoais, e sobretudo propriedades relacionais, isto é, o que eu tenho de saber fazer em cada contexto. A persona traduz-se, assim, em muito mais do que apenas conhecimento que tenho de mim: é também, e talvez sobretudo, um conjunto de instruções para o meu comportamento em sociedade. INTERACÇÃO ENTRE MOTIVAÇÕES DO EU E DA PERSONA

Consideremos agora a interacção entre as motivações do eu sujeito e a persona. As motivações do Eu-sujeito não são fundamentalmente diferentes das dos outros animais, exceptuando a necessidade de congruência nos campos social e físico (o que nos faz procurar explicações que liguem todos os factos de um dado conjunto, ou Gestalt; esta motivação, ainda que não considerada como tal, tem sido posta em evidência vezes sem conta; Gazzaniga chegou mesmo a considerar que dependia de um módulo). Esta última motivação terá importância na persona, como veremos adiante, mas por agora concentremo-nos nas motivações que partilhamos com os outros animais e que estão mais bem estudadas na nossa espécie. Na medida em que a persona determina as formas de expressão, pode compreender-se que as emoções e as motivações são muito afectadas. Trataremos brevemente (visto que os temas são tratados em mais detalhe em outros capítulos) da agressão/dominância/submissão e da sexualidade/cooperação.

agressão, hierarquias e sexualidade Como vimos em capítulo anterior, a agressão é a forma mais fundamental de relação entre os organismos. Quando os animais têm de se encontrar surgem formas de contra-agressão, baseadas na submissão e no anúncio de que não se vai atacar. Com maioria de razão, nas espécies sociais, o comportamento baseia-se na díade agressão/submissão. Um dos melhores exemplos disso são os primatas (ver, por exemplo, Chimpanzee Politics e Aggression Management, por Franz de Waal) e os lobos (ver Mesch, Wolf social behavior): as relações de cooperação entre os membros baseiam-se numa motivação básica de procurar a companhia do grupo mas, dentro dele, as relações são genericamente determinadas pelo par agressão/submissão.1 A dominância nos grupos sociais tem como função evitar a agressão violenta: os animais hierarquizam-se em termos de acesso aos recursos (parceiros sexuais, locais de repouso, alimento, liberdade espacial) em termos do critério mais evidente: a força. Na nossa espécie tudo isso ocorre, mas além disso auto-limitamos a nossa agressão 1 A esse respeito pode ser interessante chamar a atenção do leitor cinófilo («que gosta de cães») para o facto de que, quando um cão está a ser «querido» está, de facto, a dizer ao dono que ele, cão, é subordi nado; e que, quando se tem uma atitude muito afectuosa e tolerante para com o cão, pode ocorrer que o animal tente chegar à dominância (com todos os problemas de agressão que isso implica, incluindo agressões graves por parte do cão).

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de maneira a sermos fieis aos modelos da nossa persona. Esses modelos podem ser muitíssimo diferentes consoante as culturas. Assim, na Grécia Antiga, as relações entre os homens eram brutalmente agonísticas: um homem devia esmagar o seu adversário (talvez precisamente por isso tenham surgido formas de governo novas: de outra forma haveria guerras de poder contínuas). Em geral, nas sociedades guerreiras, esse traço encontra-se presente. Na cavalaria medieval (que tinha origem nos costumes guerreiros dos povos bárbaros) os cavaleiros não cooperavam: cada um deveria ter a maior glória possível no campo de batalha. Um exemplo interessante dos efeitos desta característica ocorreu na batalha de Aljubarrota: o exército castelhano, muitíssimo maior do que o português, usou a táctica individualista para atacar. Nós usámos uma táctica cooperativa, funcionando o nosso pequeno exército como um todo. Assim ganhámos uma batalha que parecia impossível não perder. Mas em culturas menos brutais há modelos mais controlados da agressividade: todos sabemos que é mal-visto agredir verbalmente outra pessoa sem sermos substancialmente provocados, e a agressão física é sempre mal vista, como coisa de selvagens e bêbedos. Mesmo o facto de a pessoa se vangloriar ou, fora de contextos específicos, chamar demasiado a atracção sobre as suas qualidades tem uma conotação negativa.2 Isso não significa que as nossas motivações mais básicas sejam alteradas: continuamos a sentir ódio e vontade de agredir quem nos provoca, mas exprimimos essas motivações segundo um código que pode ser muito afastado da biologia: um aviso ao outro de que está a ultrapassar os limites aceitáveis, um processo em tribunal, a ironia, o sarcasmo, até a superioridade de não responder. Ao proceder desta maneira sentimo-nos satisfeitos connosco próprios: fomos congruentes com o papel, e seremos reforçados pelos outros membros do grupo, que acharão o nosso comportamento correcto e o do agressor incorrecto. O agressor perderá, então, quer em termos de auto-estima quer em termos da estima dos outros. De modo que, paradoxalmente, não ser agressivo pode funcionar como uma forma de agressividade, permitindo-nos ganhar um conflito e humilhar quem agrediu (humilhar o outro é um acto agressivo). Desta maneira as culturas com personae menos agressivas conseguem uma muito maior cooperação entre os membros; enquanto que os outros animais estão continuamente em lutas de hierarquia que podem ser bastante brutais, nós podemos atenuar a agressividade se aceitarmos personae que controlam a agressividade explícita e que nos permitem o jogo da dominância sem que haja ruptura entre os implicados nesses jogos. Nos outros animais a sexualidade encontra-se estreitamente relacionada com a dominância (há hierarquias de dominância diferentes e mais ou menos independentes para machos e fêmeas). Connosco isso também ocorre, mas há outro tipo de limitações à agressão. Uma sexualidade baseada na dominância e na agressão, como nos outros animais, implicaria um grau de desconfiança e de hostilidade impeditivas da cooperação sistemática que caracteriza a nossa espécie. Assim, os processos agressivos ocorrem, mas são temperados pelos sistemas de acasalamento, que regulam o acesso aos parceiros sexuais. As soluções encontradas pelas diferentes culturas são muitíssimo diferentes entre si, mas têm em comum precisamente regulamentar o acesso aos parceiros sexuais e assim diminuir a agressividade e a competição. Essa diminuição da agressão faz-se pela regulamentação do acesso ao acasalamento: com quem se pode e 2 Também isso está a mudar. No passado era assim. Actualmente, em que as pessoas se pretendem individualistas e competitivas, é possível chamar a atenção para as próprias qualidades.

