SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA N.º 9/2014 (PH) FS / GR Processo n.º 2075/12.0TTLSB.L1.S1 (Revista) – 4.ª Secção Acordam na Secção Social do Supremo Tribunal de Justiça: I 1. Em 18 de Maio de 2012, no Tribunal do Trabalho de Lisboa, 2.º Juízo, 2.ª Secção, AA, de nacionalidade argelina e residente na Rua ..., freguesia dos ..., n.º …, r/c direito, … Lisboa, intentou a presente acção declarativa, com processo comum, emergente de contrato de trabalho contra a EMBAIXADA DA REPÚBLICA […], Lisboa, pedindo que o seu despedimento fosse «declarado sem justa causa, logo ilícito», e a condenação da ré a pagar-lhe: (a) as retribuições que deixou de auferir desde a data do despedimento até ao trânsito em julgado da decisão a proferir nos autos; (b) uma indemnização, no valor de € 13.209, em substituição da reintegração; (c) € 3.774, respeitantes a férias, subsídio de férias e férias não gozadas, vencidas em 1 de Janeiro de 2011; (d) € 1.572,51, referentes aos duodécimos de férias, subsídio de férias e subsídio de Natal pertinentes aos cinco meses que trabalhou no ano de 2011. A ré contestou, invocando (i) não ter personalidade jurídica, sendo uma missão de representação da República […] junto do Estado Português, e (ii) gozar de imunidade de jurisdição, por virtude do respectivo estatuto diplomático, pelo que devia ser declarada a incompetência internacional dos tribunais portugueses e a ré absolvida da instância, relativamente a todos os pedidos, tendo a autora respondido, pugnando pela improcedência da excepção deduzida. Em 17 de Setembro de 2013, foi proferido despacho saneador com valor de sentença, que concluiu inexistir falta de personalidade jurídica ou judiciária, pois «as missões diplomáticas permanentes, nomeadamente as embaixadas, detêm funções de representação de um Estado estrangeiro acreditado noutro país, muito embora não

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SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA sejam dotadas de autonomia jurídica em relação ao estado acreditado, pelo que se traduzem em entidades representativas do respectivo Estado soberano para os efeitos do disposto no art. 7.º do C. P. Civil», e, em seguida, acolheu o dispositivo seguinte: «Face ao exposto e nos termos dos preceitos legais supra indicados, decide-se: 1) Reconhecer a imunidade de jurisdição à Ré Embaixada em Portugal da República Democrática e Popular da Argélia em Lisboa na presente acção contra si instaurada pela Autora AA; 2) E julgar procedente a excepção de incompetência absoluta dos Tribunais Portugueses para preparar e julgar a presente acção e, consequentemente, absolver a Ré da instância. Custas pela Autora, sem prejuízo do benefício do apoio judiciário que lhe foi concedido.»

2. Irresignada, a autora apelou para o Tribunal da Relação de Lisboa, tendo sintetizado a sua alegação nas seguintes conclusões: – A douta sentença recorrida considera os tribunais portugueses incompetentes, sem que seja considerada a “Declaração” junta à P.I. sob o Doc. n.º 2, nem o facto de a ora Recorrente ter autorização de residência portuguesa (e não um mero visto diplomático) e bem assim de ser contribuinte fiscal e da segurança social portuguesas; – A douta sentença recorrida, considera a impugnação de um despedimento ilícito um acto jure imperii e não jure gestiones, como de facto é; – A douta sentença recorrida deverá também ser considerada nula, tendo em conta que põe termo ao processo, sem se pronunciar sobre o mérito da causa, devendo para tanto, pronunciar-se não apenas sobre questões de competência jurisdicional, entenda-se, a competência do tribunal, mas também de substância.»

A ré contra-alegou, propugnando no sentido da manutenção do julgado na decisão recorrida, tendo formulado as conclusões seguintes: «a) Dizem as presentes alegações respeito ao recurso interposto pela Recorrente da Douta Sentença proferida pelo Tribunal a quo nos autos à margem identificados, que reconheceu e bem a imunidade de jurisdição à Recorrida, na acção contra si instaurada pela Recorrente, e julgou procedente a excepção de incompetência absoluta dos Tribunais Portugueses para preparar e julgar a referida acção e, consequentemente,

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SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA absolveu a Recorrida da instância, pelo que deverá a sentença do Tribunal a quo ser confirmada pelo Tribunal de Recurso. b) Ainda assim, também se deverá considerar que a pretensão ora deduzida pela Recorrente não poderá proceder, porquanto, conforme é sabido, e cumpre referir, a Recorrida não tem, em si, personalidade jurídica, sendo uma Missão da República Democrática e Popular da Argélia que tem, nos termos de artigo 2.º da Convenção de Viena sobre Relações Diplomáticas, a qual entrou em vigor relativamente a Portugal no dia 11 de Outubro de 1968, entre outras funções, a função de representar a República Democrática e Popular da Argélia junto do Estado Português. c) A imunidade de jurisdição dos Estados estrangeiros é considerada como princípio fundamental em Direito Internacional, o qual tem assegurada a sua recepção automática no Direito Interno Português, por via do artigo 8.º n.º 1 da Constituição da República Portuguesa. d) A Recorrente pretende agora que a sentença do Tribunal a quo seja revogada e substituída por outra que declare a competência do Tribunal a quo para conhecer do mérito da causa. e) Contudo, a pretensão ora deduzida pela Recorrente não pode proceder, porquanto, conforme é sabido, e cumpre referir, a Recorrida não tem, em si, personalidade jurídica, sendo uma Missão da República Democrática e Popular da Argélia que tem, nos termos do artigo 2.º da Convenção de Viena sobre Relações Diplomáticas, a qual entrou em vigor relativamente a Portugal no dia 11 de Outubro de 1968, entre outras funções, a função de representar a República Democrática e Popular da Argélia junto do Estado Português. f) Ora, como é sabido, a Recorrida goza de imunidade de jurisdição, em virtude do seu estatuto diplomático, pelo que os tribunais portugueses são internacionalmente incompetentes para conhecer da acção objecto do presente recurso, imunidade de jurisdição que a Embaixada da República Democrática e Popular da Argélia, ora Recorrida invoca novamente de forma expressa. g) O princípio da imunidade de jurisdição resulta também do artigo 2.º n.º 1 da Carta das Nações Unidas, que estabelece o princípio da igualdade soberana entre Estados. h) Sendo que o corolário do princípio da igualdade dos Estados é o de que, em princípio, nenhum Estado pode julgar os actos de outro ou mesmo de um dos seus órgãos superiores, maxime, por intermédio de um dos seus tribunais, sem consentimento deste. i) Este princípio encontra-se consagrado na jurisprudência internacional, inclusivamente pelo Tribunal Europeu dos Direitos Humanos.