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não se pode ter comportamento sexual. Dessa maneira se garante que há parceiro para cada pessoa (ou pelo menos tende-se para isso) e que não há fricções entre membros do grupo: não é coincidência a cópula com membros do grupo já acasalados ser quase sempre muito severamente punida (ver Fisher, Reff ).3 Em termos de personae, isso traduz-se num padrão que se pretende seguir (por exemplo, ser fiel), uma linha e conduta com que nos queremos conformar.4 No acasalamento humano há, pois, inibição das tendências biológicas que trariam conflitos dentro do grupo (copular com o maior número de fêmeas, copular com os melhores machos). Assim se consegue uma harmonização geral do grupo, que estaria reduzido a lutas constantes se não houvesse essa inibição.

persona e «dever ser» Não é possível nem necessário falar de todas as motivações (de resto, não é possível fazer uma lista das motivações humanas), mas vale a pena recordar que há as mesmas regras de construção da persona relativamente a quase todas elas. Assim, escolhemos uma casa (abrigo) que reflicta a nossa personalidade (a nossa persona), alimentamo-nos de maneira congruente com a persona (há complicados tabos alimentares em todas as culturas), protegemo-nos do frio e do calor (roupa) também de acordo com a persona e assim por diante. Todas as nossas motivações seguem, portanto, instruções sobre «como deve ser». A persona cristaliza-se, assim, numa série de instruções de comportamento e até de sentimentos que constituem uma ética: como nos devemos comportar e sentir perante as várias situações que iremos encontrar. Como já referi, esta ética (ou, se preferirmos, a persona) é reforçada de duas maneiras: de «dentro», quando nós achamos que nos como comportámos «como deve ser» e de «fora», porque os outros sentem admiração pela maneira como nos comportámos porque partilham os mesmos modelos que nós. Há, assim, um espectador interno do nosso comportamento, cujos critérios de avaliação foram aprendidos e que modificam e alteram as puras motivações animais do eu sujeito. Isto é, o eu sujeito exprime-se sempre através de um critério ético, critério esse que determina a persona e as próprias categorias de juízo que o eu sujeito faz sobre a persona.5 3 Biologicamente esperar-se-ia que o padrão fosse diferente para machos e fêmeas e efectivamente assim é: os machos podem ser infieis fora do grupo; as fêmeas são, geralmente, mais vigiadas e espera-se delas fidelidade em geral (há excepções regulamentadas). 4 Este aspecto pode ser menos evidente no nosso tempo, porque as personae sexuais estão a alterar-se: pretende-se alterar a persona da fêmea (para não falar já das questões da sexualidade homoerótica) no sentido de que ela possa ser expressa com menor repressão. Mas é, talvez, em termos do comportamento dos machos que a influência das personae é mais clara. De facto, em alguns grupos sociais, há duas personae muito distintas na mesma pessoa: a persona do macho cumpridor, respeitador dos votos; e a persona do macho predador, que copula secretamente o maior número de mulheres possível. Curiosamente, as duas personae, ainda que opostas, coexistem. O processo é menos raro do que se pode pensar. Como vimos, há personae diferentes para a mesma pessoa em diferentes contextos; e não é raro que o mesmo comportamento seja avaliado de duas perspectivas completamente diferentes. Por exemplo, nos Kurnai, na Austrália, ocorre com muita frequência que os casais tenham de se formar contra as regras do acasalamento (porque os tabos de inscesto limitam os parceiros sexuais de tal maneira que é frequente não haver possibilidade de acasalamento). O que sucede então é que um par foge para acasalar. Esse par, por ter quebrado o ritual, é perseguido e será morto se for apanhado. Há, contudo, um local onde o par não será perseguido. Durante um ano o casal vive nesse local e, se conseguir reproduzir-se nesse período de tempo, será reintegrado no grupo social. O que é interessante é que os perseguidores do par são, muitas vezes, antigos fugitivos. Como se vê, duas personae opostas coexistem relativamente ao mesmo estímulo. 5 Isto implica que haja uma sucessão de três instâncias: um eu sujeito como nos animais, os critérios de avaliação que, sendo ainda parte do eu sujeito, são impostos de fora, e um eu objecto (persona) que é avaliado pelo eu sujeito segundo esses critérios aprendidos da cultura.