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SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA j) Com efeito, e conforme dispõe o artigo 31.º da Convenção de Viena sobre Relações Diplomáticas, o agente diplomático goza de imunidade da jurisdição penal, mas também civil e administrativa do Estado receptor, salvo se se tratar de (i) acção real sobre imóvel privado situada no território do Estado acreditados, excepto se o possuir por conta do Estado acreditante para os fins da missão, (ii) acção sucessória ou (iii) acção referente a qualquer actividade profissional ou comercial exercida pelo agente diplomático no Estado acreditador fora das suas funções oficiais. k) Ora, as acções do foro laboral encontram-se abrangidas pela imunidade jurisdicional. l) Só assim não seria se a Recorrida tivesse renunciado à imunidade de jurisdição dos seus agentes diplomáticos (artigo 32.º, n.º l da referida Convenção), o que não é o caso. m) Ora, conforme dispõe o Acórdão de 12 de Julho de 1989 do Tribunal da Relação de Lisboa, se tal se verifica com os representantes do Estado, por maioria de razão se deverá verificar com o próprio Estado, bem como com as respectivas Embaixadas que o representam no Estrangeiro (artigo 3.º, a) da Convenção de Viena). n) Além disso, estamos perante uma relação laboral entre uma cidadã Argelina e o Estado da Argélia. o) Acresce que, na altura, a Recorrente foi contratada na Argélia pela Embaixada, para vir trabalhar para a Embaixada da República Democrática e Popular da Argélia em Portugal, tendo nesse momento a Embaixada tratado dos documentos para a entrada e permanência desta em Portugal. p) Estando a Recorrente autorizada a permanecer em Portugal como Pessoal Auxiliar de Missão Estrangeira. q) Devendo ser considerada como membro do Pessoal da Missão, nos termos do art. 1.º da referida Convenção de Viena, sendo assim, membro da Missão. r) Assim, a Recorrente aquando da sua contratação, passou a fazer parte dos Membros da Missão, nos termos do disposto no art. 7.º da Convenção de Viena sobre Relações Diplomáticas. s) Pelo que, estamos perante uma relação jurídica à qual só poderá ser aplicada a legislação Argelina. t) Desta forma, não se poderá nunca considerar estarmos perante uma relação privada. Estamos sim, no âmbito de um contrato essencial às próprias funções da Embaixada da República Democrática e Popular da Argélia em Portugal, porquanto, no exercício das suas funções, a Recorrente era a responsável pela preparação e confecção de toda a alimentação servida na Embaixada da República Democrática e Popular da Argélia em Portugal, e especialmente da Exma. Sra. Embaixadora e da sua família, que são funções de extrema relevância em qualquer Embaixada, nomeadamente no que à imagem

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SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA pública da Embaixada e do País que a Missão Diplomática representa, diz respeito, bem como à saúde e segurança da Exma. Sra. Embaixadora, da Embaixada e dos que com ela contactam. u) Resulta assim, que deverá ser confirmada a sentença proferida pelo Tribunal a quo, reconhecendo-se a imunidade jurisdicional da Embaixada da Argélia, ora Recorrida e declarando a incompetência internacional dos Tribunais Portugueses para conhecer da acção judicial objecto do presente recurso, absolvendo a Recorrida da instância quanto a todos os pedidos formuladas pela Recorrente.»

Por despacho de 12 de Dezembro de 2013, a Ex.ma Juíza Desembargadora Relatora, ao abrigo do estipulado no artigo 656.º do novo Código de Processo Civil, o qual é imediatamente aplicável, atenta a data de instauração da acção e o disposto no n.º 1 do artigo 5.º da Lei n.º 41/2013, de 26 de Junho, julgou o recurso procedente, revogou a sentença recorrida e determinou que o processo devia prosseguir para conhecimento dos pedidos, tendo, então, a ré reclamado para a conferência, a qual, por acórdão de 15 de Janeiro de 2014, deliberou desatender a reclamação deduzida. É contra esta deliberação da conferência que a ré agora se insurge, mediante recurso de revista, formulando, para tanto, as conclusões seguintes: «1. A decisão reclamada não foi, salvo o devido respeito, correctamente elaborada, nem bem estruturada e muito menos bem fundamentada, tendo o acórdão ora recorrido erradamente, no entendimento da ora Recorrente, acompanhado de perto a solução e argumentação defendidas anteriormente pelo douto Tribunal da Relação. 2. O Acórdão recorrido viola de forma expressa e manifesta o direito fundamental à igualdade, nomeadamente nas relações entre Estados, no âmbito do direito a uma igual medida de soberania e da garantia de igualdade na aplicação do direito internacional. 3. Sendo certo que estão aqui em causa dois Estados soberanos, a República Democrática e Popular da Argélia e Portugal, não deverá sequer colocar-se em dúvida que esses Estados apenas estão vinculados aos Tratados e Convenções Internacionais de que são Parte. 4. Uma decisão judicial como a preconizada pelo Tribunal a quo consubstanciaria uma violação de um corolário fundamental nas relações entre Estados, como é o princípio da reciprocidade, pois ao permitir uma ingerência numa soberania de um Estado coloca-se

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SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA em crise, de forma potencialmente fatal e irrecuperável, a boa relação institucional e de cooperação entre os dois Estados. 5. A decisão do Tribunal a quo viola o princípio da imunidade de jurisdição, o qual estabelece a igualdade soberana entre Estados, pois nenhum Estado pode julgar os actos de outro ou mesmo de um dos seus órgãos superiores, maxime, por intermédio de um dos seus Tribunais, sem consentimento deste, violando expressamente o artigo 2.º, n.º 1 da Carta das Nações Unidas e o artigo 3.º do Tratado de Amizade, Boa Vizinhança e Cooperação entre a República Portuguesa e a República Democrática e Popular da Argélia. 6. Tal imunidade de jurisdição justifica-se, até, por motivos de segurança: as Embaixadas têm sido, repetidamente, alvo de ataques terroristas e o acto de contratarem ou de despedirem quem lhes aprouver é essencial. Senão, como poderiam garantir a sua própria segurança? 7. Uma eventual condenação da República Democrática e Popular da Argélia ou da sua Embaixada em Portugal no caso sub judice seria atentatória da sua soberania, para além de ser inexequível, porquanto a execução de uma sentença nesse sentido, implicaria a execução de actos materiais do Estado Português sobre a Embaixada da Argélia, a qual não poderá ser exigida a um Estado Soberano ou a algum dos seus órgãos. 8. Com efeito, os tribunais Portugueses são formal e materialmente incompetentes para a apreciação do caso sub judice. 9. O Tribunal recorrido reconheceu expressamente que a Convenção de Basileia não vigora na Ordem Jurídica Interna Portuguesa, todavia aplicou-a ao caso sub judice e fundamentou a sua decisão com base nas disposições nela previstas, o que configura, de forma clara e manifesta, um erro na determinação da lei aplicável! 10. Tal Convenção de Basileia de 16 de Maio de 1972 é uma Convenção de âmbito meramente Europeu, pelo que jamais vincularia o Estado da República Democrática e Popular da Argélia e, nem sequer, foi ratificada pelo Estado Português, não o vinculando, pelo que, nunca poderá ser aplicada ao caso sub judice. 11. Não poderá igualmente ser invocada a tese da imunidade relativa de jurisdição, equiparando uma Embaixada a um escritório, agência ou estabelecimento privado, sob pena de violação expressa da Convenção de Viena, a qual deverá aqui ser aplicada, como reguladora do caso sub judice. 12. Repugnando-se veementemente essa equiparação da ora Recorrente a uma entidade privada, porquanto uma Embaixada é uma Representação Diplomática de um Estado. 13. Nestes termos, e sendo aplicável a convenção de Viena, a Embaixada da República Democrática e Popular da Argélia em Portugal goza de imunidade de jurisdição face aos