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DE ONDE VÊM AS PERSONAE?

Há várias personae diferentes para cada pessoa: personae privadas, personae mais públicas, e mesmo personae íntimas, que nos permitem pensarmo-nos a nós próprios. Essas personae podem entrar em certo grau de contradição umas com as outras, no sentido de que em contextos diferentes temos uma persona diferente. O grau de variação de personae numa mesma pessoa depende da função que se desempenha em cada contexto: não faz sentido manter a persona do «chefe militar» ou do «professor» em contextos privados; mas é difícil ser corajoso ou sábio em público e cobarde ou ignorante na intimidade. Há características que se mantêm; o que pode suceder é que são activadas diferentes características de uma persona complexa e multifacetada que inclui as «subpersonae» que são dependentes do contexto. É esta persona multifacetada que dá identidade ao indivíduo.

função adaptativa (biologia) das personae Uma persona parece ser bastante independente da biologia: na verdade, e como já referi, as diferentes personae variam muitíssimo de cultura para cultura e também na própria cultura. Nesse sentido dir-se-ia que as personae são aprendidas. Certamente que isso é verdade: se a persona se aprende tomando um modelo como exemplo, trata-se de informação que vem do exterior para o interior do invidíduo e, nesse sentido, as personae são aprendidas. Contudo o que não parece ser aprendido é o facto de tendermos sempre a pensar-nos como persona e de tendermos sempre a imitar exemplos que nos são dados: estamos como que «programados para a reprogramação». Esta programação para a reprogramação não é uma novidade evolutiva. Ocorre em muitas outras espécies. Por exemplo, no canto das aves, há justamente um modelo sonoro que é aprendido do ambiente e que é depois imitado até que a ave cristaliza o canto. (ver Marler, 2008, Reff ). O que é diferente na nossa espécie é apenas que os modelos vão, quase sempre, um tanto contra as tendências mais biológicas de maximização do ganho dos indivíduos. Assim, mesmo nas culturas mais guerreiras, os soldados que estão no mesmo lado têm de cooperar uns com os outros; e, no campo da sexualidade, as regras de acasalamento impõem sempre algumas restrições à tendência poligínica da nossa espécie.6 Além da inibição dos conflitos, as sociedades humanas promovem a cooperação. Mesmo nas sociedades tecnologicamente mais simples, cada indivíduo tem uma série de obrigações de cooperação e os sexos cooperam entre si: há divisão de trabalho pelo sexo e pelas classes de idade em todos os casos que eu conheço. Verifica-se, portanto, um início de divisão de tarefas, sendo que geralmente os machos caçam e fazem guerra e as fêmeas recolhem vegetais e pequenas presas. Em muitos casos, há uma distinção entre classes que interagem com o tangível e as que interagem com o intangível (feitiçaria, magia e religião), embora haja casos em que a distinção seja pouco clara. Nas sociedades mais complexas, em que a interacção com o ambiente depende mais da tecnologia, tende a haver uma maior separação das funções entre vários grupos. Para dar 6 The Mountain People, de Colin Turnbull, é por vezes representado como afirmando precisamente o contrário do que aqui digo. Contudo o que esse trabalho mostra é que se trata de uma cultura de agonismo extremo dada a falta de vantagem da cooperação. Mas dito isto, há, no livro, vários exemplos de cooperação codificada enquanto tal: partilha de alimento, ajuda na construção de uma habitação e talvez alguns mais, ligados à religião, a que Turnbull não conseguiu ter acesso. Em qualquer caso, parece que os dados de Turnbull foram recolhidos numa época de grande fome.

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um exemplo muito simples, na nossa sociedade há agricultores, padeiros, médicos e professores. Os padeiros não sabem produzir cereais para fazer o pão; os médicos não sabem fazer o pão de que se alimentam mas sabem curar quer seareiros quer padeiros; e os professores ensinam os médicos. Desta maneira consegue-se, por especialização de competências (pela formação de diferentes personae, cada uma com competências de interacção com o ambiente diferentes) um muito maior ganho do que se cada um devesse colher o cereal, fazer o pão, e ser médico e professor de si próprio. É esta especialização de tarefas, ainda que muito simples, como nos povos ágrafos e não estratificados (aquilo a que comum mas não consensualmente se chama povos primitivos), que se deve o sucesso da nossa espécie: a cultura consiste precisamente na transmissão de comportamentos de interacção com o ambiente físico e social que permitem que o grupo consiga mais recursos do ambiente do que conseguiria o somatório dos esforços de invidíduos não cooperativos. GRUPOS E CULTURAS

O que codifica a informação para o comportamento cooperativo é a cultura. É na cultura que residem as instruções de comportamento que levam à cooperação (por exemplo, as regras de acasalamento) e as instruções que nos permitem lidar com o nosso ambiente (por exemplo, as técnicas de caça ou o saber de um médico). A cultura funciona, assim, como o software do grupo cooperativo: fornece as instruções que cada indivíduo deve seguir para conseguir ganhar vantagem sobre os indivíduos isolados. É nesse sentido que se compreende a nossa aparente programação para a reprogramação: temos de adquirir do grupo as instruções de comportamento necessárias para que haja cooperação. Essa transmissão faz-se através das personae e dos critérios de juízo, também tirados do comportamento dos outros (somos conformistas, é bem sabido pelos estudos da Psicologia Social). Embora já tenha tratado este aspecto noutros locais (nomeadamente, Coimbra e 2003), quero acentuar a força desta reprogramação: quando não seguimos um dos modelos de comportamento que aprendemos sentimos medo e confusão (porque não sabemos que papel estamos a desempenhar, de modo que não nos conseguimos avaliar a nós próprios). Quando seguimos um caminho que sabemos ser criticável (porque há modelos do que se faz e do que não se pode fazer), sentimos culpa intensa. É como se a cultura nos tivesse inculcado um programa na mente: só fazemos o que já vimos fazer (o programa que lá foi posto) e há comportamentos que sabemos que devemos evitar. Dessa maneira garante-se que há cooperação na medida em que as pessoas seguem esses programas. Sabemos, pois, copiar modelos, bons ou maus, mas sentimo-nos perdidos se não nos comportamos segundo um qualquer modelo. Contudo, não se pode esperar, da nossa espécie, uma cooperação perfeita. É verdade que os ganhos individuais em ser cooperativo são muito grandes – provavelmente nenhum dos meus leitores já esteve em perigo de morrer de fome, nem em perigo real de morrer de frio; todos já fomos ao médico; todos dependemos do trabalho dos outros, que mais não seja para nos alimentarmos, vestirmos ou sequer nos deslocarmos à distância. Tudo isso foi e é possível graças à cooperação. Mas também é verdade que, ganhemos embora em ser cooperativos, perdemos em não ser, ao mesmo tempo, egoístas e não-cooperativos. Isto ocorre porque se conseguirmos beneficiar dos resultados da

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cooperação e fizermos batota ao mesmo tempo, conseguiremos vantagem objectiva sobre quem apenas segue as regras. Embora estes comportamentos de batota não sejam, em princípio, codificados na cultura cooperativa, a verdade é que é possível seguir o papel do «vilão», já que esse papel se encontra codificado. Um exemplo disso é a existência, na nossa cultura, da persona do «espertalhão», que engana quando ninguém vê e se orgulha disso. Pode suceder que, em determinados momentos da cultura, nomeadamente quando a censura pelos outros indivíduos é menor, ou em épocas de mudança, muitas pessoas sigam esses modelos menos cooperativos já que são, visivelmente, mais recompensadores em termos de poder e de recursos do que os modelos puramente cooperativos. Em condições mais normais, apenas quem tem todo o poder pode fazer batota; é, talvez, por isso que em algumas sociedades primitivas o chefe e o herói (respectivamente nos Gauaiqui e nos Mundurucu, estudados por Clasteres e analisados por Durham, Coevolution, Reff ) têm de compensar, respectivamente em riqueza e em abstenção da actividade sexual, as vantagens que lhes advêm do novo estatuto (os chefes Guaiaqui têm de dar tudo mas têm acesso a todas as mulheres; os heróis Mundurucu não têm de trabalhar durante um ano mas não podem ter actividade sexual). Nas sociedades como a nossa, os chefes, teoricamente, trabalham para o povo (de onde o nome «democracia»), mas na prática não ocorre necessariamente assim. É apenas na medida em que haja uma censura constante e eficaz (tribunais e imprensa) de qualquer abuso que não haverá batota. (É então óbvio que são precisamente os tribunais e a imprensa os alvos do poder corrupto). Na mesma lógica, nas sociedades estratificadas (com classes sociais bem diferenciadas) uma das classes consegue, geralmente, convencer as outras de que é mais importante. Nas sociedades guerreiras são os soldados que se dizem mais importantes; nas sociedades teocráticas são os teólogos; nas sociedades burguesas são os profissionais liberais. Dessa diferença de prestígio e «importância» das várias classes segue-se uma distribuição desigual dos recursos obtidos por cooperação. Nesse sentido, creio haver muita verdade na ideia de que a ideologia é justificativa do poder (embora a ideologia possa, em casos diferentes, determinar mudanças de poder). Ou seja, a cooperação pura é impossível porque temos ganhos na cooperação mas também na batota. A teoria dos jogos permite explicar porque é que a cooperação não cessa completamente havendo batoteiros. É que os batoteiros apenas terão vantagem enquanto houver muitos recursos, e esses muitos recursos só se obtêm por cooperação. Assim, se houver demasiados batoteiros relativamente aos cumpridores, o modelo passa a ser o do batoteiro e ou se cria uma nova cultura ou é a própria sociedade que desaparece, e os batoteiros com eles; de modo que, desde que se soubessem os ganhos e custos dos batoteiros e dos honestos, poder-se-ia conhecer a proporção esperada numa dada sociedade. Mas, para que uma cultura se mantenha, é necessário que haja muito mais honestos do que batoteiros.