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SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA Tribunais Portugueses, pelo que os mesmos são internacionalmente incompetentes não podendo conhecer do presente caso. 14. Ora, como resulta claro da Convenção de Viena, a Embaixada da República Democrática e Popular da Argélia em Portugal goza de imunidade de jurisdição, em virtude do seu estatuto diplomático. 15. No caso sub judice, estamos perante um contrato de Trabalho celebrado, em território Argelino, entre a Embaixada da República Democrática e Popular da Argélia e uma cidadã argelina, o qual está sujeito à lei Argelina e foi celebrado pela referida Embaixada ao abrigo das suas funções de ius imperii, para integrar o pessoal da Missão Diplomática. 16. Refira-se ainda que a própria Legislação Portuguesa, pelo Regime Jurídico-Laboral dos Serviços Periféricos Externos do Ministério dos Negócios Estrangeiros, decorrente do Decreto-Lei n.º 47/2013, de 05/04, sujeita os trabalhadores dos serviços periféricos externos do Ministério dos Negócios Estrangeiros ao regime da função pública, pelo que situações semelhantes à dos presentes autos, não têm cariz privado, sendo competentes os Tribunais Administrativos, nos termos do artigo 2.º, n.º 2, al. a) do Código de Processo nos Tribunais Administrativos. 17. Ora dito isto, resulta óbvio que todos os elementos de conexão do presente caso se reconduzem ao Estado da República Democrática e Popular da Argélia logo estamos perante uma relação jurídica à qual só poderá ser aplicada a legislação e jurisdição Argelinas. 18. Ademais, as funções para as quais a Recorrida foi contratada, e que desempenhava, eram de extrema relevância, pois era a Recorrida que confeccionava toda a alimentação da Embaixada e da família da Exma. Sra. Embaixadora, além de que, também a segurança e a vida da Exma. Sra. Embaixadora, da sua família e demais elementos que compõem a Missão estava “nas mãos” da ora Recorrida, em virtude da grande proximidade entre a ora Recorrida e [a] Exma. Sra. Embaixadora. 19. A interpretação feita pelo Tribunal a quo é, de facto, restritiva — e em excesso, crê a Recorrente — de modo a afastar a imunidade de jurisdição de que goza uma Embaixada de um Estado na grande parte das situações, reduzindo a possibilidade de invocação da mesma praticamente apenas aos seus Embaixadores. 20. Não poderão, nunca, os Tribunais portugueses vir dizer que as regras de funcionamento estabelecidas pela Embaixada República Democrática e Popular da Argélia em Portugal são excessivas ou não são adequadas, ou vir limitar os meios de reacção da Embaixada da República Democrática e Popular da Argélia às violações dos deveres laborais pela

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SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA ora Recorrida, pois tal consubstancia uma ingerência na soberania de um Estado que, crê a Recorrente, ser inadmissível! 21. Assim, resulta do supra exposto que apenas poderá ser aplicada ao caso sub iudice a Convenção de Viena, ao abrigo da qual é reconhecida de forma expressa a imunidade de jurisdição à ora Recorrente. 22. Por outro lado, foi erradamente aplicado pelo Tribunal a quo o Regulamento Comunitário n.º 44/2001 de 22 de Dezembro de 2000, uma vez que o Estado da República Democrática e Popular da Argélia é um Estado Terceiro à União Europeia, pelo que, não pode, jamais, ser vinculado por esse Regulamento. 23. Sem conceder, acresce que o âmbito de aplicação do referido Regulamento depende do facto das partes em litígio terem domicílio num Estado-Membro, nos termos do artigo 4.º do citado Regulamento. 24. O que não acontece in casu, pois nem a Embaixada da República Democrática e Popular da Argélia nem a ora Recorrida têm domicílio num Estado-membro. 25. Assim, ao abrigo do disposto nos artigos 26.º, 37.º, n.º 3 e 38.º, n.º 2 da Convenção de Viena, os membros da Missão, e in casu, a ora Recorrida beneficiavam de um regime próprio que permitia a sua permanência e circulação em território português sem necessidade de visto e sem obter autorização de residência; não sendo portanto os Membros da Missão residentes em território nacional. 26. Deste modo, sendo o Estado da República Democrática e Popular da Argélia um Estado Terceiro à União Europeia, não pode, jamais, ser vinculado por um Regulamento Comunitário. Além de que, nenhuma das Partes do presente litígio tem domicílio num Estado-Membro, não podendo, portanto, o citado Regulamento ser-lhe aplicável.»

A final, sustenta que seja confirmada a decisão proferida pelo tribunal de 1.ª instância, reconhecendo-se a imunidade jurisdicional da Embaixada da Argélia e que se declare a incompetência internacional dos tribunais portugueses para conhecerem da acção em apreço, absolvendo-se a ré da instância quanto aos pedidos formulados. A autora contra-alegou, pugnando pela manutenção do acórdão recorrido. Neste Supremo Tribunal, o Ex.mo Procurador-Geral-Adjunto pronunciou-se no sentido de que o recurso de revista devia improceder, parecer que, notificado às partes, não foi objecto de qualquer resposta.

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SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA 3. No caso vertente, a única questão suscitada cinge-se a saber se a ré goza de imunidade de jurisdição, o que determinaria a incompetência absoluta do tribunal, em razão das regras de competência internacional, para conhecer da causa. Ter-se-á por assente, porquanto se trata de matéria transitada em julgado, que a ré tem personalidade jurídica e/ou judiciária, na medida em que a ré, apesar de vencida quanto a este ponto, não impugnou a decisão proferida nesse sentido. Preparada a deliberação, cumpre julgar o objecto do recurso interposto. II 1. O tribunal recorrido deu como provados os factos seguintes: 1) A autora AA é cidadã argelina; 2) Na data de 15/10/2004, na Argélia, a autora e a ré Embaixada em Portugal da República Democrática e Popular da Argélia acordaram de forma verbal que aquela prestaria […] as funções de cozinheira para esta e sob a sua autoridade, direcção e fiscalização, mediante uma remuneração mensal, 3) Tendo, em consequência deste acordo, a ré tratado da documentação para a entrada da autora em Portugal para funções como membro da Missão; 4) Posteriormente, em 21/02/2005, nas instalações da ré, esta e a autora reduziram a escrito o referido acordo verbal, através da subscrição do escrito particular denominado «CONTRAT D’ENGAGEMENT», cuja cópia consta de fls. 68 a 70 dos autos e cujo teor se dá por integralmente [reproduzido], e cuja tradução consta de fls. 66 e 67 dos autos e cujo teor se dá por integralmente [reproduzido]; 5) A autora exerceu as funções de cozinheira na própria Embaixada e na residência oficial da Sr.ª Embaixadora da Argélia; 6) Funções essas que desempenhou até 31.05.2011;

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SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA 7) Data em que a ré lhe entregou a carta cuja cópia consta de fls. 18 dos autos e cujo teor se dá por integralmente [reproduzido], e cuja tradução consta de fls. 17 dos autos e cujo teor se dá por integralmente [reproduzido]; 8) Enquanto prestou o seu trabalho para a ré, por iniciativa desta, a autora fazia descontos para a Segurança Social Portuguesa. Os factos materiais fixados pelo tribunal recorrido não foram objecto de impugnação pelas partes, nem se vislumbra qualquer das situações referidas no n.º 3 do artigo 682.º do Código de Processo Civil, pelo que será com base nesses factos que há-de ser resolvida a questão suscitada no recurso. 2. A ré sustenta que o acórdão recorrido «viola o princípio da imunidade de jurisdição, o qual estabelece a igualdade soberana entre Estados, pois nenhum Estado pode julgar os actos de outro ou mesmo de um dos seus órgãos superiores, maxime, por intermédio de um dos seus Tribunais, sem consentimento deste, violando expressamente o artigo 2.º, n.º 1 da Carta das Nações Unidas e o artigo 3.º do Tratado de Amizade, Boa Vizinhança e Cooperação entre a República Portuguesa e a República Democrática e Popular da Argélia», que a «condenação da República Democrática e Popular da Argélia ou da sua Embaixada em Portugal no caso sub judice seria atentatória da sua soberania, para além de ser inexequível, porquanto a execução de uma sentença nesse sentido, implicaria a execução de actos materiais do Estado Português sobre a Embaixada da Argélia, a qual não poderá ser exigida a um Estado Soberano ou a algum dos seus órgãos» e que «os tribunais Portugueses são formal e materialmente incompetentes para a apreciação do caso sub judice», sendo que «[o] Tribunal recorrido reconheceu expressamente que a Convenção de Basileia não vigora na Ordem Jurídica Interna Portuguesa, todavia aplicou-a ao caso sub judice e fundamentou a sua decisão com base nas disposições nela previstas, o que configura, de forma clara e manifesta, um erro na determinação da lei aplicável».

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SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA E acrescenta que «[n]ão poderá igualmente ser invocada a tese da imunidade relativa de jurisdição, equiparando uma Embaixada a um escritório, agência ou estabelecimento privado, sob pena de violação expressa da Convenção de Viena», que «uma Embaixada é uma Representação Diplomática de um Estado» e que «a Embaixada da República Democrática e Popular da Argélia em Portugal goza de imunidade de jurisdição face aos Tribunais Portugueses». De todo o modo, prossegue a ré, «estamos perante um contrato de trabalho celebrado, em território Argelino, entre a Embaixada da República Democrática e Popular da Argélia e uma cidadã argelina, o qual está sujeito à lei Argelina e foi celebrado pela referida Embaixada ao abrigo das suas funções de ius imperii, para integrar o pessoal da Missão Diplomática», sendo certo que «todos os elementos de conexão do presente caso se reconduzem ao Estado da República Democrática e Popular da Argélia logo estamos perante uma relação jurídica à qual só poderá ser aplicada a legislação e jurisdição Argelinas», aditando que «as funções para as quais a Recorrida foi contratada, e que desempenhava, eram de extrema relevância, pois era a Recorrida que confeccionava toda a alimentação da Embaixada e da família da Exma. Sra. Embaixadora, além de que, também a segurança e a vida da Exma. Sra. Embaixadora, da sua família e demais elementos que compõem a Missão estava “nas mãos” da ora Recorrida, em virtude da grande proximidade entre a ora Recorrida e a Exma. Sra. Embaixadora», donde «apenas poderá ser aplicada ao caso sub iudice a Convenção de Viena, ao abrigo da qual é reconhecida de forma expressa a imunidade de jurisdição à ora Recorrente», tendo sido «erradamente aplicado pelo Tribunal a quo o Regulamento Comunitário n.º 44/2001 de 22 de Dezembro de 2000, uma vez que o Estado da República Democrática e Popular da Argélia é um Estado Terceiro à União Europeia», não estando vinculado por um regulamento comunitário. 2.1. As instâncias divergiram na decisão do caso em apreciação.

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SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA O tribunal de 1.ª instância reconheceu a imunidade de jurisdição da ré, tendo julgado procedente a excepção de incompetência absoluta dos tribunais portugueses para julgar a presente acção e absolvido a ré da instância, já o tribunal da relação não reconheceu a imunidade jurisdicional da ré, tendo determinado que o processo devia prosseguir para conhecimento dos pedidos formulados pela autora. Neste particular, o tribunal de 1.ª instância aduz a fundamentação seguinte: «[…] a imunidade de jurisdição (de que gozam os Estados nas suas relações recíprocas) não é aplicável qualquer que seja a actividade do Estado, devendo tal conceito entendido num sentido restrito, ou seja, apenas referentes aos actos de ius imperii excluindo-se os actos de iure gestionis de natureza privada. No caso em apreço, estamos perante a celebração de um contrato de trabalho entre a Embaixada em Portugal do Estado Argelino (Ré) com uma trabalhadora (Autora) recrutada na própria Argélia e cuja nacionalidade é também Argelina (cfr. factos provados n.os 1 e 2), tendo tal contrato sido reduzido a escrito em língua francesa, tendo a mesma entrado em Portugal como membro da Missão, e tendo a mesma exercido as suas funções de cozinheira apenas nas instalações da Embaixada, incluindo a residência oficial da Embaixadora (cfr. factos provados n.os 3 a 5), e estamos perante a cessação desse contrato (cfr. factos provados n.os 6 e 7), cessação esta que se invoca constituir um despedimento ilícito. Ora, os actos de admissão/contratação de um trabalhador e de respectiva cessação do contrato, em si mesmos, não configuram necessariamente actos de natureza soberana, podendo perfeitamente “cair” na esfera da capacidade civil de uma Embaixada e no âmbito de actividade de gestão privada, tudo como um acto praticado pela Embaixada em representação do respectivo Estado tal como poderia ser praticado da mesma forma por um particular. E, em especial, no caso do direito laboral, tem sido considerado que o Estado não beneficia de imunidade nos litígios que o opõem a uma pessoa privada com a qual celebrou um contrato de trabalho, excepto se estiver em causa pessoal de grau elevado, porque estes casos são susceptíveis de estarem relacionados com o exercício do poder público (isto é, importa saber se o regime legal aplicável à relação contratual laboral estabelecida é substancialmente diferente do que liga qualquer trabalhador com idênticas funções a um particular).

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SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA Voltando, de novo, ao caso em apreço, e apesar de tudo o que a Ré deixou alegado na sua contestação, é manifesto que as funções desempenhadas pela Autora (cozinheira) não podem ser consideradas como de grau elevado no sentido supra referido (não se trata de um cargo de chefia de topo e/ou de representação; tais funções não lhe conferiam nenhuma responsabilidade particular no domínio do exercício do serviço público diplomático). Porém, apesar da natureza destas funções, não podemos esquecer que tratou de uma contratação realizada em território argelino, de uma cidadã argelina e que veio para Portugal como membro da missão (não se trata de uma contratação realizada em Portugal e nem da contratação de um cidadão português, ou de um cidadão de outra nacionalidade mas aqui residente), nem podemos esquecer que, atento o seu teor (cfr. facto provado n.º 4), o contrato de trabalho escrito está subscrito em língua francesa (língua oficial na Argélia, mas não em Portugal) e contém um conjunto de cláusulas cujo regime está muito mais próximo do regime legal argelino (cfr. documento de fls. 195 a 209 e respectiva tradução a fls. 172 a 179) do que o regime legal português. Esta factualidade suscita claramente dúvidas de que o acto de contratação da Autora pela aqui Ré seja em concreto um acto praticado pela Embaixada em representação do respectivo Estado tal como poderia ser praticado da mesma forma por um qualquer particular. Acresce que, embora ainda não haja codificação internacional vigente em Portugal porque o nosso País ainda não ratificou a Convenção Europeia sobre a Imunidade (aberto a assinatura dos Estados membros e à adesão de Estados não membros em 16/05/72, em Basileia), esta Convenção regula as relações de imunidade entre os Estados, podendo considerar-se uma referência do modo como os Estados a vêm entendendo. Tal convenção consagra a regra de que a imunidade de jurisdição (art. 5.º) não abrange os processos relacionados com contrato de trabalho celebrado entre um Estado e uma pessoa singular desde que se verifique o elemento de conexão consistente na realização do trabalho no território do Estado do foro, regra esta que é exceptuada em determinadas situações: quando o trabalhador é nacional do Estado empregador no momento da interposição da acção; quando no momento da celebração do contrato o trabalhador não é nacional nem residente do Estado do foro, ou quando as partes tenham convencionado por escrito outra solução. Ora, no caso em apreço, embora exercesse funções em Portugal (ao contrário do que a Ré invoca, as missões diplomáticas não gozam de um estatuto de extraterritorialidade nem são território sob soberania do estado acreditante; as instalações das missões diplomáticas mantêm-se sob a jurisdição do estado acreditador, apesar de lhe serem concedidos

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SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA privilégios especiais pela Convenção de Viena sobre Relações Diplomáticas), está demonstrado que à data de interposição da presente acção, a Autora tinha (e continua a ter) nacionalidade argelina, ou seja, é nacional do Estado cuja Embaixada é aqui Ré (isto é, não tem a nacionalidade portuguesa), e mais está demonstrado que, aquando da celebração do contrato de trabalho (designadamente do contrato verbal), a Autora não tinha nacionalidade portuguesa nem tinha residência em Portugal. Por conseguinte, no caso em apreço, estão verificadas duas excepções à supra aludida regra convencional de que a imunidade de jurisdição não abrange os processos relacionados com contrato de trabalho, o que, perante as dúvidas supra referidas quanto ao acto de contratação ter sido um mero acto de gestão como se de um particular se tratasse, afigura-se-nos constitui o factor decisivo quanto à relação concreta sobre que versa a presente acção. E perante o que fica dito, é manifesto que os descontos para a Segurança Social Portuguesa (cfr. facto provado n.º 8) mostram-se aqui irrelevantes, e mais se saliente que, na resposta à contestação, a Autora não aduziu um único fundamento e/ou argumento sobre esta questão. Nestas circunstâncias e embora por fundamentos não inteiramente coincidentes com a fundamentação invocada pela Ré, no caso apreço, impõe concluir-se pelo reconhecimento da imunidade da jurisdição à aqui Ré no presente litígio e, por via disso, pela incompetência internacional dos tribunais portugueses, donde resulta que este tribunal é incompetente para preparar e julgar a acção em apreço. Trata-se, face ao preceituado nos art.s 67.º e 101.º do C. P. Civil na versão anterior à de 2013, aplicáveis ex vi do art. 1.º/2a) do C. P. Trabalho, de um caso de incompetência absoluta (em razão das regras da incompetência [será, competência] internacional), que constitui uma excepção dilatória, que é sempre do conhecimento oficioso do tribunal mas que in casu foi expressamente arguida pela Ré (art.s 102.º e 494.º/a) do C. P. Civil na versão anterior à de 2013, aplicáveis ex vi do art. 1.º/2a) do C. P. Trabalho e art. 61.º/2 deste diploma), e que impede que este Tribunal conheça do mérito da causa e implica a absolvição da Ré da instância (art.s 105.º, 288.º/1a) e 494.º/a) do C. P. Civil, aplicáveis ex vi do art. 1.º/2a) do C. P. Trabalho).»