a cultura como entidade biológica A cooperação, sobretudo em sociedades com uma tecnologia muito desenvolvida, tem uma consequência que, à primeira vista, é espantosa. Essa consequência é simples: não há nenhum indivíduo que saiba fazer um produto tecnológico complexo. Ninguém sabe fazer o computador em que escrevo este texto. Há quem saiba extrair o material de que é feita a caixa; outras pessoas sabem produzir silicone para chips. Outras

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pessoas sabem programar os chips; outras sabem agrupá-los de maneira a produzir um computador; outras ainda sabem fazer o sistema operativo (provavelmente não todo ele, mas não seria impossível); ainda outras pessoas sabem programar o processador de texto em que escrevo (mas poucas: trata-se de um programa «Open Source»). Mas o exemplo não tem de ser tão complexo: antes de escrever o corpo do texto, fiz um esboço dos principais pontos dele, e fi-lo à mão. Há dois séculos teria sido eu a fazer, com uma faca de metal que só os ferreiros sabiam fabricar, a ponta da pena de pato, que escrevia num papel que apenas os papeleiros sabiam fazer, com uma tinta que outrem faria. Mas agora, se pensar apenas na caneta, na tinta ou no papel, rapidamente chegaremos à conclusão de que ninguém os sabe fazer de principio a fim. Assim, andamos em automóveis, usamos computadores, canetas, candeeiros, livros, roupas que ninguém sabe fazer de princípio a fim. A pergunta evidente é: se ninguém os sabe fazer, quem é que os fez? A única resposta possível é que ninguém exactamente os fez, mas que foi a cooperação entre várias pessoas que os tornou possíveis. Mas se quisermos atribuir um local, uma entidade, ao «detentor de conhecimento» teremos de afirmar que é a cultura que sabe, mais exactamente, que é o grupo cooperativo que codifica, nos seus programas (no seu software), essa informação. Sendo assim, o grupo cooperativo emerge como uma entidade nova, uma entidade que pode ser definida em termos daquilo que consegue fazer. Além disso, os grupos competem entre si. Esta competição pode ser mais ou menos como a competição entre dois organismos (quando um grupo, em conjunto, faz guerra a outro grupo) ou ser mais subtil (como actualmente, em que a cultura ocidental se vende como exemplo de sucesso). Não podendo aqui entrar em detalhes sobre os processos de competição entre os grupos, vale a pena recordar que as identidades grupais, codificadas nas personae, desempenham um papel fundamental na competição dos grupos. Como vimos em outros capítulos, a nossa espécie parece programada a identificar-se com um grupo e a defender esse grupo contra outros grupos (este facto é sabido pelo menos desde Durkheim, mas entretanto surgiram os dados sobre formação de grupos que mostram que esse fenómeno é ainda mais forte do que se pensava: formamos grupos espontânea e rapidamente e defendemos o nosso grupo, mesmo que não saibamos quem o compõe, contra outros grupos, como Tajfel demonstrou, Reff ).7 Os grupos competem, pois, entre si, independentemente de se conseguir demonstrar matematicamente se há ou não selecção de grupo na nossa espécie (Boyd & Richerson, Reff, 2008). Os grupos humanos reproduzem-se, também, embora de maneira muito mais analógica do que os indivíduos. De modo que parece estarmos perante um novo replicador, uma nova organização da vida. De facto, um grupo cooperativo é compreensível como um organismo (esta ideia é bastante antiga e não pretendo originalidade) que interage com o ambiente. Os ciclos funcionais que ligam o grupo ao ambiente físico e social são desempenhados pelos grupos humanos caracterizados por comportamentos que são codificados na persona: ser caçador, ser padeiro, ser médico, ser investigador. Além dos ciclos funcionais com o exterior, o grupo tem, como os organismos, comunicações internas, sob forma de ensino, de aprendizagem, de boatos e de opinião. Em suma, aparentemente, trata-se 7 O leitor interessado recordará Lord of the Flies de William Golding, e 1984, de George Orwell: em ambos os casos se identifica um inimigo que reforça a coesão do grupo. A história de Lord of the Flies foi replicada num estudo científico (Sheriff eyt al, Reff ); a de 1984 foi inspirada no comunismo e no nazismo e no processo que os propagandistas dos regimes encontravam de identificar inimigos para garantir o suporte popular.