Por seu turno, o acórdão recorrido acolheu as considerações seguintes: «A decisão reclamada encontra-se corretamente elaborada, bem estruturada e fundamentada, abordando a questão colocada com clareza, profundidade, objetividade e acerto.

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SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA Aí se escreveu o seguinte: “O direito internacional comum reconhece aos Estados certos direitos derivados da sua qualidade de sujeitos de direito internacional, direitos esses essenciais sem os quais os Estados não poderiam viver e dos quais decorrem todos os seus outros direitos. Um desses direitos fundamentais é o direito à igualdade (igualdade nas relações entre os Estados, direito a uma igual medida de soberania, garantia da igualdade na aplicação do direito internacional). A soberania é um dos elementos constitutivos do Estado, sendo uma das suas marcas o exercício dos poderes de jurisdição, tanto de sentido normativo, como administrativo, ou jurisdicional, havendo uma tendencial correspondência entre os limites territoriais e o alcance do direito de jurisdição (Jónatas E. M. Machado, ‘Direito Internacional, do Paradigama Clássico ao Pós-11 de Setembro’, pág. 130 e segs.) Os direitos fundamentais dos Estados sofrem, todavia, algumas restrições. Umas resultam do costume internacional, outras derivam de normas convencionais. A imunidade de jurisdição de que gozam os Estados estrangeiros é uma dessas restrições. Embora ainda se tivesse defendido – como dá conta Luiz Paulo Romano (‘A imunidade de Jurisdição do Estado Estrangeiro: absoluta ou relativa?’, Enciclopédia Jurídica, acessível em http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id:1638.) – que as regras estatuídas pela Convenção de Viena sobre as Relações Diplomáticas cujo texto foi aprovado em 18 de Abril de 1961, por oitenta e um países soberanos conferiam aos Estados estrangeiros imunidade total em face da jurisdição do país em que se situavam tais missões, julgamos que este entendimento está hoje completamente superado. Temos, pois, como assente que a imunidade dos próprios Estados não radica no citado direito convencional, sendo algo de distinto das imunidades diplomáticas e consulares. De acordo com esta regra nenhum Estado soberano pode ser submetido, contra sua vontade, à condição de parte perante o foro doméstico de outro Estado. Porém desde há muito que o princípio da imunidade de jurisdição dos Estados tem vindo a sofrer restrições, consequência da crescente intervenção estadual no campo das finanças, do comércio, da indústria e dos transportes. E a doutrina, na definição do sentido daquela regra costumeira, foi-se separando, ora pugnando a favor da imunidade absoluta, ora defendendo a imunidade relativa. A partir da segunda grande guerra mundial começou a operar-se uma distinção entre as atividades governamentais tradicionais e as que entram no domínio das transações comerciais. Foi o início da distinção entre os actos iure imperii e os actos iure gestionis (Albino de Azevedo Soares, ‘Lições de Direito Internacional Público’, 4.ª ed., Coimbra Editora, pág. 340).

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SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA Hoje é dominante a tese da imunidade restrita que pressupõe aquela distinção. Quanto ao critério a usar na distinção, o mesmo não tem sido pacífico. Enquanto uns põem o acento na natureza do ato, outros atendem mais à finalidade por ele visada. Atualmente, a Convenção Europeia sobre a Imunidade dos Estados aberta à assinatura dos Estados membros do Conselho da Europa, em Basileia, a 16 de Maio de 1972, com entrada em vigor na ordem jurídica internacional a 11 de Junho de 1976, após as três ratificações necessárias e assinada por Portugal em 10 de Maio de 1979 consagra a tese da imunidade relativa e põe definitivamente de lado a qualificação do ato através da sua finalidade. Em matéria de contratos distingue entre os contratos de trabalho e outros contratos, não permitindo, em qualquer dos casos, que o Estado possa invocar a imunidade de jurisdição. Tal orientação, cujo teor é justificado pelo facto de a atuação estadual que obriga à celebração de tais contratos não poder ser considerada iure imperii, é complementada pelo art. 7.º, que nega igualmente a possibilidade de o Estado recorrer àquele tipo de defesa formal sempre que a atividade financeira, industrial ou comercial é levada a cabo por um escritório, agência ou estabelecimento que age da mesma forma como agiria uma pessoa privada (Albino de Azevedo Soares, ob. cit., pág. 341 e segs.). Embora Portugal tenha assinado a Convenção de Basileia não a ratificou, o que significa que a mesma não vigora na ordem interna portuguesa (art. 8.º, n.º 2, a contrario, da Constituição da República Portuguesa). Todavia este facto não a torna inócua, na medida em que, evidenciando uma certa tendência na definição do princípio da imunidade de jurisdição dos Estados estrangeiros, na prática internacional, pode ajudar a definir o conteúdo, a marcha evolutiva e o sentido atual da correspondente regra consuetudinária. Ora, a constatação duma certa tendência na limitação do princípio da imunidade na prática internacional não pode deixar de ter repercussão na definição do sentido atual da referida regra consuetudinária. O Ac. do STJ de 13 de Novembro de 2002 (CJ, Ano X, T. III, pág. 276) dá também conta dessa tendência, fazendo um estudo desenvolvido sobre a matéria. Destacamos algumas passagens e dados recolhidos. Desde há vários anos, as sessões regulares do Instituto de Direito Internacional vêm salientando que deve ser, em via de regra, afastada a imunidade de jurisdição do Estado estrangeiro quando estejam em causa relações reguladas pelo direito privado (civil ou comercial), o que inclui, além do mais (...), contracts of employment and contracts for professional services to which a foreign State (or its agent) is a party (...). Esta linha de orientação tem sido evidenciada pelas análises comparadas das diversas jurisprudências nacionais (...).