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de um organismo ou, se preferirmos usar um nome mais correcto, de um super-organismo. Os superorganismos não são novos na Biologia. Para dar um exemplo muito simples, as células são, elas próprias, coligações entre várias entidades. Mas o exemplo mais claro é o dos organismos multicelulares. Num corpo há várias células que desempenham tarefas muito diferentes: reprodução (as gónadas), processamento de alimento, suporte, movimento, coordenação geral de entradas e saídas do organismo (uma parte importantes destas últimas são as células nervosas). Como todas as células têm o mesmo genótipo nenhuma ganha em se reproduzir autonomamente (quando isso acontece, tem-se um cancro, que leva à morte do organismo e, por conseguinte, à não reprodução) e todas ganham em dividir tarefas. Apenas as gónadas se reproduzem directamente, mas as células do resto do organismo, ou mais exactamente, o ADN, ganha em produzir máquinas de sobrevivência (Dawkins, Reff, Reff ), compostas por muitas células com funções diferentes mas com uma teleonomia (uma função, aquilo a que nós chamaríamos um objectivo) comum. Tal como num corpo, os grupos organizam-se em indivíduos (células, pessoas) que se integram em conjuntos (tecidos nos organismos, subgrupos cooperativos na sociedade), que formam conjuntos com funções específicas (órgãos, sistemas, no corpo, e instituições, como uma universidade ou uma empresa, na sociedade) que, finalmente, formam um todo (o corpo, o grupo cooperativo). Os ganhos do grupo como um todo (tal como do corpo como um todo) são proporcionais à eficácia das instruções, do programa de ciclos funcionais e de comunicação interna do grupo. Compreende-se agora bem as vantagens que têm os indivíduos em tender a ser programados para serem reprogramados. Essa reprogramação faz-se, e é esta a novidade principal deste texto, através da persona que, de uma maneira subtil, «engana» as tendências não cooperativas, individualistas, do indivíduo e as transforma em cooperação.

tradução do programa da cultura para as pessoas Uma das motivações humanas novas é, como já referi, a procura de sentido: numa qualquer situação, procuramos razões. Essas razões podem ser religiosas, sociais, filosóficas, físicas, mas procuramos sempre esclarecer as relações entre os vários elementos que achamos que fazem um todo. Como já disse em capítulos anteriores, essas motivações foram inicialmente postas em evidência pela Psicologia Gestalt (embora o conceito seja muito anterior, remontando talvez pelo menos a Kant com a noção de apercepção do Eu), e eu tentei começar a descrever os seus componentes ao falar das duas lógicas anafóricas. Sem nos interessar agora por essas lógicas, podemos aceitar que todos nós queremos saber as razões das coisas. Um dado muito conhecido, encontrado por Gazzaniga e por Le Doux (Reff ), mostra que nos contentamos com uma explicação ainda que completamente falsa (fiz uma revisão dos dados mais pertinentes em Coimbra Reff ). Ora as personae consistem em instruções de comportamento acompanhadas por uma explicação: os indivíduos são aculturados e tranquilizados ao mesmo tempo, quando aprendem que se deve fazer X porque Y. O que é muito curioso é que a maneira como a persona se forma permite que haja comportamento cooperativo ainda que os sujeitos tenham tendência para procurar dominar os outros (porque, ao contrário das células do mesmo corpo, as várias pessoas