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SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA O tema foi recentemente objecto de desenvolvida monografia da autoria de Isabelle Pingel-Lenuzza

(‘Les

Immunités

des

États

en

Droit

International,

Editions

Bruylant/Editions de L’ Université de Bruxelles’, 1997) que, a propósito do não reconhecimento da imunidade de jurisdição em litígios laborais, refere que ‘a prática tende a admitir (...) que o Estado não beneficia da imunidade nos litígios que o opõem a uma pessoa privada com a qual concluiu o contrato de trabalho’. Adverte, porém, a mesma autora que esta regra tem sido aplicada com nuances, revelando o exame das jurisprudências nacionais que se a imunidade é geralmente recusada nos casos em que o litígio respeita a um trabalhador que exerce funções subalternas, ela já lhe é frequentemente concedida quando a pessoa em causa ocupa funções mais elevadas. Acrescenta que a justificação desta orientação assenta no reconhecimento de que só os contratos de trabalho celebrados com pessoal de grau elevado é que é suscetível de estar relacionado com o exercício do poder público (jus imperii) e de beneficiar a este título, da imunidade. Também Michel Menjucq, citado no mesmo acórdão, afirma – sintetizando a atual orientação jurisprudencial francesa na matéria – que unicamente as pessoas que tenham uma função de direcção agem no interesse do serviço público estrangeiro e podem ver ser-lhes opostas a imunidade do Estado estrangeiro, [o qual] pratica um acto de soberania ao despedi-las; pelo contrário, as pessoas que apenas têm uma função subalterna no serviço público, não implicando qualquer responsabilidade de direcção do serviço, não são consideradas (....) como actuando no interesse do serviço público. Consequentemente, a acção judicial por elas intentada não pode ser entravada pela imunidade do Estado estrangeiro, pois este intervém, ao despedi-las, como simples empregador privado, praticando um acto de gestão. Face a estas considerações, iluminando a conceção atual do princípio da imunidade de jurisdição dos Estados estrangeiros, resta analisar a relação material controvertida tal como se mostra configurada na petição inicial e também o pedido. Recorde-se que a ação foi proposta contra a Embaixada da Argélia em Portugal, e não contra a pessoa do seu Embaixador, e, como se viu, relativamente aos Estados estrangeiros, a imunidade de jurisdição é sempre relativa, dependendo da natureza da atividade desenvolvida pelo autor. Saliente-se também, que a ação não tem por objeto a […] renovação do contrato de trabalho ou a reintegração da trabalhadora, hipótese em que seria possível a invocação da imunidade (Ac. do STJ de 12.01.2006, doc. n.º SJ200602180032794, www.dgsi.pt, que aqui seguimos de perto).

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SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA O fundamento da ação é a cessação da relação de trabalho, por facto imputável à entidade empregadora. Em razão disso a autora pede que o despedimento seja declarado sem justa causa, logo ilícito, e em consequência: [neste segmento são discriminados os pedidos deduzidos pela autora, já acima aludidos]. Ao comunicar à autora que o contrato de trabalho tinha cessado, a recorrida agiu como qualquer empregador privado. Não praticou um ato de soberania. No presente caso, as funções exercidas pela autora são obviamente de carácter subalterno, não lhe podendo, manifestamente, ser reconhecida qualquer posição de direção na organização do serviço público da ré ou de desempenho de funções de autoridade ou de representação. A sentença recorrida, após reconhecer que as funções exercidas pela autora, (cozinheira) não podem ser consideradas como de grau elevado (não se trata de um cargo de chefia de topo e/ou ou de representação) e tais funções não lhe conferiam nenhuma responsabilidade particular no domínio do exercício do serviço público diplomático, ponderou que se tratou de uma contratação realizada em território argelino, de uma cidadã argelina e que veio para Portugal como membro da missão e que o contrato de trabalho está escrito em língua francesa e contém um conjunto de cláusulas cujo regime está muito mais próximo do regime legal argelino do que o regime legal português e concluiu que, como à data de interposição da ação, a autora tinha (e continua a ter) nacionalidade argelina e que, aquando da celebração do contrato de trabalho (designadamente do contrato verbal), a autora não tinha nacionalidade portuguesa nem tinha residência em Portugal, a ré gozava de imunidade de jurisdição, nos termos da Convenção Europeia sobre a Imunidade. Não se pode subscrever este entendimento, que, pela sua latitude, acabaria por abranger todo o pessoal necessário ao funcionamento regular de qualquer representação diplomática, independentemente do nível de relevância e de responsabilidade das funções exercidas. A natureza das atividades a que há que atender são as que integram as funções do trabalhador em causa, interessando apurar se o regime legal aplicável à relação laboral estabelecida é substancialmente diferente do que liga qualquer outro trabalhador com as mesmas funções a um qualquer particular. No caso, a resposta é negativa. A relação de trabalho subordinado estabelecida entre a autora e a ré é regida pelo direito português em termos idênticos ao vulgar contrato de trabalho para prestação de serviços domésticos (confeção de refeições) celebrado com qualquer particular. Neste sentido, vejam-se os arts. 1.º e 18.º do Regulamento (CE) n.º 44/2001 do Conselho, de 22 de Dezembro de 2000, relativo à competência judiciária, ao reconhecimento e à

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SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA execução de decisões em matéria civil e comercial) e o Ac. do Tribunal de Justiça [da União

Europeia]

(Grande

Secção)

de

19

de

julho

de

2012

(http://eur-

lex.europa.eu/LexUriServ/LexUriServ.do?uri=CELEX:62011CJ0154:PT:HTML).” Concordando-se, totalmente, com a decisão proferida, bem como com os fundamentos invocados, é de confirmar inteiramente essa decisão. Para não estarmos aqui a repetir aquilo que já foi dito – e bem –, focaremos apenas o que nos parece mais relevante face à motivação da reclamação. Não se ignora que a jurisprudência nacional tem-se mostrado, particularmente oscilante, entre uma conceção mais dilatada do alcance da regra da imunidade de jurisdição (Acs. desta Relação de 12.07.1989, CJ, Ano XIV, tomo IV, pág. 178 e do Tribunal da Relação do Porto, de 5.01.1981, CJ, Ano VI, tomo I, pág. 183) e uma conceção mais restrita, como a do Ac. deste Tribunal de 30.05.1990, confirmado pelo Ac. do STJ de 30.01.1991, BMJ nº 403, pág. 267, que ambos decidiram serem os tribunais de trabalho portugueses internacionalmente competentes para conhecer de ação de impugnação de despedimento intentada por empregada doméstica do 1.º Secretário da Embaixada da França em Lisboa. É esta última a conceção que se reputa mais correta e mais conforme ao estádio atual da prática e da jurisprudência internacionais – note-se que a esmagadora maioria desses acórdãos não são recentes, sendo certo que, desde então, se registou uma evolução significativa no sentido apontado pela decisão reclamada (de que dá conta o aí citado acórdão de 13.11.2002). Recorde-se que o costume internacional é a segunda das fontes formais enunciadas no art. 38.º, nº 1 do Estatuto do TIJ (Tribunal Internacional de Justiça) – onde aparece definido como prova de uma prática geral aceite como sendo direito – e que a função do costume é idêntica à das convenções. Tanto define direitos e obrigações subjetivas particulares entre Estados, como cria normas objetivas gerais válidas para o conjunto dos membros da sociedade internacional. Por outro lado, o citado art. 38.º do Estatuto do TIJ não faz depender a aplicação judicial dos costumes gerais, da circunstância de os litigantes os terem praticado ou aceitado. Por isso, o TIJ tem aplicado costumes considerados gerais à solução de litígios entre Estados que não tinham aceitado a aplicação desses costumes ao caso litigioso. De sublinhar, ainda, que a imunidade de jurisdição do Estado e dos seus bens, geralmente aceite como um princípio do direito internacional consuetudinário (par in parem non habet jurisdictionem), integrado no Direito Interno por força do art. 8, n.º 1 da Constituição da República Portuguesa, foi objeto de uma Convenção internacional, a Convenção das Nações Unidas sobre as Imunidades Jurisdicionais dos Estados e dos seus Bens, aberta à assinatura em Nova York em 17 de Janeiro de 2005, que ainda não entrou

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SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA em vigor – Portugal ratificou já esta Convenção, aprovada pela Resolução da Assembleia da Republica n.º 46/2006, ratificada pelo Decreto do Presidente da República n.º 57/2006, tendo o instrumento de ratificação sido depositado em 14 de Setembro de 2006 e a Convenção publicada no DR I Série-A, de 20 de Junho de 2006. Poderá, no entanto, como afirma Margarida Salema D’Oliveira Martins, constituir uma base importante para os tribunais (‘Direito Diplomático e Consular’, pág. 69). A Convenção refere-se, na sua Parte III, aos Processos judiciais nos quais os Estados não podem invocar imunidade: – no art. 10.º, sob a epígrafe ‘Transacções comerciais’; – no art. 11.º, sob a epígrafe ‘Contratos de trabalho’; – no art. 12.º, sob a epígrafe ‘Danos causados a pessoas e bens’; – no art. 13.º, sob a epígrafe ‘Propriedade, posse e utilização de bens’; – no art. 14.º, sob a epígrafe ‘Propriedade intelectual e industrial’; – no art. 15.º, sob a epígrafe ‘Participação em sociedades ou outras pessoas colectivas’ e, finalmente, no art. 16.º, sob a epígrafe ‘Navios de que um Estado é proprietário ou explora’. Analisada a relação material controvertida tal como se mostra configurada na petição inicial aí se incluindo o pedido não podemos deixar de concluir que a autora, pelo contrato celebrado passou a ser membro do pessoal serviço (alínea g) do art. 1.º da Convenção de Viena sobre as Relações Diplomáticas). Todavia, as funções para que foi contratada não eram de direção, antes tinham carácter subalterno. A autora cumpria todas as tarefas próprias de uma cozinheira, exercendo-as sob a direção da entidade empregadora. Também não eram funções estreitamente relacionadas com o exercício de autoridade governamental (jus imperii). Tanto a designação do contrato, como as suas cláusulas, apontam para um contrato de natureza privada, designado pelas partes como contrato de trabalho. O fundamento da ação é a cessação da relação de trabalho, por facto imputável à entidade empregadora. Ao comunicar à autora que o contrato de trabalho tinha cessado a ré agiu como qualquer empregador privado. Não praticou um ato de soberania. Não altera os dados da situação o facto de a autora ser membro do pessoal de serviço da ré pois nessa qualidade não goza sequer dos privilégios e imunidades, contemplados pelo art. 37.º, n.º 2 da Convenção de Viena sobre Relações Diplomáticas (desde logo, porque foi a autora que propôs a ação). Sublinha-se ainda que o art. 32.º da Convenção de Basileia (convenção que, não vigorando na ordem interna portuguesa, tem, como ficou dito, o mérito de evidenciar uma tendência geral sobre o âmbito de aplicação do princípio de direito internacional sobre a

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SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA imunidade dos Estados) apenas salvaguarda os privilégios e imunidade das missões diplomáticas e postos consulares consagrados noutras fontes (Convenções de Viena sobre Relações Diplomáticas e sobre Relações Consulares, esta aprovada em Viena, em 24 de Abril de 1963). Sabido que, na ordem interna portuguesa, vigora a regra consuetudinária (costume internacional de âmbito geral – art. 8.º, n.º 1 da Constituição da República Portuguesa), com o conteúdo e o sentido (atualizado) já definidos, entendemos que o âmbito das restrições que aquela regra (consuetudinária) permite não pode ultrapassar – por tudo o que já se disse – as que constam daquela convenção e da Convenção das Nações Unidas sobre as Imunidades Jurisdicionais dos Estados e dos seus Bens, segundo a qual, a imunidade pode ser invocada se estiver em causa um contrato de trabalho e o objeto do processo for a sua renovação ou a reintegração duma pessoa singular – art. 11.º, n.º 2, alínea c) -, que aceitamos como manifestações de uma certa prática (ou tendência) internacional. Refira-se, ainda, que o Regulamento (CE) n.º 44/2001, que estabelece as regras de determinação da competência dos órgãos jurisdicionais dos Estados-Membros, se aplica a todos os litígios em matéria civil e comercial, com exceção de certas matérias expressamente indicadas neste mesmo regulamento. Este Regulamento tem por objeto unificar as regras de competência dos Estados-Membros tanto nos litígios internos à União como nos que contêm um elemento de estraneidade, com o objetivo de eliminar os obstáculos ao funcionamento do mercado interno que podem resultar das disparidades nas legislações nacionais existentes na matéria. Com efeito, o Regulamento e particularmente o seu capítulo II, no qual se insere o art. 18.º, contém um conjunto de regras que formam um sistema global, aplicáveis não apenas às relações entre diferentes Estados-Membros mas também às relações entre um Estado-Membro e um Estado terceiro. A secção 5 do capítulo II do Regulamento, composta pelos arts. 18.º a 21.º, enuncia as regras de competência relativas aos litígios que têm por objeto contratos individuais de trabalho, regras essas que têm por objetivo proteger a parte contratante mais fraca por meio de regras de competência mais favoráveis aos interesses dessa parte e que permitem, nomeadamente, ao trabalhador demandar a entidade patronal perante o órgão jurisdicional que considera ser mais próximo dos seus interesses, reconhecendo-lhe a faculdade de agir perante um órgão jurisdicional do Estado no qual tem o seu domicílio ou do Estado onde leva a cabo habitualmente o seu trabalho, ou ainda do Estado no qual se encontra o estabelecimento do empregador.

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SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA O art. 18.º tem a seguinte redação: 1. Em matéria de contrato individual de trabalho, a competência será determinada pela presente secção, sem prejuízo do disposto no artigo 4.º e no ponto 5 do artigo 5.º 2. Se um trabalhador celebrar um contrato individual de trabalho com uma entidade patronal que não tenha domicílio no território de um Estado-Membro mas tenha uma filial, agência ou outro estabelecimento num dos Estados-Membros, considera-se para efeitos de litígios resultantes do funcionamento dessa filial, agência ou estabelecimento, que a entidade patronal tem o seu domicílio nesse Estado-Membro. O Ac. do Tribunal de Justiça [da União Europeia] (Grande Secção) de 19 de julho de 2012, muito oportunamente citado na decisão reclamada, proferido no âmbito de um litígio que opunha um motorista de dupla nacionalidade argelina e alemã da Embaixada da República Argelina Democrática e Popular estabelecida em Berlim (Alemanha) ao seu empregador, concluiu que o art. 18.º, n.º 2, do Regulamento (CE) n.º 44/2001 deve ser interpretado no sentido de que uma embaixada de um Estado terceiro situada no território de um Estado-Membro constitui um estabelecimento na aceção desta disposição num litígio relativo a um contrato de trabalho celebrado por esta em nome do Estado acreditante, quando as funções desempenhadas pelo trabalhador não se enquadram no exercício do poder público, competindo ao órgão jurisdicional nacional determinar a natureza exata das funções exercidas pelo trabalhador. Impõe-se, pois, confirmar a decisão reclamada.»

2.2. A imunidade de jurisdição de que gozam os Estados estrangeiros é, comummente, acolhida como um princípio de direito internacional consuetudinário e afirma-se como um corolário do princípio da igualdade soberana dos Estados, consagrado no n.º 1 do artigo 2.º da Carta das Nações Unidas, o qual dispõe que «[a] Organização baseia-se no princípio da igualdade de todos os seus membros». Tal imunidade de jurisdição significa que nenhum Estado pode julgar os actos de outro Estado por intermédio de um dos seus tribunais, sem o consentimento expresso deste Estado para o exercício da jurisdição por esse tribunal. Trata-se, pois, de um princípio de direito internacional que se desenvolveu a partir da máxima latina «par in parem non habet imperium».