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que compõem um grupo não são tão aparentadas que não ganhem em não ser egoístas, competimos pela reprodução). O processo é o seguinte. Afirmação do Eu através da Persona cooperativa A tentação dos ganhos a curto prazo é demasiado grande para que as sociedades possam funcionar apenas com base nas considerações dos ganhos a longo prazo de que a maior parte dos indivíduos não está, em qualquer caso, claramente consciente. O que se passa é que a razão de ser, em termos de ganhos e perdas, dos comportamentos cooperativos não são, sempre, conhecidas, sendo apenas transmitidas as razões «éticas» para um determinado comportamento. Um bom exemplo disso mesmo numa sociedade da Nova Guiné é dado por Rapoport, Reff: os costumes religiosos («éticos») justificam uma série de comportamentos alimentares; esses comportamentos permitem que não haja sobre-exploração do ambiente; contudo, os indivíduos não sabem nada disso; há equivalentes em todas as culturas e a nossa não é excepção. Neste sentido, a super-estrutura é claramente determinada pela infra-estrutura, como pretendia Marx, embora exemplos do contrário se possam encontrar também. Nesses casos parece que foi seleccionado o comportamento adequado e que surgiram depois justificações puramente fantasiosas desse comportamento, para responder ao «porquê» que os indivíduos sempre fazem. Como precisamos de um explicação para tudo independentemente de ela ser verdadeira, não há qualquer selecção para que ela seja correcta: a única função dessa explicação é tranquilizar os indivíduos e não esclarecê-los. Dado que o conhecimento das razões do benefício do comportamento cooperativo não são suficientes para fazer que os indivíduos o sigam, tem de haver, na nossa espécie, um mecanismo que, satisfazendo desejos de curto-prazo, consiga implementar comportamentos cooperativos a longo-prazo. Esse processo assenta na persona. É através dela que as sociedades complexas se tornam possíveis. A persona dá ao indivíduo várias coisas ao mesmo tempo. Sem que os factores estejam ordenados (porque funcionam em níveis diferentes ao mesmo tempo), são os seguintes. Dado que os indivíduos funcionam em termos de benefícios imediatos e menos em termos de benefícios a longo prazo, que nem sequer são sempre conscientes, tem de haver um meio de conseguir que os indivíduos se sintam reforçados a curto-prazo por inibir os seus ganhos imediatos. Esse reforço é dado pela persona: a cultura dá uma instrução de comportamento cooperativa e, ao mesmo tempo, um reforço condicional à manutenção dessa persona. Isto é, se o indivíduo cumprir as regras da persona (regras essas que, nas sociedades estáveis, são cooperativas—por exemplo, não roubar) é reforçado em termos da sua importância. Respeitam-se as pessoas com personae fortes, respeitam-se as pessoas «honradas», «de bons princípios», «virtuosas», os «bons cidadãos», as «pessoas honestas». O indivíduo, ao saber-se honrado, virtuoso, bom cidadão, etc., tem um importante reforço: é aprovado pelos outros e pelos seus próprios critérios interiorizados.8 Na medida em que se pode comparar com os outros, o indivíduo que cumpre a persona achar-se-lhes-á superior. Ou seja, o indivíduo pode sentir-se superior aos outros (competição a curto-prazo) desde que cumpra as instruções cooperativas da cultura, que garantem que esse mesmo indivíduo que compete, em prestígio, com os outros, controla a sua competição por outros recursos (alimento, acasalamento, etc.). Ao mesmo tempo, esse indivíduo recebe uma explicação do seu 8 Parece haver pessoas que tendem a depender mais do hetero-reforço e outras mais do auto-reforço. Em termos da teoria da ética de Kohlberg (Reff ), trata-se da diferença entre os estádios 3 e 4.

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comportamento (as instruções éticas são geralmente acompanhadas de uma razão; em muitas sociedades primitivas essa razão é dada pela religião; noutras é mais simplesmente identiária—«nós fazemos assim»). Os indivíduos podem, pois, ser competitivos e ter maior prestígio do que os outros, através do alardear da persona, mas é a própria persona de que o sujeito se orgulha que o obriga, ainda que ele não queira, à cooperação e à não competição. Assim, na medida em que os indivíduos lutem pelo prestígio que tem a sua persona perscindem de ganhos imediatos e garantem que é o grupo (e indirectamente eles próprios) quem beneficia desses ganhos. Assim, é a persona, a pessoa que cada um de nós quer ser, a pessoa que cada um de nós pensa que os outros vêem, que garante, através de um processo muito arcaico (a competição entre indivíduos, neste caso pela «melhor persona») a própria cooperação, impossível em organismos não muito aparentados como é o nosso caso. Este fenómeno só se compreende se admitirmos que é o próprio software do grupo, a cultura, que se reproduz e não os indivíduos que, racional ou sequer emocionalmente, controlam as suas acções.

CONSIDERAÇÕES

Como é evidente, este mecanismo apenas funciona na medida em que houver um número suficiente de pessoas a seguir as personae cooperativas. Em condições de funcionamento normal da sociedade é isso que se verifica, que mais não seja porque há mecanismos psicológicos de detecção de infractores (Cummings, Reff ) e até de conformismo (a culpa, ver Trivers Reff ). A razão pela qual não há sociedades com personae unicamente competitivas é que tais sociedades são impossíveis enquanto grupos cooperativos (precisamente porque deixaram de ser cooperativos) e extinguir-se-iam face a sociedades mais cooperativas (isto é, com personae que codificam comportamentos congruentes com a cooperação). Por outro lado, este mecanismo baseia-se na ambição individual de desigualdade («eu quero ser melhor do que os outros») para criar igualdade: cada pessoa compete com as outras em bom comportamento e dessa forma consegue-se um grupo cooperativo. Na actual cultura de auto-satisfação hedonista (Lipovetski, Reff ) as personae não cooperativas existem, mas certamente ocorrerá um fenómeno de tendência contrária, na medida em que as pessoas comecem a verificar as perdas individuais devidas a comportamentos desviantes.9 Na medida em que a nossa vida social depende estreitamente do cumprimento de regras de conduta, é mais fácil em termos psicológicos assimilar essas regras do que aprendê-las por condicionamento: a pessoa passa a fazer o que o grupo lhe exige por sentir que é a melhor forma de conduta e não apenas para obter reforços do grupo. Assim as pessoas se tornam naquilo que a cultura precisa que elas sejam.

a questão da liberdade Pode-se então pensar até que ponto é que as personae são uma fonte de liberdade ou, pelo contrário, uma prisão. Do ponto de vista das motivações básicas do Eu serão 9 A tendência actual pode ser a de liberdade individual na esfera privada e obediência a códigos de conduta cooperativos na esfera profissional.