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SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA No ordenamento jurídico português, não existe norma que regule a questão da imunidade jurisdicional dos Estados estrangeiros perante os tribunais portugueses, problemática que tem de ser apreciada à luz das normas e dos princípios de direito internacional geral ou comum, os quais, segundo o n.º 1 do artigo 8.º da Constituição da República Portuguesa, «fazem parte integrante do direito português». Refira-se que, na actualidade, os desenvolvimentos na prática dos Estados relativamente à imunidade jurisdicional dos Estados estrangeiros, influenciados pela intervenção crescente dos Estados em áreas do direito privado, apontam no sentido do reforço da teoria da imunidade jurisdicional relativa em detrimento da teoria da imunidade jurisdicional absoluta, sustentando aquela que o Estado só beneficiaria da imunidade para os actos jure imperii, mas não para os actos jure gestionis, aqueles em que intervém como pessoa de direito privado em relações de direito privado. Idêntica tendência evolutiva tem caracterizado a jurisprudência dos tribunais superiores portugueses, designadamente no foro laboral, que, actualmente, tem vindo a seguir a tese da imunidade jurisdicional restrita dos Estados estrangeiros. Nesta linha de entendimento, este Supremo Tribunal, no acórdão de 13 de Novembro de 2002, proferido no Processo n.º 2172/01, da 4.ª Secção — orientação reafirmada no acórdão de 18 de Janeiro de 2006, proferido no Processo n.º 3279/05, da 4.ª Secção —, asseverou que «a regra consuetudinária de direito internacional segundo a qual os Estados estrangeiros gozam de imunidade de jurisdição local quanto às causas em que poderiam ser réus não foi revogada pela Constituição da República Portuguesa de 1976, uma vez que, na sua formulação mais recente, essa regra não contraria nenhum dos preceitos fundamentais da Constituição. Essa formulação conforme ao sistema constitucional português é a concepção restrita da regra da imunidade de jurisdição, que a restringe aos actos praticados jure imperii, excluindo dessa imunidade os actos praticados jure gestionis. Quer a extensão da aludida regra, quer os critérios de diferenciação entres estes tipos de actividade, não

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SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA têm contornos precisos e evoluem de acordo com a prática, designadamente jurisprudencial, dos diversos Estados que integram a comunidade internacional.» Reapreciada a questão, não se vislumbra qualquer fundamento para divergir do assinalado entendimento jurisprudencial, que se reputa mais conforme ao estádio actual dos desenvolvimentos na prática dos Estados e na jurisprudência internacional. Tudo para concluir que a prática da imunidade jurisdicional relativa é, hoje, a dominante, passando a resolução da questão posta por saber se a actividade a que se refere o presente litígio se configura como um acto jure imperii ou jure gestionis, sendo actos jure imperii os actos de poder público, de manifestação de soberania, enquanto os actos jure gestionis são actos de natureza privada, os que poderiam ser de igual modo praticados por um particular. Adite-se que a recorrente defende que resulta claro da Convenção de Viena que «a Embaixada da República Democrática e Popular da Argélia em Portugal goza de imunidade de jurisdição, em virtude do seu estatuto diplomático». Ora, a Convenção de Viena sobre Relações Diplomáticas, aprovada para adesão pelo Decreto-Lei n.º 48.295, de 27 de Março de 1968, regula o estatuto dos agentes diplomáticos, reconhecendo-lhe privilégios e imunidades, com o objectivo de «garantir o eficaz desempenho das funções das missões diplomáticas, em seu carácter de representantes dos Estados» (cf. respectivo proémio), não tendo visado assegurar aos Estados estrangeiros imunidade total perante os tribunais do País em que se localizam as missões diplomáticas. Isto mesmo resulta do estipulado no n.º 1 do artigo 31.º daquela Convenção que dispõe que o agente goza de imunidade de jurisdição penal do Estado acreditador e também da imunidade da sua jurisdição civil e administrativa, com excepção das situações discriminadas nas suas alíneas a) a c).

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SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA Acresce que se mostra completamente superado o entendimento da extensão aos Estados estrangeiros das imunidades reconhecidas aos agentes diplomáticos. Assim, a imunidade jurisdicional dos Estados não radica no sobredito direito convencional, a qual consubstancia um instituto distinto das imunidades diplomáticas e consulares, pelo que, sendo a acção instaurada contra a Embaixada da República Democrática e Popular da Argélia, não está em causa a aplicação directa do regime das imunidades contido na Convenção de Viena sobre Relações Diplomáticas. 2.3. No caso sujeito, resultou provado que a autora AA é cidadã argelina [facto provado 1)], que, em 15 de Outubro de 2004, a autora e a ré acordaram, de forma verbal, que aquela prestaria as funções de cozinheira para esta e sob a sua autoridade, direcção e fiscalização, mediante remuneração mensal [facto provado 2)], e que a ré, na sequência deste acordo, tratou da documentação para a entrada da autora em Portugal como membro da Missão [facto provado 3)] e, em 21 de Fevereiro de 2005, nas instalações da ré, esta e a autora reduziram a escrito o dito acordo verbal, através da subscrição do escrito particular denominado «Contrat d’engagement» [facto provado 4)], tendo a autora exercido as funções de cozinheira na Embaixada e na residência oficial da Sr.ª Embaixadora da Argélia até 31 de Maio de 2011 [factos provados 5) e 6)], data em que a ré lhe comunicou que o contrato terminava em 1 de Junho de 2011 [facto provado 7)], sendo que, enquanto prestou o seu trabalho para a ré, por iniciativa desta, a autora fazia descontos para a Segurança Social Portuguesa [facto provado 8)]. Ora, as funções de cozinheira exercidas pela autora, na Embaixada e na residência oficial da respectiva Embaixadora, são obviamente de carácter subalterno, não lhe podendo, manifestamente, ser reconhecida qualquer posição de direcção na organização do serviço público da ré ou de desempenho de funções de autoridade ou de representação, não assumindo essa actividade, nem a correspondente contratação, a natureza de acto de poder público ou de manifestação de soberania, ainda que

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SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA aquelas funções possam ser consideradas como necessárias para o regular e normal funcionamento dos serviços próprios da missão diplomática. Na verdade, a natureza das actividades a que se deve atender é a assumida pelas concretas funções da trabalhadora em causa, interessando apurar se o regime legal aplicável à relação laboral estabelecida é substancialmente diferente do que liga qualquer outro trabalhador com as mesmas funções a um qualquer particular, sendo que, no caso, a resposta é negativa. Assim, impõe-se concluir pelo não reconhecimento, à ré, da imunidade de jurisdição pretendida e, por via disso, pela competência internacional dos tribunais do trabalho portugueses para preparar e julgar a acção em apreciação, nos termos do preceituado nos artigos 10.º, 13.º e 14.º do Código de Processo do Trabalho. Improcedem, pois, as conclusões da alegação do recurso de revista da ré. III Pelo exposto, delibera-se negar a revista e confirmar o acórdão recorrido. Custas do recurso de revista a cargo da recorrente. Anexa-se o sumário do acórdão. Lisboa, 4 de Junho de 2014 (Manuel Joaquim de Oliveira Pinto Hespanhol) (Manuel Augusto Fernandes da Silva) (António Gonçalves Rocha)

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SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA SUMÁRIO ESTADO ESTRANGEIRO IMUNIDADE JURISDICIONAL ACÇÃO DE IMPUGNAÇÃO DE DESPEDIMENTO 1. No ordenamento jurídico português, não existe norma que regule a questão da imunidade jurisdicional dos Estados estrangeiros perante os tribunais portugueses, problemática que tem de ser apreciada à luz das normas e dos princípios de direito internacional geral ou comum, que, segundo o n.º 1 do artigo 8.º da Constituição da República Portuguesa, «fazem parte integrante do direito português». 2. A prática da imunidade jurisdicional relativa é, hoje, a dominante, passando a resolução da questão posta por indagar se a actividade a que se refere o litígio se configura como um acto jure imperii ou jure gestionis, sendo actos jure imperii os actos de poder público, de manifestação de soberania, enquanto os actos jure gestionis são actos de natureza privada. 3. A imunidade jurisdicional dos Estados é um instituto distinto das imunidades diplomáticas e consulares, pelo que, sendo a acção proposta contra a Embaixada de um Estado estrangeiro, não está em causa a aplicação directa do regime das imunidades contido na Convenção de Viena sobre Relações Diplomáticas. 4. Não beneficia de imunidade de jurisdição o Estado estrangeiro contra o qual foi intentada acção de impugnação de despedimento por trabalhadora que exercia a actividade de cozinheira na sua Embaixada em Portugal e na residência oficial da respectiva Embaixadora. Data do Acórdão: 4 de Junho de 2014 Processo n.º 2075/12.0TTLSB.L1.S1 (Revista) – 4.ª Secção Pinto Hespanhol (relator) Fernandes da Silva Gonçalves Rocha

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