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uma prisão: afinal não se pode fazer tudo aquilo de que se tem vontade. Mas isso acontece com qualquer outro animal social, com a única diferença de, na maioria dos outros mamíferos sociais, o conformismo ser obtido por reforços diferenciais que seleccionam os comportamentos não demasiado disruptores e extinguem os outros. Na nossa espécie o processo é mais mental, na medida em que temos o objectivo mais ou menos claro de nos comportarmos de maneira ética. Mas em qualquer caso, a liberdade nunca poderia residir na satisfação sem limite dos desejos: se seguíssemos apenas as nossas motivações não socializadas seríamos escravos delas, o que também não seria forma de liberdade. Por outro lado, a definição política de liberdade implica as personae, na medida em que é através da cooperação que os cidadãos livres se podem exprimir (a liberdade implica que haja um mínimo de bem estar só atingível pela cooperação). O conceito de liberdade não é claro, mas admitamos que com ele queremos capturar a ideia de que somos livres de decidir o qe fazemos. O que vimos até aqui é que a maior parte das pessoas não compreende o verdadeiro porquê das personae e por que as respeitar; vimos também que muito poucas pessoas têm capacidade de fazer uma coisa que não esteja codificada nas personae que conhece. Somos então, como as células do corpo subordinadas às funções gerais do organismo, elementos de um programa que não compreendemos? Não é possível dar um rotundo não à pergunta. Fazemos o que fazemos porque aprendemos a fazê-lo e achamos que é assim que se faz; não consideramos alternativas a esse comportamento senão em outras personae, que eventualmente nos foram transmitidas como modelos a evitar; não compreendemos as razões de ser do nosso comportamento, nem porque é que há personae desejáveis e outras indesejáveis. Logo, o espaço de liberdade mental é quase nulo. Haverá maneira de modificar esta situação confrangedora? Penso que sim, e é nessa nota positiva que quero terminar este capítulo. Parece-me (a mim, Eu sujeito que se exprime através de uma persona: não se pode fugir disso) que a liberdade mental aumenta com a compreensão dos determinantes do nosso comportamento. Além disso aumenta com a nossa capacidade de nos compreendermos em termos de motivações, emoções, padrões de inteligência (de que não tratei aqui), critérios de valoração (éticos, estéticos, cognitivos), personae que somos e que podemos ser e coisas de que precisamos realmente. O auto-conhecimento é condição de liberdade na medida em que nos permite compreender o que determina o nosso comportamento e as nossas opiniões. Ao saber quais os determinantes (os programa da biologia e da cultura) que são exteriores à nossa vontade pensada, podemos procurar, usando a nossa mente, auto-determinar-nos, quer dizer, assegurar que somos nós próprios, a nossa própria mente, a determinar o nosso comportamento e as nossas opiniões, e que não estamos a seguir cegamente os programas que são exteriores à nossa mente e vontade racional. Esta posição implica que se aceite que nos vemos como uma mente que decide, mas parece ser essa a posição espontânea das pessoas (dados coligidos em 2010). Embora tenhamos, quase sempre, de seguir, ainda que com modificações, os programas que herdámos biológica e culturalmente, o facto de sermos conscientes deles dá-nos a possibilidade de os modificar e de saber porque fazemos o que fazemos e porque pensamos o que pensamos. Não é muito, mas é melhor do que ser um peão aculturado e alienado, que executa o programa acreditando nas razões, quase sempre falsas, que a cultura lhe dá para os actos que tem de cumprir. A capacidade de auto-conhecimento necessária para essa auto-determinação pode-se

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treinar na medida em que se conheçam formas de expressão da própria subjectividade. Essas formas de expressão da subjectividade deveriam ser a matéria da Psicologia (que não tem cumprido esse papel, absorta que está na objectuação, à maneira da Física, da mente humana), mas são de facto as diversas formas de Arte, desde a música até à Literatura que nos alertam para diferentes formas de ser e de sentir, o que nos permitem ultrapassar os limites estreitos impostos pela nossa cultura. Além disso, tem de se conhecer os determinantes biológicos e culturais do comportamento. Não é uma tarefa fácil e creio que ninguém vive o suficiente para a cumprir. Mas é a única tarefa que nos permite não passar pela vida como um animal e que digamos «Eu penso que» sem mentir completamente. Assim, tem de se compreender bem a nossa própria Biologia, Psicologia e Sociobiologia e ao mesmo tempo conhecer-se bem as formas expressão que caracterizam a nossa subjectividade. Em resumo, e isto pode parecer uma sugestão muito banal, devemos ser pessoas completas, pessoas cultas em todas as actividades humanas. Dessa maneira poderemos, dentro dos limites impostos pela nossa natureza social, compreender-nos e, talvez, escolher. Lisboa, 17-22 e 26 de Dezembro de 2010 Rodrigo de Sá-Nogueira Saraiva

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